• Nenhum resultado encontrado

Introdução Da tradução como soft power

Salazar traduzido: sobre tradução e poder no Estado Novo (1933-1950)

1. Introdução Da tradução como soft power

Os Estudos de Tradução em Portugal na época do Estado Novo (EN, 1933- -1974) têm procurado desvendar os relacionamentos, os cruzamentos das literaturas estrangeiras com a literatura e a cultura portuguesas e, como em muitos casos, puseram estas em contacto não só com vários estratos do câ- none literário do tempo como com os novos géneros que se iam consolidando no apreço de um público leitor em constante crescimento e diversificação. Observa-se, na verdade, toda uma dinâmica de satisfação do gosto por um lado, de necessidades culturais por outro, que nem os constrangimentos da ditadura lograram impedir. Sem dúvida que o aparelho repressivo do EN vigiou estes bens importados. A Censura ao livro traduzido/a traduzir foi, como já está dito e escrito, um dos capítulos indispensáveis da história da tradução nessas décadas (Seruya/Moniz 2008a, Seruya/Moniz 2008b, Seruya 2016).

Neste contributo, porém, o objeto que nos vai ocupar, sendo o mesmo, traduções no EN, difere substancialmente do que tem sido feito no âmbito do projeto Intercultural Literature in Portugal 1930-2000: A Critical Bibliogra-

phy, a funcionar no Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC),

em parceria com o CEAUL – Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa. Se anteriormente nos debruçámos sobre a circulação de textos do

1 Versão portuguesa de “Salazar translated: on translation and power under the Estado Novo

(1933-1950)”, in: The Age of Translation. Early 20th-century Concepts and Debates, ed. Maria Lin Moniz/Alexandra Lopes, Frankfurt am Main et al., Peter Lang, 89-109. Foram corrigidas, nesta versão, indicações sobre o paradeiro de algumas edições estrangeiras dos Discursos de Salazar (a húngara e a sul-americana), entretanto encontradas na Biblioteca Nacional.

Salazar traduzido: sobre tradução e poder no Estado Novo (1933-1950) exterior para o sistema literário português, a nossa (minha) atenção virou-se agora para a direção contrária, para a exportação, em tradução, de textos, discursos, legislação, panfletos, cartazes, etc. produzidos e depois mandados traduzir pelo Estado para as principais línguas europeias. Claro que a produ- ção ideológica e as realizações do Estado Novo, que importava tornar conhe- cidas e amadas, tinham a assinatura de Oliveira Salazar, servido pela institui- ção particularmente vocacionada para a criação de uma imagem positiva da ditadura portuguesa no estrangeiro. Referimo-nos, é claro, ao Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), fundado em 1933 e dirigido por António Ferro até 1949. Em 1944, porém, a instituição mudara de nome para SNI – Secretaria- do Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo. Em termos do objeto que nos interessa, a troca de “Propaganda” por “Informação” “teve subjacen- tes efectivas preocupações de aperfeiçoamento do aparelho” (Ó 1996: 895). Estas “preocupações”, centradas na relação do Governo com os órgãos de informação, traduziram-se nomeadamente na entrega ao SNI dos Serviços de Censura. Mas outro tipo de preocupações estiveram certamente presentes também: com a previsível derrota tanto do fascismo italiano (Mussolini co- meçara a sair de cena em 1943) como do Nacional-Socialismo através da reviravolta na II Guerra Mundial em 1944, não era aconselhável o uso de uma palavra tão ligada aos dois regimes derrotados.

Num Colóquio Internacional realizado na Universidade do Minho em 2014, Michael Cronin interrogava-se sobre se a Era da Informação fundada por Clau- de Shannon/Warren Weaver estaria a ser substituída por uma Era da Tradu- ção, pois que a garantia de proximidade a que nos habituámos no mundo de hoje só verdadeiramente acontece em caso de tradutibilidade, por exemplo através da localização.2 Por outras palavras, as tecnologias de informação

permitem aliar globalização e particularismo, a exemplo do LTI – Literature Translation Institute of Korea, fundado em 1996 por iniciativa governamental, com o objetivo de divulgar a literatura coreana. Neste contexto Cronin socor- reu-se do conceito de soft power desenvolvido pelo professor de relações internacionais da Universidade de Harvard Joseph Nye (secretário-adjunto da Defesa na Administração Clinton), para se referir a um tipo de política externa,

2 Cronin participou no 6.º Seminário HOT – Hands-on Translation com o tema: “A(g)entes e

as tarefas da Tradução”, 19-20 de junho de 2014. A sua intervenção teve o título: “The Translation Age?”. Desconheço se foi publicada. Reproduzo das minhas notas.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

necessário no mundo reordenado que se seguiu ao 11 de setembro, que não se baseia nem na aquisição territorial nem no poderio militar (hard power), mas basicamente na cultura, a exercer-se para fora de fronteiras (Nye 2004: x). Tratar-se-ia, sobretudo para pequenas nações que não podem ou não que- rem exercer hard power, de promover um brand nationalism: ligar um país a imagens positivas para promover investimentos e turismo. Uma concretização deste objetivo poderia ser a criação de institutos de tradução financiados pelo Estado, de vocação bi-direcional, mas comprometidos com o sublinhar da diferença de culturas.

Uma questão cuja pertinência julgamos de sublinhar é a associação que se poderá fazer entre soft power e propaganda. É assunto tão extenso e po- lémico que não poderá ser tratado em profundidade no presente contexto. Na atualidade, e no espaço público português, a palavra “propaganda” é usada pejorativamente como acusação aos adversários políticos (contrapondo-se a um discurso tido por objetivo, certeiro e autêntico) ou como componente ne- cessária da ação política (dos partidos, nas campanhas eleitorais, etc.) e, nes- te caso, com um sentido relativamente neutro. Já do ponto de vista histórico a propaganda foi uma componente bem visível, institucional mesmo, da atuação de partidos e regimes de sinal contrário. Assistia-se, então, à caricata situação de que o que se considerava propaganda era proibido (“propaganda comunis- ta”, “propaganda fascista”), enquanto a instância que enunciava/decretava a proibição rasurava o facto de ela própria estar inserida numa instituição estatal de propaganda. Recorde-se, por exemplo, a Comissão de Censura ao Livro no EN, que usava como um dos critérios de proibição de um livro tratar-se de “propaganda” (geralmente de ideias consideradas “subversivas”). O próprio Salazar, no discurso que pronunciou aquando da inauguração do SPN em 1933, estava claramente ciente das conotações da palavra naqueles tempos de fascismos e comunismos:

Vamos abstrair de serviços idênticos noutros países, dos exaltados naciona- lismos que os dominam, dos teatrais efeitos a tirar no tablado internacional. Tratemos do nosso caso comezinho (Salazar 1935: 258s.).

Assim, esclareceu que dava à propaganda o sentido de combater a “ig- norância” de jornalistas, escritores e políticos estrangeiros, “proveniente das más informações que aqui mesmo lhes dão” (Ibidem: 260), quando “muitos

Salazar traduzido: sobre tradução e poder no Estado Novo (1933-1950) dos que falam e escrevem sobre Portugal não visitaram nunca o País: deve haver ao dispor de uns e outros elementos bastantes para que inconsciente- mente não deturpem a verdade […]” (261). Mas insistiu ainda na “verdade” e na “justiça” que deveriam pautar a atividade do SPN, pois “nem a Nação nem o Governo têm necessidade de que alguém minta a seu favor, nem pode o Se- cretariado ser injusto para ninguém.” (262) Este assenhorear-se da “verdade” e da “justiça” pelo regime ditatorial é, na verdade, representativo das conotações mais negativas da propaganda.

Explicado o entendimento teórico que Salazar tinha da propaganda, mas juntando-se-lhe tudo o que se sabe sobre a prática do SPN e de António Ferro com a sua “Política do Espírito” (Ó 1996 e 1999; Paulo 1994; Matos 2004; Acciaiuoli 2013),3 impõe-se uma reflexão mais exigente sobre as diferenças

entre propaganda e informação, propaganda e diplomacia4, propaganda e

soft power, já que a proposta de Cronin, embora nada tendo a ver com pro-

paganda no sentido dos regimes de partido único, também se não distingue dele de maneira radical. A definição generalista de propaganda que M. Sordi (citado por Busino) propõe, parece-nos muito aproveitável, adaptando-se bem à função da tradução no SPN:

[…] todo o gesto, acção, manifesto, slogan, discurso, obra escrita, imagem ou representação artística, destinada a exercer uma pressão psicológica sobre a opinião pública para acreditar ou desacreditar uma ideia, uma pessoa, um pro- duto, uma linha política ou religiosa. (Busino 1998: 315)

Na verdade a tradução foi uma parte importante da estratégia de “não deturpar a verdade” sobre o regime português no estrangeiro, ou seja, foi, sem dúvida um instrumento precioso de propaganda, do exercício de um soft

power a que o próprio Salazar sempre esteve atento, como se verá.

3 “Política do Espírito” é a expressão-síntese dos fins do Secretariado de Propaganda Nacio-

nal.

4 “Simple propaganda often lacks credibility and thus is counterproductive as public diploma-

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo