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O Narrador Inexistente dispositivos da performance verbal dos contadores

O Baile na Casa do Antemão^^^

que 0 silêncio participa também da estrutura interna das narrativas, como vem sendo

3.2 O Narrador Inexistente dispositivos da performance verbal dos contadores

que eu não sei contar como é que era, mas era uma coisa séria, brigavam uma barbaridade!” (Seu Valter Costa, 83 anos - Caçapava)

“M as sempre tinha umas histórias, é que eu não m e lembro muito n é . ...” (Gringa, 34 anos - Uruguaiana)

eu mesmo, já tõ muito esquecido de muitas coisas... às vezes eu quero contar uma história de um... não lembro!” (Seu Valter A. Prata, 68 anos - Alegrete)

“Ah não, história eu não sei... (Dona Marica, 93 anos - QuaraO

Estes são apenas alguns exemplos dos muitos contadores, com quem convivi, que não

sabem contar histórias. Não sabem? É claro que sim. Tanto que são reconhecidos e indicados por

isso, mas todos tem na negação da própria habilidade uma prática freqüente, ou ainda, o seu

cartão de visita: “ Eu sou o fulano. Eu não sei muita coisa, mas uma vez me contaram...” Eles

seriam o que Bauman (1977: 21-22) chamou de “disclaimers” da performance, ou seja, aqueles

performers que rejeitam ou negam, num primeiro momento, o poder que lhes é atribuído como

contadores. O posicionamento do performer como um disclaimer foi apenas um dos dispositivos

que Bauman encontrou para classificar os “meios comunicativos” , utilizados em várias culturas,

que indicam a ocorrência de performances narrativas'“*^. A análise que segue será praticamente

toda apoiada na obra de Bauman, considerando que estes meios comunicativos encontram-se

também presentes nas performances de contadores e contadoras de causo da Campanha do Rio

Grande do Sul. Como códigos especiais, que incluem o uso de linguagem poética, arcaísmos

(linguagem antiga adaptada), diferenças em relação à fala cotidiana, eles utilizam, por exemplo,

expressões típicas da região (“lavrei coxilhas inteiras, com boi, arado e pé no muitas,

inclusive, em espanhol, devido às influências entre fronteiras tão próximas {“eu empezei a

caminhar, no m ás..."’'"’ Algumas “frases feitas” locuções populares utilizadas pelos contadores

( “vinha mais perdido do que cusco em tiroteio”), fazem parte da linauacem figurativa, que envolve a cunhagem de figuras originais, frases tradicionais fixas ou antigas figuras em novos

contextos. A presença de paralelismos - a repetição de palavras ou frases, que tanto auxilia na

memorização quanto na fluência da performance espontânea ou improvisada - também é

freqüente (“ficou pobre pobre pobre...”^'*®). Como características paralinoüísticas especiais, que

são aqueles dispositivos da performance normalmente não mantidos na transcrição ou publicação

dos textos, como ritmo, duração pausa, altura e tom de voz, ênfase, podem ser percebidas a

forma muitas vezes cantarolada e/ou rimada das narrativas gauchescas ( “ Vou me despedir do

muuundo, já não quero mais viver, porque a sorte não proteeeje, é escusado eu combater" nas longas pausas que criam um clima de expectativa em relação aos fatos relatados ou nos

silêncios deixados antes da frase de conclusão dos causos’’''®, especialmente naqueles que

envolvem mistério e assombrações. Estas características também são fundamentais na

diferenciação entre as performances e as outras maneiras de falar na comunidade estudada.

Específicas para um contexto ou gênero, as fórmulas especiais, que servem para nomear, muitas

vezes,

0

próprio gênero e tem função referencial, buscando estabelecer a comunicação entre

performer e audiência, são importantes na indicação do início e do fim das narrativas,

delimitando-as e contextuaiizando-as frente aos ouvintes ( “Tem uma de Bagé...”^'’^ - segundo

Ver narrativa de Seu Atanagildo, p. 76.

Tipo de construção comum em toda a fronteira, utiliza palavras como “empezei” (comecei) ou expressões de difícil tradução, como “no más” .

Weitzel (1995: 126), em sua coletânea Folclore Literário e Lingüístico, vai dar vários exemplos de ‘frases feitas’ usadas em todo o Brasil, indicando uma bibliografia específica sobre o tema.

Ver narrativa da Dona Eládia, p. 63.

Ver modinha cantada pelo Seu Romão, p. 97. Ver narrativa de Seu Flouri, p. 86.

Frase utilizada por Seu Graciliano, quando finalmente contou um causo na minha presença (depois de quinze dias na estância).

eles, quando vem de Bagé, a mentira costuma ser grande; ou; “ Viu? Aconteceu. É uma iiistória,

não é?"^^.). Através do apelo à tradição, da referência a episódios ocorridos num tempo longínquo, que vêm sendo transmitidos de geração à geração, os performers buscam uma

avaliação positiva por parte da audiência, que deve legitimar a nanrativa (“então o meu pai

contava que o pai dele, o meu avô...”’^’). Quanto ao último dispositivo abordado por Bauman, sobre os disclaimers da performance, onde uma negação é feita pelo próprio performer, servindo

como um gesto moral que contrabalança seu poder com sua dita inabilidade ou ineficiência, todos

os contadores com os quais tive contato, como já disse anteriormente, inclusive os reconhecidos

como tal, hesitaram em assumir ou negaram num primeiro momento sua habilidade.

A seguir dou o exemplo da presença destes dispositivos numa performance narrativa que

presenciei em S anfA nna do Livramento, quando eu era a única audiência presente’ ®^.

Bah guria, eu não sei nada. As minhas primas, minhas irmã, iam te dar muita história. Eu não sei mesmo. Eu sei, eu sei coisa que passaram... de campanha, mas não sei de história de bruxa, (pausa) Só as minhas irmã véia sabem. (Dona Eládia, 52 anos)

Sim, eu havia perguntado para Dona Eládia se ela conhecia histórias de bruxa. Não, ela

não me contou nenhuma sobre esse tema, mas... contou de lobisomens, do “gaúcho assobiador”

e, inclusive, entre as assombrações mais variadas, falou de uma inédita até então; a múmia (!).

Dona Eládia é a cozinheira da Estância Novo São João e, enquanto conta suas histórias, repletas

de episódios dramáticos, ela se movimenta ininterruptamente pela enonne cozinha do casarão,

antiqüíssimo, agitando-se entre os fogões (há um imenso fogão à lenha e outro fogão à gás), a

panela de feijão ou o chimarrão. Eu descasco batatas e ouço. Em nossa primeira conversa, pela

manhã. Dona Eládia me pergunta se eu ouvi falar da mulher que foi “estrupada” , amanrada num

canro e an-astada pelas ruas até mon^er. Apesar do honror que pudesse resultar da descrição da

cena, quando Dona Eládia a representou, nâo pude evitar uma imensa vontade de rir.

Ver narrativa do Seu Waldemar, p. 107. Ver narrativa de Nara, p. 89.

Caminhando freneticamente pela cozinha com uma colher de pau ou com uma faca na mão,

parando subitamente para me encarar, séria, e pontuando suas frases com graves exclamações.

Dona Eládia é tragicômica. Suas narrativas são extremamente trágicas, mas suas performances

são repletas de “ingredientes” cômicos. E é de sua cozinha que ela vai me ajudar, aqui, a

“destrinchar” alguns dos dispositivos utilizados nas narrativas gauchescas durante a sua

perfonmance verbal.

Em relação à Dona Eládia, já vimos como negava sua capacidade para contar histórias

(“eu não sei nada"), indicando, em contrapartida, aquelas que saberiam e que poderiam me “dar histórias”^^. Além de apresentar-se como “disclaimer” da própria performance, acompanhando um causo de Dona Eládia podemos verificar como ela aciona também outros daqueles

dispositivos classificados por Bauman. Depois da introdução citada acima. Dona Eládia, passou a

me contar algumas dessas histórias que só as suas innãs sabem e contam. Em seguida, fez um

breve silêncio e me disse:

Tu sabe que com essa idade que eu tô, eu só vi um assombro?! (fórm ula especial: ela anuncia o tipo de causo que vai me contarj (silêncio) Só um assombro na vida! M as só um assombro na minha vida! (paralelism o: a repetição / a ênfase em “só um assombro!” aparece como uma característica paralingüística esp ecialj Eu tô dormindo lá em casa, e a minha sobrinha tem um armazém. M as não é, guria (fórm ula especial: busca a minha cumplicidade;, que à meia-noite em ponto m e deu aquela loucura! Digo: “Eu vou lá buscar cigano”, que eu não posso ficar sem cigarro assim, de noite me dá vontade de fumar. Meia-noite em ponto! (repetição/ênfase) Eu fui lá na minha sobrinha. Eu e o Alex. E alguma coisa me disse: “Olha prá trás.” Ai, chego a me arrepiar toda! Tu conhece mõmia? (fórm ula especial: a audiência é chamada a participar)

Eu - Ahã.

Dona Eládia - Bem assim. Quando eu olhei assim aquilo vinha atrás de mim, com as perna cheia daquilo... Eu não disse pro meu gurizinho o que era! Porque se eu digo: “Alex, olha o que vem atrás de mim” eu deixo ele louco pro resto da vida. Digo: “Eu vou correr.” Tu sabe que... ele dobrou aqui, e em cada esquina que eu dobrava... meu Deus! (características paralingüísticas: alteração no volume da voz - fica mais alta; quebra do ritmo da nan-ativa para incluir a exclamação) Eu não sei... Em cada esquina que eu

Esta é unia forma bastante usual da comunidade se referir à atividade dos contadores, o que pode revelar, de certa forma, o valor de troca atribuído às histórias, pois, assim como há os que “dão”, existem também os que recebem as liistórias e que podem retribuí-las contando outras.

dobrava ele fazia assim com as mão (sacode as mãos para cima). Quando eu bati na janela da minha sobrinha, quando ele viu que eu bati na janela da minha sobrinha, ele fez assim ó (faz o mesmo gesto, levantando as mãos para c im a | Era branco, branco, branco, branco!

(repetição)

M as era osso, só osso! Só osso!

(repetição/ênfase)

Lá dentro daquele vestido branco, guria de meu Deus! Só branco, todo, todo enrolado, eu só enxergava a cara dele. Mas eu não via nada ali dentro, só aqueles óio dele. Mas isso eu lembro. Óia guria, e depois prá mim voltar prá casa?

(fórmula especial:

novamente eu sou chamada a participar) Eu não quis dizer prá minha sobrinha, porque o marido dela era empregado comercial, tava em casa. Se eu digo prá ela... Eu disse: “M e deixa posar aí. Ela disse: “O que é Eládia? Tu tá tão assustada?” Digo: “Não, nada.” Porque se eu digo prá ela o que eu vi, ela m e chama... vai dizer: “Isso é louca." (aqui Dona Eládia representa a sobrinha fazendo uma voz diferente) Mas guria, tu precisa ver o que é o medo, medo.

(repetição/ênfase)

Ele... era uma... só a cara de gente. Porque ele tinha um pano... pano que voava só. As perna... tudo assim enfaixado, que nem gesso.

Eu - Escuta, e nunca mais tu viste?

Dona Eládia - Ai, eu não saio mais prá aquele lado. Deus m e defenda!

(linguagem

figurativa:

frase tradicional fixa) Foi a única vez que eu vi e isso eu quero saber o que é isso.

Eu - E não podia ser um homem assim, de verdade?

Dona Eládia - Não era, minha filha. Não era homem porque era só osso dentro do vestidão branco. UH Porque... tu sabe o que é mõmia? Que é aqueles filme que dá em Montevidéu, aqui... passa esses fílmezinho de mômia. Tudo que nem aquilo. Mas era osso... não tinha... era um osso ali, tu via que não tinha... bastava tu ver o jeito que caminhava o homem! De tanto que eu rezei, ele dobrou a esquina. Dobrou. Eu segui reto assim e dobrei aqui. E ele seguiu esta e dobrou prá outra de baixo. E eu por essa. E em cada esquina que eu ia ele fazia assim (faz o mesmo gesto de antes, levantando os dois

•V

braços). Branco, branco!

(repetição)

Um osso, branco, branco, branco!

(ênfase)

Era mõmia

(repetição).

M as não tinha nada dentro daquele saco. Nada

(repetiçãoj.

Se fosse um homem dentro de um lençol branco se via, e ele tinha nada, só aquele pano branco, prá tudo que era lado. Foi a única vez que eu... as guria passaram... depois eu contei... Mas não fui só eu que vi, ali perto de casa foram três pessoa que viram”

(apelo à

tradição:

a legitimidade do evento narrado é buscada através da citação de terceiros, que teriam presenciado o mesmo evento).

Assim como nos causos de Dona Eládia, é possível verificar na grande maioria das

narrativas recolhidas a utilização destes dispositivos, com amplas variações. No entanto, creio

internamente, ao mesmo tempo que auxilia na análise, quebra com o fluxo narrativo conferido

pela contadora. Considerando que a experiência e o prazer que as histórias podem proporcionar

são seus grandes motores, as intenupções na sua seqüência original podem perturbar esta

percepção, já que, mesmo sendo transpostas para a linguagem escrita, as narrativas ainda

guardam uma boa possibilidade de envolvimento por parte do leitor. Por este motivo, optei por

manter as narrativas que fazem parte do Anexo 1 o mais próximo possível de sua forma original,

3.3 “Não sendo mentira são sempre verdade” - a presença da mentira nas

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