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PARTE 2 – A IGREJA BATISTA DA LAGOINHA: IDENTIDADE E CULTURA

3.2. Religião e identidade religiosa

3.3.1. Diversidade cultural e religiosa

O Brasil é um país que possui uma rica diversidade cultural e religiosa e é por isso que Gilberto Freyre (2004) e Sérgio Buarque de Holanda (1995) afirmam que a diversidade é aclamada, pois faz parte de nossa formação histórica. A diversidade estava presente antes mesmo do Brasil colônia. Naquela época, quando da chegada dos colonizadores, as populações ameríndias que aqui habitavam possuíam culturas diversas, tinham seus próprios “cultos” e religiões. Mas, a diversidade cultural e religiosa se complexificou com a chegada dos portugueses, pois, com eles e através deles, deu-se início à implantação não só do projeto colonial português no Brasil, mas também de sua religião.

“O catolicismo que enraíza no Brasil está marcado por sua origem europeia, mas também pelo encontro que essa tradição teve aqui com as tradições africana e indígena. (...) Ou seja, acreditamos que o encontro das culturas advenientes com a autóctone produziu um modo partilhado de a cultura popular pensar a relação entre o sagrado e o profano” (STEIL, 2001, p. 14-15).

A colonização do Brasil envolveu a cultura e a religião, uma vez que o projeto colonizador português tinha uma base estabelecida, que era a convivência entre as diferentes populações. Segundo Cesar Romero Jacob (2003:33), o processo de colonização foi baseado na convivência entre brancos, índios e negros e isto possibilitou a instauração da diversidade de religiões praticadas no Brasil. Sobre este processo de diversidade e também de mistura, José Bittencourt Filho (2003), declara: “Assim sendo, na prática religiosa colonial mesclavam-se elementos católicos, negros, indígenas (e até judaicos), tecendo uma religiosidade deveras original” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 49).

O Brasil, desde o período da colonização, devido ao seu alargamento territorial, a extensão da costa marítima e uma numerosa população miscigenada, foi assediado por “invasores” e outros grupos cristãos, segundo Mendonça (2008:37). Mas, as tentativas de inserção de outros

grupos religiosos que não o católico não obtiveram sucesso. Conforme Mendonça (2002:12) uma tentativa protestantes ocorreu no Rio de Janeiro, em 1555, e outra no Nordeste, entre 1620 e 1654. Mas nenhuma delas foi bem sucedida. Isso significou que o catolicismo foi, desde o século XVI, a principal religião do Brasil, tornando-se a religião do povo brasileiro e também do Estado brasileiro.

No aspecto religioso, a primeira ação em prol da “liberdade religiosa” e da abertura a outros grupos religiosos no Brasil, conforme Reily (2003:48), se deu com a elaboração das linhas mestras do Tratado do Comércio (1810). De acordo com Leonard (2002:48) todos os que residiam em solo brasileiro poderiam praticar sua religião, em sua casa e em particular, desde que não perturbassem a paz pública e nem tentassem fazer prosélitos, o que foi determinado somente na Constituição de 1824. Leonard (2002:24) afirma que nos meados do século XIX ocorreu a implantação das grandes igrejas protestantes no Brasil. Sendo assim, a tradição protestante, e esta de natureza imigratória, segundo Mendonça (2002:12), se inseriu no Brasil no século XIX, com os anglicanos, episcopais e luteranos.

“O momento histórico da inserção do protestantismo na sociedade brasileira é meados do século XIX. As tentativas anteriores, seja pelas vias das expedições de conquista ou pela presença esporádica de protestantes, não chegaram a abalar no seu conjunto a hegemonia católica implantada com o descobridor e colonizador” (MENDONÇA, 2008, p. 179).

O ingresso das igrejas dos protestantes no Brasil acentuou a diversidade religiosa já existente no campo religioso e atingiu, mesmo que vagarosamente, a então hegemônica Igreja Católica. Apesar das resistências indígenas, africanas e católicas, é somente no século XIX, com a entrada do protestantismo de missão, que o campo religioso brasileiro ganhou outros contornos, produziu novas formas religiosas e se diversificou com maior rapidez. Concernente à diversidade cultural e religiosa, os séculos XIX e XX são o período fundamental para se entender as transformações que se processaram na religião e na sociedade Brasileira. Segundo Maria Amália Andery (1994:292), estes dois séculos formam o período em que as grandes transformações marcam a nossa vida atual, já que todas elas têm a ver com “ciência moderna”, como uma “força produtiva direta”, e com um novo ethos cultural e religioso. O que se quer enfatizar, na verdade, é que os últimos duzentos anos serviram para desencadear e alastrar um amplo processo de diversidade cultural e religiosa, o qual atingiu as diferentes tradições religiosas existentes no Brasil.

É nessa época, especialmente, na segunda metade do século XX, que a vida religiosa brasileira, segundo Antônio Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi (1996) começou a mudar em grau, extensão e velocidade nunca dantes vistos na história do Brasil.

“O panorama religioso brasileiro tem mudado não só porque há pessoas que desertam de seus deuses tradicionais laicizando suas vidas e seus valores, mas também porque há outra que em número crescente aderem a ‘novos’ deuses, ou então redescobrem seus velhos deuses em novas maneiras” (PIERUCCI & PRANDI, 1996, p. 10).

Foi também nos século XIX e XX que eclodiu a afirmação de que as religiões entrariam em crise e se tornariam enfraquecidas e decadentes. De acordo com Mendonça (2008, p. 25), é nesse período, principalmente, no século XX, que a teologia da secularização anunciou e decretou o fim da religião institucional. Entrementes, por mais que se tenha afirmado a dissipação da religião pela secularização, segundo Eliane Moura da Silva (2004:7), nos meados do século XX, a religião surpreendeu a muitos, pois esse período marcado por um considerável ressurgimento de crenças e práticas religiosas. Isso indica que existe uma relação imbricada entre cultura e religião, tanto quanto entre os processos de secularização, “domesticação” e “recuperação do sagrado”, segundo Bastide (2006:251-252), de “retorno do sagrado” (Alves, 1979) e “ressurgência” da religião, conforme Berger (2000:17). O fato é que a relação entre cultura e religião serviu para confirmar que o vigor e o “boom” religioso na sociedade brasileira foram fundamentais para a “invenção” de novas religiões e para aumento da diversidade religiosa.

Leila Amaral (2000), a partir de um estudo acerca da proliferação do espírito da New Age e de novas religiões, reconhece que a sociedade brasileira, ao longo da história, se apresentou afeita à diversidade e às novas formas de lidar com o sagrado. Segundo ela (2000:30-31), a diversidade, a circulação, o sincretismo e o fluxo religioso são partes integrantes da religião, o que lhe dá uma aproximação metafórica de “carnaval da alma”. Mas, o maior impacto da diversidade cultural e religiosa começou a acontecer a partir dos anos de 1950, quando o campo religioso brasileiro entrou definitivamente em processo de diversidade e modificação. Conforme Mendonça (2006:89), nesta época o campo religioso passou a viver uma verdadeira “ebulição e fervura”.

No contexto da década de 1950 e na correnteza das transformações sociais, culturais, política e econômicas, os segmentos religiosos (catolicismo, protestantismo e pentecostalismo)

começaram a enfrentar modificações internas. A expansão da indústria, o êxodo rural, a urbanização e o crescimento das cidades causaram um forte impacto nas representações culturais e religiosas. Novas organizações religiosas emergiram e se consolidaram no campo religioso brasileiro, aumentando significativamente a sua diversidade. De acordo com Sanchis (1999:102), a “diversidade ativa” se multiplicou e atingiu até mesmo o interior da complexa Igreja Católica. “Qualquer religião tradicional, majoritária, numa sociedade que se moderniza, estará fadada a perder adeptos” (PIERUCCI, 2003, p. 14). Mas, unanimidade católica, segundo Jacob (2003:33), Rosado-Nunes (2003:27), Velasques Filho (2002:249) e Pierucci (2004:17-20) só começou a ser quebrada os anos de 1970 e, consequentemente, gerando-lhe a perda considerável de fiéis.

No que tange à tradição protestante, segundo tanto no Brasil quanto na América Latina, é possível destacar o seu aspecto pluralístico e diversificado. O protestantismo, apesar de sua tardia presença histórica no Brasil e seu reduzido impacto cultural na sociedade brasileira, pode, então, ser caracterizado como diverso e em processo contínuo de diversificação. Mendonça (2002:11) explicita que o que se chama de “protestantismo brasileiro”, na verdade, são vários protestantismos, uma vez que o protestantismo aqui inserido mostrava-se distinto de suas origens. Não há, portanto, no campo religioso brasileiro um protestantismo que se possa considerar como genuíno, “puro” e isento historicamente das interferências culturais da nossa terra, pois, conforme Steil (2001:14), toda transposição cultural e religiosa sempre é uma reinvenção.

Numa abordagem sobre o protestantismo na América Latina, José Miguez Bonino (2004:7- 10), afirma a existência de quatro tipos de protestantismos. Utilizando-se da metáfora do “rosto”, Bonino assevera que o protestantismo possui “quatro rostos” – o liberal, evangélico, pentecostal e étnico, e cada um se apresentando distintamente do outro, o que também se aplica ao Brasil. Isto indica que no bojo da matriz cultural brasileira, que é diversificada, existe uma matriz religiosa que provê um acervo de valores, crenças e práticas religiosas característicos de nossa terra que se manifesta na diversidade da cultural e nas diferentes religiões.

O campo religioso protestante que era, até os anos de 1950, organizado e classificado em “protestantismo histórico e pentecostal”29 não ficou isento às transformações que estavam ocorrendo na sociedade brasileira. O protestantismo histórico passou a conviver com rupturas e cisões e o pentecostalismo com fragmentações internas. As igrejas protestantes históricas, por estarem tão institucionalizadas, por promover o “culto do livro” e por se fechar em formalidades e burocracias, começaram a se interessar pelos “dons espirituais” e por uma religiosidade avivalista, oriunda da penetração do pentecostalismo. As igrejas históricas passam a se parecer com salas de aula: assépticas, monótonas e estrangeiristas. Diante desse quadro, surge, então, o pentecostalismo de “segunda onda”, conforme Freston (1993), o qual se constitui como um questionamento das igrejas históricas, de acordo com Jether Ramalho (1994:51). Naquela época, o avivalismo que antes era tratado com certa indiferença e desprezo pelas denominações, segundo Campos (1996:77), passou a ser seu maior anseio, o que facilitou a penetração de um processo de pentecostalização em igrejas de denominações protestantes. Os líderes das igrejas protestantes imaginaram que,

“Poderiam se valer de um ‘reavivamento religioso’ sem quaisquer custos institucionais, para retomar o crescimento perdido. Em todas as denominações, programavam-se campanhas de ‘oração’ e ‘jejum’ para que um ‘avivamento’ acontecesse...” (CAMPOS, 1996, p. 97).

Com a abertura das igrejas protestantes à disseminação do avivalismo, houve no protestantismo uma desagregação e, consequentemente, o surgimento de novas igrejas e novas denominações e formas religiosas. Isto indica um processo de pentecostalização atingia o interior das igrejas protestantes ocasionando cisões e rupturas, ou seja, tornando muitas delas pentecostalizadas. Este processo avivacionista nas igrejas protestantes, de acordo com Bittencourt Filho (2003:123) aumentou não só a família pentecostal no Brasil, mas também a sua diversidade, a qual passou a ser configurada como uma espécie de “neodenominacionalismo”.

Já o pentecostalismo que aqui se instalara em 1910 e 1911, de acordo com Hollenweger (1972:44), Soares (2008:7), Mendonça (2002:46) e Campos (2008:03), permaneceu bastante “tímido” até os meados da década de 1950. A característica deste pentecostalismo era a

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Há diferentes tipos de classificação para o pentecostalismo existente no Brasil antes de 1950 e ele está associado às Assembleias de Deus, O Brasil para Cristo, Congregação Cristã no Brasil e a Igreja do Evangelho Quadrangular. Por isso, foi classificado por Mendonça de “pentecostalismo clássico” e por Freston de “primeira onda”.

homogeneidade, segundo Campos (1996:84). Mas, ele foi invadido por uma “efervescência carismática” típica de uma “segunda onda”, conforme Freston (1993:82-85), cuja ênfase era a realização de milagres, curas divinas e o falar em línguas. “A segunda onda se deu nos anos cinquenta quando a urbanização se acelerava e se expandia e (...) e essa nova sociedade de massas possibilita um novo tipo de pentecostalismo que rompe com as limitações dos modelos existentes” (FRESTON, 1996, 21).

Fragmentando-se internamente, o “pentecostalismo clássico”, Mendonça (1989:37-86; 2002:18), ou de “primeira onda”, transmutou-se para uma “segunda onda”, segundo Freston (1994:71), tornando-se expressivo e com diversas formas, jeitos, “cores” e “tom”. Foi isto que aconteceu com a “explosão pentecostal” no Brasil, quando começaram a surgir, conforme Campos (1996:88, 2008b:3) as novas igrejas pentecostais, como a Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), o Brasil para Cristo (1955) e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (1961). A expressividade e o modo de ser deste pentecostalismo foram demonstrados pelas campanhas de curas e milagres, pelo uso do rádio e, conforme Bittencourt Filho (2003:116), por intermédio da criação de novas denominações autóctones. Por possuir uma natureza e uma teologia diferentes do protestantismo histórico e do “pentecostalismo clássico”, segundo Stanley M. Burgess e Gary B. McGee (1995:804-809), Velasques Filho (2002:256), Hollenweger (1988:244) e Siepiersky (2004:72-74), este pentecostalismo tornou-se ainda mais espontâneo, flexível e adaptado à cultura popular.

Adaptando-se à sociedade, esse pentecostalismo alcança crescimento e rompe com os modelos de igrejas pentecostais existentes, contribuindo ainda mais para a diversidade religiosa no campo religioso. Neste contexto, o campo religioso brasileiro vem se constituindo como um espaço, cada vez maior, para a criação de novas igrejas e recriação de novas expressões religiosas dentro das religiões estabelecidas, tal como assinala Sanchez:

“Não se trata de colagens ou sobreposições de experiências e símbolos religiosos que acabam condicionando as práticas religiosas e sociais das pessoas envolvidas; trata-se de recriação da religião utilizando-se livremente de elementos antigos e novos o que pode, em alguns casos, levar a uma redefinição do que é religião e estabelecer novos contornos religiosos” (SANCHEZ, 1999, p. 68).

A partir das décadas de 1960 e 1970, o campo religioso brasileiro entra novamente em reconfiguração e redesenho, o que está diretamente relacionado com o catolicismo, o

protestantismo e com o pentecostalismo. Neste contexto relacional30, destacam-se a perda de substância e de fiéis da Igreja Católica, o pequeno aumento de seguidores das igrejas protestantes e a expansão e diversificação do pentecostalismo, do qual emergiu uma “segunda geração” de igrejas, cujo nome atribuído é neopentecostalismo31. Sobre o surgimento deste novo tipo de pentecostalismo e sua configuração, Campos (2008) esclarece:

“Nos três decênios após a Segunda Guerra Mundial há uma nova explosão pentecostal no Brasil, que acontece após a primeira safra de igrejas (‘primeira onda’, de Paul Freston) surgiram algumas igrejas de transição entre o ‘pentecostalismo clássico’ e o ‘neopentecostalismo’. Os integrantes mais recentes da ‘família pentecostal’ são grandes empreendimentos que tiveram rápida expansão e trazem consigo uma pretensão missionária mundial” (CAMPOS, 2008a, p. 03).

As igrejas pentecostais e neopentecostais, “de segunda e terceira ondas” ou de “segunda e terceira geração” surgiram numa conjuntura de concorrência religiosa e de diversidade e se desenvolveram como organizações religiosas flexíveis e dinâmicas. A IURD, a Renascer em Cristo, a Mundial do Poder de Deus, a Internacional da Graça de Deus, etc, são exemplos típicos dessas novas expressões religiosas. Estas igrejas, por serem flexíveis e dinâmicas e atuarem num quando de pluralidade de igrejas e de competição, provocaram o enfraquecimento das religiões tradicionais e uma ampla e complexa diversidade religiosa no Brasil. Isto significa que a modernização da sociedade brasileira favoreceu a multiplicação de instâncias reguladoras do sagrado, inclusive, de diversidade religiosa e de diversificação e misturas de religiões.

Em se tratando do campo religioso brasileiro, a diversidade é uma constante histórica e é por isso que ela, na atualidade, é inevitável. Neste sentido, conforme assinala Mariz (2006:65) é praticamente impossível que um grupo religioso fique sem contactar com outros e se imunizando das ‘barganhas cognitivas’ que aí surgem. Assim, neste cenário de diversidade cultural e religiosa e de um campo religioso competitivo e diversificado de religiões, templos e cultos, há tanto uma polissemia de experiências religiosas quanto um sincretismo e um hibridismo entre as religiões existentes.

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Os dados mais recentes sobre as religiões confirmam estas informações. Os dados divulgados pelo Instituto Data Folha de 06 de setembro de 2007 informam que os católicos caíram para 74% e que os evangélicos subiram para 22%, sendo 17% da população pentecostais.

31 Há diferentes formas e maneiras de classificar o campo ou o sub-campo religioso pentecostal. Esta

classificação depende do critério estabelecido pelo analista. Como não existe um consenso entre os estudiosos, utilizar-se-á o termo neopentecostalismo como uma terceira geração pentecostal.