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endereço de Dona Maria Odúlia (chamada de Dona Marica) em mãos, fui procurá-

3.3 “Não sendo mentira são sempre verdade” a presença da mentira nas performances

Com 0 endereço de Dona Maria Odúlia (chamada de Dona Marica) em mãos, fui procurá-

la, em outra cidade da fronteira. Chegando lá, fui muito bem recebida por sua família. Encontrei-a

sentada numa poltrona, numa salinha do segundo andar da casa, com um cobertorzinho sobre as

pemas, tomando mate doce (prática comum entre algumas mulheres e crianças) e fazendo

crochê. Muito lúcida, Dona Marica logo se mostrou uma grande contadora, empregando,

inclusive, uma expressão comum a alguns contadores, utilizada com a mesma entonação, por

exemplo, pelo Gaúcho Pampa, na conclusão da maioria de suas sentenças: “ Éééé verdade...”

Segue agora a versão de Dona Marica:

Eu - Eu acabei de chegar de Livramento agora e o Washington m e falou que eu viesse conversar com a senhora, que a senhora tem uma história muito bonita da sua vida, de como a senhora veio pro Brasil e como é que se casou e tudo... Eu queria que a senhora me contasse alguma coisa disso, (silêncio) A senhora veio quando pequena ainda, né? Dona Marica- Não, eu vim com doze anos pro Brasil. O meu pai faleceu, eu fiquei com sete anos... a í vendemos o campo... tinha uma chácara do parente da mamãe prá vender e um mano comprou. Com quinze ano eu me casei.

Eu - Ah, é? E a senhora é uruguaia, né?

Dona Marica - Eu sou, nasci em Catalão, Guabiju de Catalão. Pois outro dia fomos lá... tem uma doutora a í que quer me aposentar no Uruguai. (...)

Eu - Sabe o que é que o Toco (apelido de Seu Washington) me falou? Que a senhora tinha sido roubada do Uruguai quando era pequena... (ela ri bastante) Disse assim: “Ah, a vovó foi roubada."

Dona Marica (rindo)- Ah, é loucura do Toco!

Eu - E a senhora acompanhou essas guenas, essas coisas que aconteceram aqui no Brasil, ouviu falar de muitas...?

Dona Marica - Eu era casada e... o General Honório Lemos... não, outro... “não era o General, era um caboclo (?) muito fino, denrotou a chimangada e toda a gente riograndina” Mas não é o General Honório Lemes, é outro. Uma vez que bateram num chimango porque... tavam tudo acampado aqui no Paraíso, e os maragato vieram e... atiraram eles n ’água, se atiraram n'água igual a capincho. Ninguém m e contou, eu vi. Os chimango se atiraram n ’água igual a capincho. (silêncio)

Eu - E do João Antônio a senhora ouviu falar? Do João Antônio, do Cati? Aquele que degolava o pessoal ali...

Dona Marica - Ah! Degolavam! Era uma malvadeza! Tiravam os cristão das casa, menina, e levavam prás grota e... causo muito sério! (...) Mas é loucura do Toco! Tu vê, o nosso mano comprou campo prá nós, viemos plantar chácara. A mam ãe vivia... nós era dois irmão e três irmã m ulher A Sônia, a Valentina e eu. Eu era a menor. (...)

Entre a narrativa de Dona Marica e a de Seu Washington, talvez nnais do que uma

diferença, possamos encontrar uma semelhança naquilo que Lotman (1978) chamou de “verdade

da linguagem” , pois ambos construíram suas narrativas com conotação de verdade. Para Lotman

(1978: 46), “verdade da linguagem” e “verdade da mensagem” são conceitos essencialmente

diferentes. A mensagem pode ser questionada, as afimiações podem ser postas em dúvida, mas

a linguagem, no nosso caso, a linguagem narrativa, não pode ser colocada em julgamento: em

sua construção os discursos se eqüivalem. E é exatamente neste sentido que eu os utilizo aqui,

pois como discursos e como performances, ambos tem sua validade e sua riqueza. Agora, as

razões para a discrepância existente entre as duas versões mereceriam uma outra análise, que

não nos cabe neste momento. No final, talvez acabasse sendo apenas mais uma versão para a

3.4 O Performer: Seu Romão

Assim como as últimas peças é que permitem que a figura estampada num quebra-

cabeças se revele na sua totalidade, pretendo que Seu Romão me auxilie neste momento a juntar

todas a cores, autores, textos, imagens, silêncios e falas apresentados até aqui, dando forma.

através de sua performance, à experiência que este tipo de evento narrativo representa'®°.

Em primeiro lugar, as apresentações: Seu Romão Alves da Costa nasceu em 1° de

outubro de 1919, numa localidade chamada Imbá (“É, aqui, criolinho do Imbá”), no interior de

Uruguaiana. Encontrei-o numa manhã ensolarada de inverno, em agosto de 98. Ele vive na

terceira casa de um terreno repleto de construções de todo tipo, de tijolos até papelão, onde

moram seus filhos e netos e as famílias destes. O terreno localiza-se na periferia de Uruguaiana,

próximo ao Rio Uruguai, numa região que algumas vezes já foi inundada por enchentes.

Na organização desta seção inspirei-me no trabalho de Daniel Mato (1992), Narradores en Acción, que tem como ênfase o desempenho dos narradores e a constituição e o desenvolvimento técnico de sua “arte de narrar” . O livro é dedicado, na sua maior parte, à descrição da atuação de narradores venezuelanos, um a um. Para isso, o autor situa cada contador de acordo com o seu contexto (cidade em que vive, papel que

Seu Romão, ao me

receber, disse que eu

esperasse na rua, pois ele

colocaria uma mesa e duas

cadeiras de plástico no

pátio, para conversarmos. O

ambiente era um pouco

agitado já que, ao fundo, .

duas adolescentes

f

ensaiavam uma coreografia de música funk e crianças, cachorros e galinhas transitavam prá lá e

prá cá. Ele é um homem bastante forte para sua idade e possui uma expressão penetrante. O que

mais chama atenção, nele, no entanto, é a sua inreverência, permeada de um humor bastante

particular. Ficamos conversando durante horas e não precisamos trocar mais de um par de frases

para que ele começasse a me contar longos causos, grandiosamente performatizados. Se eu

ainda tinha dúvidas de que existissem contadores de causos que desenvolvessem uma

performance vocal e corporal, emprestando às suas narrativas um caráter de “espetacular” ,

essas dúvidas se desvaneceram ali. Foi com Seu Romão que comecei a entender alguns

princípios organizadores das performance narrativas na região, como a questão dos contadores

permanecerem sentados, do seu gestual localizado da cintura para cima, da importância da

expressão facial, etc. A partir do contato com Seu Romão aquelas performances “pouco

expressivas” que eu tinha visto até ali começaram a fazer sentido e a me revelar, também, a sua

riqueza, já que é justamente a imobilidade que faz com que os poucos e econômicos movimentos

se tornem tão importantes. Mas, e a questão da espontaneidade? Afinal, eu tinha ido procurá-lo e

era sua única platéia. Que evento é esse que ocorre somente quando o pesquisador chega e,

talvez, somente porque existe aquela pesquisa? De qualquer forma, a performance de Seu

Romão, inserida naquele contexto inóspito, foi impressionante e desconsiderou quaisquer

questões como o possível constrangimento frente ao gravador ou à câmera fotográfica, pois eu e

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