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Conclusão: ideias dominantes sobre tradução e estatuto das línguas

Ideias dominantes sobre tradução em Portugal

4. Conclusão: ideias dominantes sobre tradução e estatuto das línguas

Tentou-se acima uma interpretação sobre a aceitabilidade, no fundo a fluência, como norma inicial dominante da tradução em Portugal.9 Pretende-se

agora seguir outra pista fornecida por Michael Cronin, um estudioso das mino- rias culturais e linguísticas. Cronin fala da relação entre estratégias tradutórias (no sentido que acima se deu à “norma inicial” do comportamento tradutório) e o estatuto minoritário ou maioritário das línguas, isto é, há que reconhecer que as perspetivas sobre tradução, do ponto de vista das línguas minoritárias, nunca será a mesma das línguas maioritárias:

Advocacy of non-fluent, refractory, exoticizing strategies, for example, can be seen as a bold act of cultural revolt and epistemological generosity in a major language, but for a minority language, fluent strategies may represent the pro- gressive key to their survival. (2010: 250)

É certo que a língua portuguesa não está em vias de desaparecimento, e quanto a ser língua minoritária, também é discutível, se pensarmos nos seus muitos falantes espalhados por vários continentes. Porém, e como já se disse, a abundância de traduções confirma o estatuto minoritário da língua portugue- sa, facilmente visível quando se compara com o inglês: só cerca de 3% dos livros publicados em todo o mundo em língua inglesa são traduções (incluin- do todos os géneros, da literatura aos manuais técnicos), segundo o PEN/ /Institute Ramon Llull Report on the International Situation of Literary Transla- tion, de 2007 (cit. in Werner 2009: 4). Ora, e ainda segundo Cronin, “minority- -language cultures are translation cultures par excellence” (2010: 250), o que se aplica tanto a Portugal como ao Brasil – pois o estatuto das línguas não tem a ver com o número de falantes.

Referindo-se embora ao mesmo assunto, Pascale Casanova opera com uma linguagem que revela com maior clareza o que está em jogo: as relações

9 Esta exigência é feita também para a tradução não-literária. Veja-se o que Vasco Pulido

Valente escreveu a propósito da biografia “Salazar”, de Filipe Ribeiro de Meneses: “O livro, origi- nalmente escrito em inglês, foi traduzido com zelo mas sem fluência. Uma pessoa tropeça quase linha a linha na sintaxe inglesa, na pontuação inglesa, na linguagem convencional da academia inglesa. De qualquer maneira, vale a pena ler…” (Público, 5 de setembro de 2010)

Ideias dominantes sobre tradução em Portugal de poder entre as línguas/culturas. Casanova vê a tradução como uma forma específica das relações de domínio que se exercem no campo literário interna- cional. Ora, estando cada língua ligada a um determinado capital linguístico- -literário que lhe confere mais ou menos prestígio, resulta daqui uma desigual- dade política e social entre as mesmas, o que, por sua vez, faz com que a tradução redunde numa troca/intercâmbio desigual (2002: 7-8). A observação desta desigualdade leva-a a propor a oposição dominante/dominado como critério para aferir do capital linguístico-literário duma cultura (2002: 8). Esse capital é elevado quando proferimos a expressão “a língua de Shakespea- re” ou “a língua de Cervantes”. Embora também se fale de “a língua de Ca- mões”, não restam dúvidas de que a nossa é uma língua “dominada”. Como tal, e retomando as palavras de Cronin já citadas, suporta melhor “estratégias fluentes” de tradução, ao invés de, e evocando a autoridade de Friedrich Sch- leiermacher dois séculos atrás (1813), ensaiar métodos “estranhantes” (Sch- leiermacher 2003).

O desafio que Cronin lança às línguas minoritárias (= dominadas) é todo um programa de investigação. Estas, sob a pressão das línguas poderosas/do- minantes, podem sucumbir ao nível lexical e sintático, tornando-se a imagem espelhada da língua dominante. É tarefa dos estudiosos da tradução e dos tradutores avaliar criticamente o que é que uma língua absorve, o que é que lhe permite expandir-se e o que a faz definhar, perder a amplitude sincrónica e diacrónica dos seus recursos expressivos:

From the perspetive of minority languages, we must distinguish therefore be- tween translation-as-assimilation and translation-as-diversification. Language speakers can either be assimilated through self-translation to a dominant lan- guage or they can retain and develop their language through the good offices of translation and thus resist incorporation. (2010: 252)

Resta-nos desejar que as ideias dominantes sobre tradução em Portugal possam levar ao desenvolvimento da língua portuguesa porque, apesar da presença maciça do fenómeno, permitiram “resistir à incorporação”.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

Anexo I

Soneto XIX de Os Sonetos a Orfeu, de R. M. Rilke XIX

Wandelt sich rasch auch die Welt wie Wolkengestalten,

alles Vollendete fällt heim zum Uralten.

Über dem Wandel und Gang, weiter und freier,

währt noch dein Vor-Gesang, Gott mit der Leier.

Nicht sind die Leiden erkannt, nicht ist die Liebe gelernt, und was im Tod uns entfernt, ist nicht entschleiert.

Einzig das Lied überm Land heiligt und feiert.

Ideias dominantes sobre tradução em Portugal

XIX

Mude embora o mundo como as nuvens depressa, a perfeição regressa a um antes profundo. Sobre ir e mudar, vasto e livre dura teu ante-cantar, deus da lira pura. Ignoradas dores, amar sem saber quanto, distâncias maiores que a morte não quebra. Sobre a terra o canto santifica e celebra. (Rilke 2017: 121)10

Tradução de Vasco Graça Moura

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

Ainda que se mude rápido o mundo como figuras de nuvens,

todo o perfeito tomba de volta ao primordial.

Por sobre a mudança e a marcha, mais longe e mais livremente, dura ainda o teu pré-canto, deus com a lira.

Os sofrimentos não são reconhecidos, o amor não é aprendido,

e o que na morte nos afasta não é desvelado.

Unicamente a canção por sobre o campo santifica e celebra.

(Rilke 2005: 49)

Capítulo 4

Introdução a uma bibliografia crítica da tradução