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anos Caçapava), especialmente naqueles locais onde os rios se estreitam, possibilitando a

OS TEMPOS E OS ESPAÇOS DA CAMPANHA DO RIO GRANDE DO SUL ATRAVÉS DOS CAUSOS: O CONTEXTO DA PESQUISA

com 0 objetivo de situar historicamente a Campanha no contexto da formação do país e da

83 anos Caçapava), especialmente naqueles locais onde os rios se estreitam, possibilitando a

passagem. São os famosos “passos” (parece óbvio, mas demorei um tempo para associar o

O escritor Simões Lopes Neto (1961[1913]), criou um fascinante conto envolvendo o Cerro, a partir de versões orais, chamado “A Salamanca do Jarau” . Leal (1989; 1992b) utiliza este conto para analisar a constituição do sujeito masculino na cultura gaúcha.

nome à função). Aos “passos” , da mesma fomna que aos cenros, são conferidas denominações

que indicam um fato oconido no local"’® ou que aludem a alguma característica peculiar (Passo do

Cação, Passo dos Enforcados, Passo Feio, Passo dos Brito), sendo que muitos também possuem

causos que justificam a sua origem: “ (...) E era o Passo das Tropas porque os senhores que

tavam pescando diziam: ‘Aqui é o famoso Passo das Tropas que antigamente os campeiros... aqueles caras passavam com tropa aqui porque era o río mais baixo e não sei o que... Mas não dá peixe a í.”' (Seu Sadi, 50 anos - Uruguaiana). Além dos “passos” , também aparecem nas narrativas as “banrancas” (encostas de rio): Barranca da Sanga Alta; os rincões (locais muito

abrigados, cercados por matos ou rios): Rincão da Moça; as taperas (antigos locais de moradia.

Já abandonados): A Tapera do Finado Vatgas, etc. Também as antigas árvores, como os umbus,

que muitas vezes encontram-se isoladas em meio a um campo aberto e dão margem à uma

infindável gama de narrativas sobre “enterro de dinheiro”: “(...) pois já faz mais de ano que eu

sonho que lá em tal lugar, num umbu velho, que tem uma cerca de pedra numa fazenda, assim assim assim... E lá tem uma panela de dinheiro. (...) Era na casa do cara, do cara o outro que... Eu sei que era entre São Gabriel e Manoel Vianna. Chegou lá e o cara arrancou o dinheiro que tava lá prá ele.” (Joãozinho, 40 anos - Caçapava do Sul)

É interessante considerar a importância que categorias como “limpeza” e “sujeira”

tomam no momento da caracterização da vegetação da Campanha, mais especificamente dos

diferentes tipos de campo. Os homens que trabalham diretamente na lida campeira fazem uso

freqüente destas categorias, definindo “ campo limpo” como aquele que possui apenas gramíneas

ou vegetação baixa, propícia para a pastagem do gado e “campo sujo” ou “sujeira” como os

trechos de mato ou vegetação mais alta“*^. Há inúmeros exemplos destas citações: “(...) houve

uma guerra, eu era guri e vivia escondendo os cavalos no mato. Mas lá onde eu morava, nessa zona, lá são uns campos, uns lugar muito sujo, não é? Muito grande... então, não sei se eles (os

Para exemplificar, incluí o causo do Morro do Queima Chapéu, contado por Seu Zeno, no Anexo 1. Muitos “passos” ganharam notoriedade por servirem de cenário para lutas travadas durante as revoluções: “Combate do Passo das Carretas” (Teixeira, 1994); fiiga de Honório Lemes pelo Passo da Lenheira (Pozzobon, 1997: 58), etc.

Na zona da Campanha o cultivo da terra é dificultado pela baixa qualidade do solo, bastante pedregoso e com a superfície coberta de gramíneas, formando luna pastagem natural favorável á criação de bovinos,

piquetes de soldados) tem medo de entrar... mas não entram lá.” (Seu Neto Ilha, 83 anos -

Caçapava) - “Uma vez nós fomos dar uma surpresa''^ e aquilo seguia todo mundo de noite,

carroça, carreta, tílbure... e os rapaz à cavalo e cheguemo na frente da casa do... finado Teles Mota, õtal E foi aquele tiroteio e disparou cavalo... (risos) mas menos mal que era um campo limpo” (Seu Valter A. Prata, 68 anos - Alegrete)

A relação nnuitas vezes instável entre as fronteiras dos três países também tem uma

participação ativa nos causos, não somente naqueles que tratam da história do local, mas em

muitas situações contemporâneas:

Tu não chegou a conhecer a linha divisória aqui, na campanha? Bah! Ali é tenrivel. Olha... qualquer tipo de banditismo acontece naquele lugar, entendeu? O que descobrem no mato e aparecem morto... ninguém sabe quem foi, ninguém... Olha... prá nós da polícia... é que a gente não pode transmitir, mas as vezes a gente acha corpo. E a gente não sabe... não sabe nem quem foi, não sabe se foi a polícia, se foi no Uruguai... Não, porque... o corredor da linha divisória é uns marco assim, só acompanha o marco (fronteira seca). E vai indo... tem 80 quilômetros. (Seu Washington - Santana do Livramento).

Há ainda diversos causos sobre contrabando, sobre fugas ou exílio, sobre as diferenças

culturais, que serão abordados no decorrer deste trabalho.

Apesar de minha pesquisa não ter se restringido à zona mral, gostaria de encen-ar este

capítulo com uma pequena descrição de como se organizam as estâncias em tenmos de moradia,

cotidiano de trabalho e lazer e como algumas falas de contadores exemplificam esta organização.

Como estive em propriedades de diferentes portes, desde uma das maiores do Rio Grande do

Sul, com cerca de sessenta empregados somente na sede, sem considerar os “ postos", até

“estanciolas” de 300 hectares (uma dimensão muito pequena para os padrões da Campanha),

procurarei fazer um apanhado mais geral, pois a dinâmica de funcionamento de todas guarda

A “surpresa” era uma atividade comum em toda a Campanha até há bem poucos anos, sendo que hoje tomou-se rara. Era uma espécie de festividade, em geral comemorativa de um aniversário, onde os vizinhos roubavam um novilho dos campos do aniversariante, cameavam, assavam, e no dia seguinte iam, em caravana, dar a “surpresa”. Estas eram ocasiões nas quais reunia-se toda a vizinhança e onde a presença de músicos (gaiteiros, violeiros, ...) era fundamental para garantir o baile, que podia durar até três dias. O “detalhe” é que nem sempre o aniversariante ficava feliz de ser roubado...

bastante semelhança. Talvez a maior diferença entre elas se encontre no número de empregados

e na distribuição de suas funções, sendo que nas estâncias maiores há maior especialização e

nas menores poucos empregados acumulam várias atividades. Exemplifico com a descrição da

maior estância - a São Pedro, de Uruguaiana - de onde se pode depreender a organização e o

cotidiano das menores: existe sempre uma “ hierarquia” (expressão designada pelo próprio

administrador da estância) na divisão de trabalho, que se reflete em momentos como as

refeições, que os peões fazem num refeitório maior, separado por uma parede do refeitório

menor, onde almoçam o veterinário, o capataz, alguns “ajudantes a pé” e eventuais estagiários

de veterinária ou agronomia. Era neste local que eu fazia as refeições. As diferenças vão desde

os móveis de um e outro refeitório, o primeiro com banquinhos de madeira, o segundo com

cadeiras confortáveis, até a própria comida, um pouco mais simples para os peões. As mulheres

que moram na estância são todas esposas ou filhas dos peões e fazem as refeições em sua

próprias casas, com seus maridos, que também devem trabalhar na estância. Hoje em dia, com

exceção dos mais jovens, poucos peões não são (ou foram) casados, embora vários residam

sozinhos na estância, ficando as mulheres na cidade. Outro fato bastante comum são aqueles

homens que não são casados nem solteiros, e se auto-designam “deixados” pelas mulheres. O

próprio casamento nomialmente não é formalizado, sendo representado apenas pela união dos

poucos bens de ambas as partes e pela moradia em comum. O dia-a-dia da estância está

diferenciado confonne as categorias de trabalho, apesar da existência de práticas comuns a

todos, como a de tomar o chimarrão, ou mate, como é chamado na região. O mate é preparado

bem cedo, pela manhã, logo depois de feito o fogo numa das muitas lareiras (que vem substituir o

antigo “fogo de chão” , antes existente no centro dos galpões) colocadas nos galpões e casas de

todas as estâncias. Antes do café, e com a noite ainda escura, toma-se o mate. Logo depois do

café da manhã, um peão previamente designado vai buscar os cavalos, no campo, para todos os

outros. Independente da atividade do dia. a primeira atitude dos peões é encilhar seu cavalo. As

mulheres seguem nas lidas da casa e os “ajudantes a pé” com seus consertos. O trabalho dos

peões é quase sempre diferente de um dia para o outro. Num dia castram touros, no outro

marcam novilhos, no seguinte vacinam o gado num posto distante. A atividade é sempre

designada pelo veterinário/administrador e coordenada pelo capataz. Próxinno ao meio-dia, todos

vão parando suas atividades e reunindo-se para tomar novamente o mate, em geral em um dos

galpões“ existentes ou em suas próprias casas. Os peões desencilham seus cavalos e deixam-

nos soltos nas proximidades. O sinal das refeições é dado através da batida em um sino ou um

fen-o pendurado na frente dos refeitórios. Depois do almoço é hora da sesta, em que todos

descansam, sentados no galpão ou dormindo em seus quartos, com exceção da cozinheira, que

ainda tem de limpar toda a louça. À tarde, próximo às 14 horas, os peões voltam a encilhar seus

cavalos e as atividades recomeçam. Às 18 horas a rotina se repete, os cavalos são soltos no

campo e prepara-se o mate. Nomialmente as brasas permanecem nas lareiras e o fogo é

somente reatiçado. Logo o sinal da janta é dado, quase sempre antes da 19 horas. Depois da

janta, para “deixar as noites de invemo um pouco mais curtas”, alguns olham T V (especialmente

os mais jovens), outros conversam, contam causos e eventualmente jogam o truco®\ Por volta

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