“Bem está o que bem acaba” (e se nâo está bem é porque ainda não acabou)
Ao longo desta dissertação procurei, através dos conceitos e conselhos de pesquisadores
que vierann antes de mim e dos dados etnográficos que possuía, desenvolver uma “ perfonnance
escrita” que pennltisse analisar e compreender os várias aspectos que compõem as
performances orais e corporais de contadores e contadoras de causo. Minha estratégia para
captar a “situação viva” foi, de certa fonna, desconstnií-la e, através da descrição e análise de
cada elemento, tentar, aos poucos, realizar sua reconstrução. Mas este “quebra-cabeças” de
personagens, falas e imagens, no entanto, foi se transformando à medida que ia sendo
reconstruído e neste momento penso que, talvez, algumas peças tenham me escapado. Isto
porque a prática de contar e ouvir histórias na Campanha do Rio Grande do Sul está inserida num
complexo “evento de fala” que, através do uso de várias linguagens, representa a vitalidade de
uma tradição que é recriada dia após dia. Neste processo dinâmico, as performances vão se
constituindo com base em alguns fatores comuns, que procurei detectar e compreender. Um
destes fatores, que se mostrou primordial para a análise das perfomnances, foi o contexto, que
engloba, além do horário e local de ocorrência destas, toda a questão da disposição e
participação da audiência e do jogo surgido nesta interação. Neste sentido, cada experiência de
perfonnance, porque efêmera, é única. Mas é exatamente isso também que move o interesse
contínuo de toda uma comunidade em relação a esta forma de divertimento e prazer.
Se no Rio Grande do Sul o contexto se mostrou bastante maleável, isso me forneceu um
indicativo de que as manifestações orais na região, bem como suas performances, se construíam
também com um pressuposto de flexibilidade e adaptabilidade aos novos contextos, o que, sem
A audiência também participa com um papel importante na conformação deste quadro. É
ela que, antes mesmo dos eventos de fala ocorrerem, indica os performers habilitados (o que, em
minha pesquisa, acabou levando à constituição da rede de contadores), atribuindo-lhes a
responsabilidade de um desempenho que será avaliado durante a sua performance. Durante a
dissertação pretendi demonstrar que, ainda que eu fosse a única audiência presente, e que
apenas ouvisse ou respondesse com um “Ahã” à perguntas como “Viu?" ou “Tu m e acredita?” ,
era exatam ente eu, ou a audiência, que conferia motivação para o contador e significado para sua
existência. E percebendo agora a sua complexidade, entendo que, detendo-me mais na
participação dos contadores, talvez não tenha salientado e nem analisado suficientemente as
inserções da audiência nos eventos descritos no decorrer do trabalho.
Em relação aos contadores, priorizei o enfoque em sua manifestação física, na sua
performance como corpos em movimento, como postura, como representação física do ser no
mundo. E nessa mirada concentrada foi possível verificar que nas perfonnances que contadores e
contadoras compõem, junto com sua audiência, estão se revelando traços, gestos, vestígios de
uma memória construída a partir da experiência do indivíduo como ser cultural. E assim como é a
experiência de vida que qualifica os contadores em seu ofício, é a experiência, o aprendizado do
corpo na cultura que possibilita uma identificação com sua comunidade nanativa. Mas, não são
apenas estes corpos, em atitudes diferenciadas do cotidiano, que conduzem à perfomiance,
tam bém a linguagem verbal, em suas falas e silêncios têm uma função poética, que se manifesta
na forma específica de construção de cada gênero de narativas. Na Campanha, os causos
envolvem um vasto repertório, que incluem desde atos de coragem e bravura frente à guen^s ou
seres sobrenaturais até relatos do cotidiano, fofocas, segredos e mentiras. No entanto, de acordo
com Bauman (1977: 14), é impossível definir a performance de acordo com um determinado
gênero de narrativa, pois estes diferem de sociedade para sociedade. A perfomnance, ao
contrário, como procurei demonstrar até aqui, é definida pelo contexto, onde são fornecidos
alguns indícios (“ keys”), convencionados culturalmente, que permitem à audiência interagir,
participar do evento integralmente. No caso dos nossos contadores, por exemplo, frases do tipo:
“ Isso foi um fato acontecido. É verdade.” , em geral estão preparando a platéia para uma história
há tipos de fala que são esperadas pelos membros da comunidade como suscetíveis à
performance, de acordo com o contador envolvido.
É nesta composição de linguagem verbal, paraiinguagem (e, poderíamos dizer,
metalinguagem)e linguagem corporal que se desenvolve a atuação dos contadores no tempo e o
espaço. Neste contexto onde a oralidade é predominante e assume diversas formas de
transmissão, a escrita ocupa um espaço complementar. O s pequenos livros em geral publicados
pelos próprios contadores, são distribuídos por estes em sua comunidade e acabam sendo um
estímulo para a ocorrência de novas performances e do exercício de novos contadores.
Como “ porta-vozes” da comunidade, contadores e contadoras potencializam através da
perfonnance uma forma de viver em sociedade. Esta “emergência” da organização social
(Bauman, 1977: 42-43) toma forma na interação entre contadores e audiência, que continuamente
rearticulam-se em sua rede de relações.
Nesta comunidade narrativa tão rica, onde todos parecem ter histórias prá contar, alguns
dispositivos especiais são utilizados por aqueles contadores legitimados e reconhecidos como tal.
E a negação da própria habilidade surge como o primeiro deles. “ Disclaimers” de sua
performance, eles ainda vão servir-se de pausas, silêncios, repetições e de algumas fórmulas
especiais para identificarem-se diante de sua audiência, especialmente porque muitos membros
desta dominam tão perfeitamente estes códigos que estão habilitados a tomarem tam bém o papel
de contadores. Além das mulheres, com suas histórias sobre a intimidade e o não-dito das
famílias e suas perfomriances de caráter privado, encontramos ainda, como categorias de
contadores, os tradicionalistas e suas histórias de vencedores ou dos que perderam heróica e
honrosamente. Já aqueles heróis desmentidos, ladrões e desonestos, desgraçados e
expropriados, os bastardos, surgem no chão de algum galpão ou na periferia de uma grande
cidade, invariavelmente ao lado de uma garrafa de cachaça, da boca de alguno velho peão “con
m ala suerte” . M as existem ainda outros lados desta preciosa moeda (provavelmente de ouro,
encontrada numa panela de barro enterrada debaixo de um umbu): para além das mulheres, dos
tradicionalistas e dos velhos “bon^chos” há também aqueles historiadores, na maioria auto
didatas, que dedicam-se a escrever a história de suas cidades em versões romantizadas, repletas
autoria. Encontramos ainda os idosos, com seus conselhos e uma rica história de vida e,
finalmente, existem todas aquelas pessoas “comuns” , que possuem a memória ou o fragmento
de algum causo. Os contadores de causos, assim, já não se afiguram na maneira clara e bem
definida do velho sentado no galpão, em frente ao fogo de chão, com um círculo de peões
sentados ao seu redor, mas aparecem matizados, articulando novos espaços, novas relações e