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PARTE 1 OS BATISTAS MINEIROS E SUA HISTÓRIA

2.1. Antecedentes e fundação da Igreja Batista da Lagoinha

A relação entre uma igreja, a religião instituída, a cultura e a sociedade é estreita e fértil. Devido a esta relação, a análise de uma instituição religiosa não pode ser feita isoladamente. É preciso considerar o contexto mais amplo em que ela surge. Por isso, mesmo que a análise tenha como foco a IBL, é necessária uma conexão com o campo religioso protestante no qual havia diversas ondas de avivalismo e de processos de pentecostalização. Daí, a importância de se focalizar a década de 1950 e seu contexto porque é nesse período que começam a eclodir novos movimentos religiosos e novas igrejas em nosso País. Essa eclosão reforça o pressuposto de que estava em andamento a reelaboração, em novas bases, das tradições religiosas existentes.

Mas, em se tratando especificamente do movimento batista, situado num contexto de 1950, mesmo que se leve conta a difusão do avivalismo e o surgimento de outras tantas denominações, é mais correto falar de “insatisfação religiosa” e de “insurgência” de fiéis do que em movimentação religiosa nos moldes de um “trânsito religioso”. Portanto, a fundação e a organização da IBL marcam o início de um quadro sócio-religioso entre os batistas que apontava tanto para a “insurgência” de seguidores quanto para o surgimento de um novo tipo de fiel, com interesses e desejos próprios. Nos anos de 1950, década em que surgiu a IBL, fundar uma congregação e organizar uma nova igreja batista era mais fácil do que mudar a pertença religiosa e “abandonar” a confessionalidade em que se foi doutrinado.

Notamos, também, que nos anos de 1950 ainda era comum haver um forte traço identitário do fiel com a igreja e com o sistema de crenças por ela prescrito. Como não havia ainda uma forma típica de trânsito religioso, o mais comum e até aceito como “correto”, era permanecer fiel à doutrina e tradição religiosa a que se estava vinculado na retomada do entusiasmo religioso. Essa análise pode ser interpretada como uma ação estratégica, se se considerar que a fundação de uma congregação e a sua organização em igreja contribuíam para aumentar o número de templo e igrejas batistas em BH e, consequentemente, eliminar a migração de fiéis para outra confissão religiosa, o que garantia a manutenção da identidade batista.

Abordar os elementos desencadeadores do surgimento da IBL é, por um lado, analisar os “lugares vivenciais” que balizaram a formação religiosa dos fundadores e, de outro, da instituição religiosa fundada. Os lugares vivenciais dos fundadores da IBL foram a cidade de Belo Horizonte, as igrejas batistas a que pertenciam e o ambiente “espiritual” e religioso dos

anos de 1950. Esses lugares, cada um à sua maneira, contribuíram para a difusão do avivalismo por parte de Appleby e Nascimento, já que havia um “comodismo espiritual e missionário” nas igrejas batistas. Dessa maneira, independentemente da causa e dos elementos motivadores para a fundação da IBL, a sua organização em igreja autônoma e autogovernável reafirma a existência de um forte viés institucional da tradição batista. Com isso, os fundadores da IBL visibilizavam sua origem institucional, a pertença religiosa com os batistas e o jeito desse segmento religioso praticar a fé e a “religião”. Os batistas tinham um único jeito de praticar a religião o qual era orientado, contido e modelado pelos contornos da instituição e da tradição batista.

A fundação de uma igreja e de um templo de culto geralmente são marcados por motivos religiosos, mas também por interesses políticos, sociais e culturais de um grupo de pessoas. Na verdade, a inter-relação entre a motivação religiosa e os interesses políticos, sociais e culturais e até econômicos na fundação de uma igreja mostra que a religiosidade é um dado social e um modo de se comportar dentro da sociedade. Nessa perspectiva, tal qual como preceituam os batistas, a fundação de um novo espaço de culto chamado “congregação” indica a possibilidade futura de ali surgir mais uma igreja, a qual tem como fatores determinantes para sua origem a evangelização e a propagação da fé batista. Em se tratando da congregação batista no bairro da Lagoinha, a evangelização e a propagação da fé batista não foram os elementos determinantes para a fundação. Os dados que analisamos demonstram ter havido predominância de interesses particulares, o que fere a ortodoxia batista, pois os interesses particulares foram colocados em primeiro lugar. Portanto, fundar uma nova congregação tendo os interesses pessoais como causa primeira está em desacordo com a tradição batista.

A motivação para a abertura dessa nova congregação batista no bairro da Lagoinha foi o inconformismo com o estado espiritual e disciplinar das igrejas batistas existentes em Belo Horizonte. O inconformismo foi não só religioso, mas, ao mesmo tempo, social e existencial, pois para os idealizadores da IBL fundar aquela congregação era descortinar novos horizontes da fé e da salvação e uma maneira de dar sentido à existência. Sendo assim, a abertura da congregação no bairro da Lagoinha mostra que os fundadores da IBL estavam em “... busca de um ideal de igreja: aquela que exigisse mais de seus filhos, numa verdadeira intransigência contra o pecado” (VALLE, 1959, p. 2).

Considerando esse trecho da carta de Valle, é possível constatar não só uma aspiração humana corporificada na abertura da congregação batista no bairro da Lagoinha, mas também uma referência a um “novo sagrado”. Para os fundadores da congregação batista no bairro da Lagoinha, aquele sagrado traria “a solução para suas almas” e, portanto, não mais seria experimentado nos moldes das igrejas batistas que existiam em Belo Horizonte, já que a novel igreja seria “intransigente com o pecado”. Nesse sentido, há uma combinação entre a abertura da referida congregação, a aspiração humana e a busca por um “novo sagrado”.

Essa referência a um “sagrado novo”, de acordo com O’Dea (1969:11), é que faz de uma igreja e da própria religião um fenômeno cultural importante. Nesse aspecto, para os idealizadores da IBL, fundar e organizar mais uma igreja em Belo Horizonte era a garantia não só de paz individual e coletiva, mas também de moralidade. Assim, mesmo que a fundação da congregação no bairro da lagoinha esteja ligada a uma insatisfação religiosa dos fundadores, ela é uma tentativa de adaptação da religião às demandas e necessidades dos indivíduos fundadores. Isso mostra que as necessidades e as atividades humanas básicas constituem-se os aspectos fundamentais da religião e, portanto, são centrais na abertura de um novo espaço de culto, o que é respaldado na teoria da religião de Rodney Stark e William S. Bainbridge (2008): “Quando as pessoas vão atrás de recompensas raras, porém valiosas, não costumam desistir no primeiro sinal de dificuldade. Os seres humanos são persistentes na busca de recompensas fortemente desejadas” (STARK E BAINBRIDGE, 2008, p. 45).

Além de ser reduzido o número de igrejas batistas em Belo Horizonte, nos anos de 1950, as quatro igrejas que existiam eram tidas como sem dinamismo e portadoras de “frieza espiritual”, segundo Tognini e Almeida (2007:83-84). Na ótica desses autores, as igrejas batistas encontravam-se frias e lentas em crescimento, pois, faltavam-lhes o “Espírito Santo” e o poder no testemunhar a fé. Esse pensamento acerca das igrejas batistas tradicionais não era algo isolado. Ao contrário, fazia parte de um movimento, de uma vivência e de um processo que começava a ganhar força suficiente para plasmar novas realidades eclesiais e a IBL foi uma delas.

O Além desses aspectos salientados, a fundação da congregação batista no bairro da Lagoinha mostra um certo “enfraquecimento” do movimento batista, já que os fundadoes da IBL estavam inconformados com o estado espiritual das igrejas a que pertenciam. Mostra também que os fundadores da IBL se reuniram para “buscar a face do Senhor” e que isso seria o

suficiente para agregar pessoas e expandir as promessas de salvação. Os fundadores da IBL invocaram um poder miraculoso, não apenas para explicar a crise espiritual que estavam vivendo, mas também para solucioná-la. Nesse sentido, fundar uma nova “igreja intransigente com o pecado” pode ser interpretado não apenas como a chegada de mais um “discurso profético” no meio dos batistas, conforme Bourdieu (2005:73), mas também o enfraquecimento e a absolescência da tradição batista.

A abertura da congregação batista no bairro da Lagoinha demonstrava também que o cenário religioso mineiro começava a se abrir às novas experiências religiosas e que a tutela e o controle existentes nas igrejas históriacas se enfraqueciam. Na verdade, a diminuição da tutela e do controle da instituição religiosa sobre os indivíduos se dava, segundo Berger (2003:139- 143), porque a religião de caráter tradicional enfrentava uma “crise de plausibilidade” e “credibilidade” e que o sistema por ela adotado era ineficaz. Assim, fundar uma nova congregação era negar o projeto religioso proposto pelo movimento batista. Era também um sinal de que as igrejas batistas existentes perdiam a função de “manter o mundo” religioso estável e seguro, principalmente para os mais jovens. Porém, para Tognini e Almeida (2007:86), essa insatisfação era generalizada e começava a se manifestar principalmente nos jovens que ocupavam posição de liderança.

É possível afirmar, então, que a abertura da congregação batista do bairro da Lagoinha sinalizava o início da “destradicionalização” e da perda de força da tradição religiosa batista. Além disso, a abertura da congregação batista no bairro da Lagoinha aponta para uma exaustão iniciada no protestantismo histórico, bem como, para a busca por novas alternativas de representação simbólica, o que culminaria nos anos de 1950 no surgimento das campanhas de “avivamento espiritual” e no avanço da pentecostalização, segundo Campos (1996:95). É, portanto, na década de 1950, de acordo com Sandra Duarte de Souza (2001:159-160), que os indivíduos começaram a ganhar espaço para a formulação de um “cardápio religioso” mais adaptado aos novos tempos. Isso significou que o jeito válido de praticar a fé cristã segundo os moldes batistas, começava a ser reconfigurado e que já não podia mais ser interpretado e nem vivenciado de maneira tão uniforme.

A abertura da congregação batista no bairro da Lagoinha pode ser explicada também como estando relacionada à movimentação e efervescência religiosa da década de 1950. Segundo Tognini e Almeida (2007:86) foi no clima de busca de uma vida espiritual mais rica, mais

abundante em graça, e com desejo de avivamento que surgiu a proposta de criar uma nova igreja. Essa movimentação e efervescência fizeram parte de uma “segunda onda” de pentecostalização do campo religioso brasileiro, conforme expressa Freston e cuja ênfase estava nos “dons de falar em línguas” e de “fazer milagres e curas”.

“Somente a partir dos anos cinquenta o pentecostalismo decolou; eu diria que foi na segunda metade dos anos cinquenta. A segunda onda se deu nos anos cinqüenta quando a urbanização se acelerava e, em alguns lugares, (...) formava-se uma sociedade de massas. (...) e essa nova sociedade de massas possibilita um novo tipo de pentecostalismo que rompe com as limitações dos modelos existentes” (FRESTON, 1996, p. 21).

Na prática, um amplo processo de transformação da sociedade fazia parte do cenário que influenciou a abertura da IBL, o que também refletia na recomposição e alteração do campo religioso. Pressupomos que a transformação da sociedade é relativa à recomposição e alteração do campo religioso e que a efervescência religiosa ocorrida na década de 1950 está associada ao avivalismo e à pentecostalização das igrejas. Na verdade, todo esse processo se tornou um elemento facilitador para a inserção do pentecostalismo nas denominações protestantes, fazendo surgir novas igrejas e novos segmentos religiosos. O avivalismo, e mais precisamente, o pentecostalismo, podem ser considerados um movimento espiritual, uma “experiência religiosa do divino”, conforme Bernardo L. Campos Morante (1996:50), que não tem fronteiras de confessionalidade, ideologias, identidades e territórios.