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História literária e traduções no Estado Novo Uma introdução possível

(com Maria Lin Moniz)1

É consensual que, na segunda metade do século XX, a História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes funcionou como a obra

canónica do género, a ponto de, para muitos, canónica e única se terem con- fundido, pelo menos até tentativas recentes de Carlos Reis na Editorial Verbo e de Isabel Allegro de Magalhães por via da Fundação Gulbenkian as quais, porém, segundo o respetivo autoentendimento, não pretendem certamente concorrer com aquela. A avaliar pelo elevado número de edições da obra de Saraiva/Lopes, pode dizer-se que o processo da sua institucionalização ou canonização foi célere e está de pedra e cal. Tal aconteceu em pleno Estado Novo, para além das represálias políticas de que os seus autores foram víti- mas, como é sabido. Pelo aludido valor de posição da obra, pode arriscar-se dizer que ela representará uma cesura no percurso da historiografia literária portuguesa, tal como hoje, por exemplo, muitos afirmam em relação a Teófilo Braga. Não é este, porém, o objeto que agora nos ocupará, mas antes os an- tecedentes que decidimos atribuir-lhe, até para um dia poder situar com rigor o empreendimento dos dois ilustres professores e amigos.

Não é ainda possível observar, sequer parcialmente, o panorama das tra- duções publicadas durante o Estado Novo (1926/1933-1974). Na verdade, o último volume da monumental obra de A. A. Gonçalves Rodrigues A Tra-

dução em Portugal (1992-1999), o quinto, abarca apenas as três primeiras

décadas do século XX (1901-1930), prevendo-se que o sexto, com que a obra

1 Primeira publicação: Seruya, Teresa / Moniz, Maria Lin (2001), “História Literária e Traduções

no Estado Novo. Uma Introdução Possível”, in Atas do Congresso da APLC, Évora, 9-12 maio de 2001, vol. II “Tradução, Tradições e Cânones”, www.eventos.uevora.pt/comparada.

História literária e traduções no Estado Novo terminará, se estenda até 1950, faltando assim bibliografar cerca de um quarto de século.2 Alguma coisa, porém, poderemos tentar iluminar da relação do Es-

tado Novo com a historiografia literária portuguesa, especificamente no que o respetivo discurso revela do entendimento das traduções realmente existentes e/ou do entrelaçamento da nossa literatura com as estrangeiras. É certo que, à partida, está bem ativo o pré-juízo de que um Estado arreigadamente nacio- nalista e autarcista não estará disponível para aceitar, mesmo na interpretação do passado, a convivência, a paridade com, para já não referir a hegemonia, de presenças estranhas ao tecido autóctone. Assim, há uma forte expectativa de menosprezo destas que tornaria desinteressante o estudo em questão. A verdade, porém, é que o corpus que se nos depara é numeroso e diversifi- cado. Por razões que ficarão claras, a nossa atenção centrar-se-á no período relativamente curto que vai de 1936 a 1947, datas que propomos sejam con- sideradas relevantes tanto para a historiografia literária como para a história do ensino/educação, sendo estes afinal, pelo menos no nosso país, os principais destinatários das histórias da literatura portuguesa.

Na periodização a que António Nóvoa procede da ação do Estado Novo no campo educativo, é apontada, após um período turbulento de desmante- lamento da escola republicana (1930-1936), em que a substituição de legiti- midades se revelou árdua, uma fase de viragem que abrange precisamente os anos de 1936 a 1947. Assiste-se, então, à edificação da escola naciona- lista, num clima de “corte com os movimentos educativos além-fronteiras”, de “exclusão de redes internacionais de circulação de ideias e de produção de práticas” (Nóvoa 1990: 460). No ano de 1936 foram tomadas algumas medidas às quais a imagem educativa do Estado Novo ficou associada, como o batismo do Ministério da Instrução em Ministério da Educação Nacional, a instituição do livro único, a instituição da Mocidade Portuguesa e a da Obra das Mães para a Educação Nacional. Mas o que mais especificamente nos interessa é a publicação dos Decretos-Lei 27084 e 27085, de 14 de outubro de 1936, promulgando aquele a reforma do ensino liceal, este aprovando os programas das respetivas disciplinas. Na sequência desta legislação, e re- metendo expressamente para ela no que ao Português concerne, são dadas à estampa uma História da Literatura Portuguesa, de Augusto Dias (Porto,

2 No momento em que preparamos este livro (2018) já é mais do que certo que tal volume

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

Editora Educação Nacional, 1939) e A Língua e a Literatura Portuguesa (de

harmonia com os programas oficiais), do Pe. Arlindo Ribeiro da Cunha (Braga,

Livraria Cruz, 1941). Assumindo-se igualmente como apoio aos programas em vigor, temos ainda o “manual escolar” de Agostinho José Fortes, História da

Literatura Portuguesa (Lisboa, Livraria Popular, 1936) e a História da Literatura Portuguesa de Joaquim Ferreira (Porto, Domingos Barreira, 1939). Mas en-

quanto “o modelo de escola e de educação do Estado Novo não tem memória na instrução pública portuguesa” (Nóvoa 1990: 509), as histórias da literatura portuguesa referidas têm de ser relacionadas com propostas anteriores, das quais selecionamos, sem obviamente as poder analisar agora, as de Barbosa de Bettencourt (História Comparativa da Literatura Portuguesa, Paris-Lisboa, 1923), José Agostinho (História da Literatura Portuguesa, Porto, 1927) e Au- brey Bell (A Literatura Portuguesa. História e Crítica, Coimbra, 1931, original inglês 1922). Posteriormente ao núcleo relacionado com a legislação, desta- camos duas obras de Fidelino de Figueiredo (Literatura Portuguesa. Desenvol-

vimento Histórico das Origens à Actualidade, Rio de Janeiro, 1941, e História Literária de Portugal, Coimbra, 1944), a Breve História da Literatura Portugue- sa, de Óscar Lopes e Júlio Martins (Lisboa, 1945) e, concluindo o percurso

que nos propomos traçar, a Ordenação Crítica dos Autores e Obras Essenciais

da Literatura Portuguesa, de João de Castro Osório (Lisboa, 1947). Só nesta

última nos deteremos.

Começamos por um breve comentário à legislação de 1936 acima citada, que não deixa dúvidas sobre uma visão do ensino como “sistema de incul- cação ideológica” (Nóvoa 1990: 461),3 pelo qual foi responsável o ministro

Carneiro Pacheco (de 1936 a 1940), anteriormente professor da Faculdade de Direito de Lisboa. À aula de Português é conferido um papel especial por ser um dos lugares em que melhor se pode “desenvolver o sentimento nacional e a formação moral do aluno” (1245),4 embora só o 2.º ciclo obrigue a leituras

3 Cf. comentário de Rómulo de Carvalho sobre este momento em que, a nível europeu, a

ditadura portuguesa se fazia acompanhar da italiana e da alemã, tendo o bolchevismo sido eleito como alvo privilegiado de combate, nomeadamente, para Portugal, devido aos acontecimentos na vizinha Espanha: “Tudo se congregou, portanto, para que a mão forte de Salazar se fechasse sobre a Nação. Governar não seria apenas pôr em ordem a vida económica e financeira do país mas também e com prioridade, defendê-lo do tráfego e da circulação de ideias […] Mais do que nunca seria necessário olhar para a Escola […]” (Carvalho 1996: 753).

4 Decretos-Lei n.º 27084 e 27085, de 14 de outubro de 1936, in Diário do Governo, I série,

História literária e traduções no Estado Novo literárias.5 Da secção dos livros, porém, está expressamente excluída uma his-

tória da literatura, e os “cortes” nos textos são aconselhados porque o “intuito moral” não pode perder-se de vista e há o perigo de desenvolver nos alunos “tendências prejudiciais”. É só no 3.º ciclo que se preconiza o “estudo conve- nientemente graduado da literatura portuguesa” (1274), com as quatro sec- ções que as obras referidas em geral seguirão: origem da língua portuguesa, época medieval (séculos XII a XV), época clássica, com três períodos, e época

romântica (que alguns autores terminarão com o Realismo, outros nos princí- pios do século XX). Além do “castelhanismo” a propósito do Cancioneiro Geral,

da influência italiana no Renascimento, e dos “aspetos gerais das sociedades europeias no século XVII” (1274) (porquê só neste?) não há referências a con-

tactos internacionais. A história literária serve à “educação cívica dos alunos” e pretende oferecer uma “síntese da vida mental da Nação” (1275). Tendendo o ensino liceal à “formação da mentalidade corporativa” (Art.º 1, Cap. I), pode considerar-se a história literária um útil instrumento desta formação.

Passaremos a referir-nos brevemente ao núcleo das obras mais relaciona- das com a legislação. Augusto Dias6 dedica a sua obra ao bispo de Lamego

de então. O seu discurso é essencialmente adjetivante, com pouca informação factual, sem rigor a nenhum nível. Os títulos das obras estrangeiras surgem em português, e o “sincronismo literário” que antecede cada época e cada período dentro dela é constituído apenas por nomes, datas e juízos sobre os autores. A periodização da “Época clássica” é designada pela respetiva cultura estrangeira dominante, um procedimento comum a muitas obras. A ideologia é manifesta, embora inconsistente, por exemplo na avaliação ambígua da in- fluência castelhana e dos Jesuítas. Já a Revolução Francesa (expressão que nunca aparece) é objeto de hostilidade: os enciclopedistas “embrenharam-se em considerações filosóficas perigosas, origem funesta de convulsões sociais” (Dias 1939: 181s.). Mas onde a crítica preconceituosa e moralizante é mais explícita, iniciando uma tradição que se prolongou por décadas, é nos juízos sobre a sanidade mental de autores como Eça, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis e Camilo. Também o realismo é condenado como “advento da República” (289).

5 Para o 4.º ano: Camilo, Júlio Dinis, Garrett; 5.º ano: Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de

Miranda e Camões; 6.º ano: Fernão Lopes, João de Barros, Os Lusíadas, Pe. António Vieira, D. Francisco Manuel de Melo.

6 Apesar das muitas fontes consultadas, não consegui ainda identificar este autor, de seu

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

As referências à tradução são insignificantes. Para além dos lugares comuns do Filinto tradutor pela incapacidade de ser original e da “linguagem perfeitíssi- ma” das traduções de Castilho, admite mesmo assim que a tradução é veículo de inovação ao considerar que as traduções dos grandes autores alemães levaram “a toda a parte o gosto das novas doutrinas literárias” (183).

Muito mais completa, fundamentada e detalhada, a obra do Padre Arlindo Ribeiro da Cunha, professor do ensino secundário, foi escrita no rescaldo das comemorações do duplo centenário da nacionalidade em 1940, justificando- -se assim uma história da literatura como monumento a um povo de descobri- dores e civilizadores (Cunha 1941: V). Tal como em Augusto Dias, aparece-nos um “sincronismo literário” por cada período dentro das principais épocas, di- vidido pelas principais culturas europeias de então (por esta ordem: Espanha, França, Itália, Inglaterra, Alemanha), notando-se aqui algum desvio em relação à legislação: a 3.ª época é chamada de “Moderna” e subdivide-se em Roman- tismo, Realismo e Nacionalismo, e o horizonte internacional é alargado, por um lado, às introduções aos capítulos de cada período, por outro, a referências a culturas não centrais como a escandinava e a russa, admitindo-se, no caso desta, não só fenómenos de europeização do país como de atração e receção dos autores russos no Ocidente. Arlindo Cunha admite a importação de géne- ros literários, como os “romances populares e as canções de gesta” (115, it.

sic) de origem castelhana, ou a “novela pastoril” (298) com o seu berço em Itá-

lia. A obra termina com uma extensa bibliografia, o que nem sempre acontece. Em relação ao papel da tradução, pode falar-se em alguma atenção ao assunto, como é o caso de D. Dinis e da sua política de encomenda de tradu- ções que, segundo o autor, mostra o empenho do rei em enriquecer a língua portuguesa para a tornar independente da espanhola. É justamente este pa- pel de evolução e enriquecimento da língua portuguesa perante a hegemonia do castelhano na Península do século XV, que é atribuído à intensa atividade

de tradução dos Príncipes de Avis e dos Cronistas, que assim “procuraram tornar a prosa portuguesa mais perfeita e adequada à expressão das ideias filosóficas, científicas e morais” (157s.). Admite-se a tradução, portanto, como relevante instrumento político de autonomização de uma cultura. Dignas de registo são ainda algumas referências à adulteração na receção de culturas estrangeiras por via das traduções intermédias francesas (438, 521), no caso dos modelos clássicos (Arcadismo) e da influência anglo-germânica na segun- da metade do século XIX.

História literária e traduções no Estado Novo Da obra de Joaquim Ferreira temos conhecimento de pelo menos duas edições, sendo a primeira de 1939 e a segunda de 1949.7 São desconcertan-

tes as diferenças entre as duas: a referência à conceção de ensino “sintético e afirmativo”, que não deve suscitar nos alunos enigmas, desaparece da 2.ª edição; a 1.ª contém uma bibliografia final extensa, internacional, atualizada, que abrange histórias literárias de outros países, mas nada diz na “Advertên- cia” introdutória sobre a componente internacional da literatura nacional. Já a “Advertência” da 2.ª edição, além de defender a inclusão de textos e autores não-canónicos, propõe-se “avivar aspetos da civilização europeia relaciona- dos com a atividade mental do nosso país” e indagar do lugar das letras por- tuguesas na “evolução cíclica da cultura universal”. É notória ainda a despre- tensão com que Ferreira assume que, considerando ele a história literária uma arte, o processo de seleção decorre do gosto e do temperamento. Quanto à periodização, segue de perto a proposta na legislação: basta consultar o índice para verificar que os pontos a tratar em cada capítulo são copiados do texto da lei. Por amostragem, servimo-nos do segundo período da “Época clássica” (século XVII), onde encontramos formulações como “o absolutismo

e a moda do estilo afetado”, “o misticismo sebastianista” ou “decadência dos géneros poéticos”. Contudo, há significativas incursões autorais, de carácter ideológico: ao desenvolver o ponto sobre “as sociedades europeias no século

XVII”, se é verdade que fala, em registo neutro, dos enciclopedistas em França,

já é com inequívoco repúdio que verbera os crimes da Inquisição, tanto em Es- panha como em Portugal, considerando “irrecusável” a “deletéria ação” desta nas letras (Ferreira 1939: 507ss.). Dedica até uma secção à instituição da cen- sura pelo Santo Ofício, afirmando que “a censura prévia foi um dos óbices ao progresso das ideias neste século” e que “a supressão impiedosa da liberdade nas ideias acarretou insanáveis estragos na cultura” (511). A conclusão sobre o nosso século XVII é de isolamento em relação à Europa culta (512), pelos três

fatores que desenvolveu: “decadência política, o terror da Santa Inquisição e

7 Formado em Direito pela Universidade de Lisboa, J. F. (n.1899) foi advogado e ensaís-

ta, tendo também publicado poesia. No primeiro campo, foi autor de História das Instituições

do Direito Romano (1920), Organização Política e Administrativa da Nação (1936), Apologia do Sindicato (1938). Como ensaísta em temas de história da literatura portuguesa, tem numerosos

estudos a acompanharem edições de Fernão Lopes, João de Barros, D. Francisco Manuel de Melo, Camões, Diogo Bernardes e Filinto Elísio, que não são referidos por A. J. Saraiva e Ó. Lopes. É ainda autor de uma História de Portugal (1953), e de uma Sinopse da Literatura Portuguesa (3.ª ed. 1956).

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

os sequestros da censura” (512).8 Ao leitor de hoje salta ainda à vista a crítica

ao absolutismo, “o maior réu deste aviltamento na literatura do século XVII”

(515). Mas o mais surpreendente é porventura a avaliação muito negativa do rei D. Sebastião, cujos “delírios de cavaleiro andante atiraram o reino ao fundo do abismo – a entrega ao estrangeiro” (516), e até dos Descobrimentos, “em- presa marítima excessiva para tão pequenino país” (516). Quando olhamos para as recomendações sobre a disciplina de Português logo no 1.º ciclo: “Far- -se-á compreender ao aluno que o sentimento nacional da grandeza da Pátria está íntima e indissociavelmente ligado à nossa tradição colonial. É indispen- sável atrair a sua atenção para as condições de vida e progresso do Império Colonial Português […]” (12449), confirmamos, apesar de tudo, a existência de

algum espaço para a diferença no Estado Novo.

Merece destaque o caso do republicano socialista Agostinho José Fortes (1869-1940),10 professor universitário, escritor, jornalista, tradutor, autarca e

deputado republicano. A preocupação com o rigor científico ressalta logo da sua visão da história da literatura como “ciência positiva” que, como tal, se deve “ensinar e aprender” (Fortes 1936: 5). Para o assunto que aqui nos traz, saliente-se a insistência do autor na internacionalidade natural do estudo das literaturas nacionais, posição em que não podemos deixar de ler (estamos em 1936!) alusões críticas veladas à situação portuguesa: “[…] um povo, por mais isolado que pareça viver, e um escritor, por mais pessoal que se nos afigure, estão sempre em contacto com outros povos, com a elaboração li- terária de outros escritores, quer passados, quer coevos, atuando-se reci- procamente as atividades literárias coletivas. Daqui resulta a necessidade do

8 A Inquisição consta do programa de História de Portugal do 2.º ciclo (no 1.º não havia

História), mas no contexto positivo da expulsão dos judeus como fator da “unidade religiosa” e da “aversão do povo a judeus e cristãos-novos”; logo de seguida surge “o estabelecimento da Inquisição e seu significado político e social” (1266).

9 V. atrás nota 4.

10 Formou-se em Lisboa no Curso Superior de Letras, onde ingressou como professor em

1904, tendo depois passado para a Faculdade de Letras após a extinção daquele. Também le- cionou no Ensino Particular. Foi vereador da primeira vereação republicana da Câmara Municipal de Lisboa, ainda durante a Monarquia, e organizou o primeiro congresso municipalista português. Após a implantação da República, foi presidente da Junta Geral do Distrito de Lisboa e, a partir de 1915, eleito senador por Aveiro em algumas legislaturas. Fundou a coleção “Biblioteca da Edu- cação Nacional”. Colaborou na História da Literatura Portuguesa Ilustrada, de A. Forjaz Sampaio e na História do Regime Republicano, de Luís de Montalvor. (Fonte: Dicionário Cronológico de

História literária e traduções no Estado Novo estudo comparativo das diferentes literaturas dos povos modernos […]” (11s.). O objeto da história da literatura é, assim, o “estudo sistemático da literatura dum povo, procurando determinar-lhe a evolução, as características e as rela- ções com as doutros povos […]” (11s.). Em consonância com esta abertura, e para além do alargamento que propõe do objeto da história da literatura, por exemplo, a textos científicos (não surpreendente, dada a sua filiação filo- sófica) regista-se o seguinte: grande elogio da Marquesa de Alorna; regozijo pelo fim do divórcio intelectual de Portugal com a Europa mediante a boa receção dos enciclopedistas no tempo de Pombal; reconhecimento da cul- tura francesa como cultura intermediária no contacto com culturas periféricas como a russa e a escandinava (17); reconhecimento do papel fundamental da tradução no preenchimento de lacunas e na renovação/inovação do reportório teatral (caso de Nicolau Luiz, 327), e perante a decadência do teatro português (321s.), particularmente ilustrada com o século XVII e o nosso “enfeudamento

literário” à Espanha (213); avaliação positiva de estrangeirismos também por necessidade de preencher lacunas lexicais do português (574); reconhecimen- to em como géneros literários se podem desenvolver por influência estran- geira, como é o caso do romance social (385). Não espanta, portanto, que à atividade da tradução seja dedicada considerável atenção, sendo muitas as menções. Saliente-se, por exemplo, a aceitação como prosa portuguesa das traduções de Cícero por Vasco Fernandes Lucena, a colocação de traduções lado a lado com originais no comentário à obra de Manuel de Figueiredo, elo- gio da tradução pelo bom domínio da língua de chegada (caso de Francisco José Freire, 376), as traduções de alguns árcades como tendo aberto caminho para o Romantismo,11 longa referência a Castilho tradutor, sugerindo para as

suas obras o termo mais exato de “adaptações à língua portuguesa”, porém não entronizando os originais, antes sugerindo que aquelas, por vezes, exce- dem os originais em “graça e elegância de estilo” (404s.). A finalizar, registe- -se esta afirmação inequívoca sobre a ocupação quase total de um género/ /atividade por traduções: “Nos últimos decénios do século transato e nos que

11 Cf. o estudo de caso de Fernanda Gil Costa a propósito das traduções de Salomon Ges-

sner (Costa 1995), do qual se conclui uma leitura contrária: “[…] a sua difusão esteve entre nós sempre ligada a forças conservadoras, interessadas na reprodução do mesmo e hostis à renova- ção. […] Em Portugal, ao contrário do que aconteceu em França, o culto de Gessner não pode ser equacionado, sem ambiguidades, com a difusão do fenómeno de gosto e sensibilidade que a