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PARTE 2 – A IGREJA BATISTA DA LAGOINHA: IDENTIDADE E CULTURA

3.2. Religião e identidade religiosa

3.3.3. Ritos pentecostais e migração religiosa

protestantes, pentecostais e neopentecostais, têm gerado um intercâmbio de doutrinas, crenças e práticas religiosas. Esta intercambialidade, tal como acontece nos dias atuais, afetou a noção de identidade e de pertença religiosa, estáveis e duradouras, como sempre desejaram as religiões tradicionais. Isto indica que as religiões tradicionais, e não somente elas, estão perdendo cada vez mais a sua capacidade de regular a vida do seu seguidor, de mantê-lo fiel e de conferir identidade religiosa fixa. Em matéria de religião e de religiosidade, numa conjuntura sincrética e híbrida, somada à pós-modernidade, a identidade deve ser vista, conforme Hall (1999:13) como uma “celebração móvel”, Bauman (2005:17) como “negociável e revogável” e, para Cancline (2008:283 e 352), como “hibridizada e pluralista”.

A situação de sincretismo e de hibridismo que ocorreu no campo religioso brasileiro, e que ainda se desdobra, tem propiciado uma alteração profunda nas religiões. Com isso, o campo religioso que já era plural e marcado pelo diálogo continnum e pela convivência entre religiões oficiais e marginalidades, sofreu aquilo que Pierucci (2004:27) denominou de “destradicionalização da esfera religiosa”. Neste processo, as religiões tradicionais, mesmo possuindo ênfases exclusivistas e absolutas em termos de orientação religiosa, tiveram uma maior desvantagem. Elas entraram em processo de declínio e ainda abriram espaço a uma crescente busca por novas alternativas religiosas, crenças, experiências místicas e até técnicas espirituais. Já as religiões carismáticas, pentecostais e neopentecostais evangélicas levaram uma maior vantagem, pois além de terem uma identidade mais flexível, puderam alterar sua dinâmica interna e ainda apropriar “desmedidamente” e sem modéstia dos elementos da cultura individualista, mercadológica e midiática, que também fazem parte do processo de sincretismo e hibridismo religioso na contemporaneidade.

3.3.3. Ritos pentecostais e migração religiosa

O campo religioso brasileiro vem se apresentando como sincrético e híbrido e os ritos religiosos múltiplos e diversificados, principalmente depois da expansão das religiões carismáticas. Com isto, o Brasil se tornou um país multirreligioso e as religiões, lenta ou aceleradamente, tiveram mutações variadas, por mais que elas e os seus ritos se apresentassem

como “imutáveis e intemporais”, conforme Pieruccci e Prandi (1996:9). A busca por uma “nova ordem ritual” começou nos anos de 1950 com a pentecostalização e retração de igrejas históricas, a fragmentação interna do “pentecostalismo clássico” e o declínio da hegemonia católica, conforme Campos (2008c:15), Pierucci (2004:17), Ricardo Mariano (2005:15; 2008:69), Sanchis (1999:103) e Camurça (2006:39). Há de se destacar também que o uso das “tendas de lonas” para cultos e campanhas espirituais e a utilização dos meios de comunicação de massas também contribuíram para a reconfiguração dos ritos e para o início da migração religiosa de fiéis e de igrejas.

Assim, a partir da década de 1950, o campo religioso foi tomado pela dinamicidade ritual, litúrgica e organizacional e pela “inclinação a um baixo grau de institucionalização” religiosa. Neste contexto de dinamicidade da vertente religiosa carismática, as igrejas protestantes históricas, mesmo aquelas que tinham uma ênfase missionária e evangelizadora, diminuíram ainda mais o pequeno dinamismo que possuíam. Estas igrejas, inversamente às carismáticas, voltaram para si mesmas, e conforme Gedeon Alencar (2005:31), fecharam-se em seus dogmas, interditos e absolutismos. A dinamicidade das religiões pentecostais e carismáticas já havia sido assinalada por Gutiérrez e Campos (1996) como sendo uma “irrupção do espírito” que desafiava às igrejas históricas, principalmente, na prática, na teologia, na liturgia, nos rituais e nos “dons espirituais”. Mas, é somente após os anos de 1970, com a emergência de igrejas neopentecostais, como a IURD, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Sara nossa Terra, entre outras, que os ritos religiosos foram re-criados e sofreram uma maior alteração.

Além disso, a dinamicidade das igrejas carismáticas pode ser atestada na capacidade que elas possuem em incorporar, utilizar e re-significar ritos de outras religiões, os quais eram desconsiderados e desprezados pelas igrejas protestantes históricas. Para Campos (1997:72- 73), o neopentecostalismo revigorou nosso tronco matricial religioso misturando diferentes tradições pagãs, católica, protestantes, judaica e afro-brasileira, estetizou o culto e propôs um meio-termo entre os rituais dessas religiões. Há uma incorporação dos ritos do catolicismo, das religiões afro-brasileiras e ainda uma dependência dos cultos de possessão destas últimas. Para Silva (2005:152), os cultos de possessão foram radicalizados pelas religiões carismáticas de vertente neopentecostal e transformados numa experiência vivida corporalmente, o que já era feito pelas religiões afro-brasileiras e pelo espiritismo kardecista.

É por isso que Joanildo A. Burity (1997:158) enfatiza que o dinamismo das religiões carismáticas, especificamente das neopentecostais, que antes era insuspeitado, agora não é mais, devido à sua crescente visibilidade social, política e religiosa. O destaque da dinamicidade do campo religioso no Brasil está em possibilitar o surgimento de novas igrejas e denominações, o crescimento de religiões mais sacrais e a rearticulação do papel das igrejas neopentecostais com a sociedade, o que segundo Freston (1996:259) aconteceu porque estas igrejas inovaram metodologicamente, inclusive, investindo pesado na política e nos meios de comunicação. A religião carismática, especialmente a de recorte evangélico-neopentecostal, tanto em termos numéricos, crescimento e abertura de novos templos e cultos, quanto no que se refere aos ritos religiosos, constitui-se no elemento dinamizador do campo religioso brasileiro.

Nesta perspectiva, a dinâmica do movimento e da migração caracteriza a religiosidade contemporânea. A migração religiosa está marcada pela difusão de uma fé/crença individualista e pela disjunção entre crenças, pertenças e trajetórias religiosas. Isto está acontecendo porque as religiões carismáticas tornaram-se independentes da tradição, segundo Rivera (2010:244), e deram maior autonomia aos ritos, libertando-os das formas rígidas e pré- definidas trazidas pela tradição protestante histórica. Neste contexto, as igrejas pentecostais levam vantagem sobre as tradicionais, pois, de acordo com Durkheim (2003:25) uma religião não pode se reduzir a um único tipo de culto, mas em um sistema de cultos que são dotados de certa autonomia.

É por isso que a maioria dos rituais religiosos é animada pelos agentes neopentecostais que no exercício de sua função, sobretudo, aquelas ligadas à oração, operam milagres, tais como curas, exorcismos, bênçãos da prosperidade e libertação. Na execução destes rituais, a palavra proferida assume grande importância, pois o milagre acontece através na junção dos “dons espirituais” do agente carismático e com a “força das palavras” por ele proferidas, que se concretiza pela “força do espírito”, conforme Gutièrrez e Campos (1996). De acordo com Christian Lalive D’Epinay (1968:9), os ritos extáticos são caracterizadores das religiões populares, pois, além de exigir uma participação coletiva dos fiéis, sua ênfase recai na emocionalidade e na possessão. É aí que residem e se encontram a eficácia da fé e o poder da religião carismática, pois os ritos, quaisquer que sejam, não são feitos e nem oferecidos para

que a eles se assita, mas para que neles se possa tomar parte, participar e vivê-los intensamente.

A perspectiva adotada pela religião carismática torna o rito “uma grande ação simbólica, em que grupos ou indivíduos revivem experiências fundamentais, geradoras de sentido e de certeza para a vida presente” (CAMPOS, 1997, p. 139-140). Para Mendonça (2002:158), os agentes neopentecostais assumem a condição “miraculosa” por revelar dons de liderança carismática e poder para realizar curas, milagres e libertação. Isto indica que o neopentecostalismo retirou do culto protestante o que ocupava o lugar central – o rito da pregação - e o substituiu por um outro rito – a experiência pentecostalizante, com suas profecias, revelações, exorcismo e libertação, da qual todos os fiéis devem participar e experimentar. Nesta perspectiva, os ritos no carismatismo são usados para introduzir os fiéis não só numa esfera diferenciada da profana como faz o protestantismo, mas também numa esfera de poder, emoção e mistério trazidos pela “experiência do pentecostes”.

Existe, portanto, uma relação complexa e complementar entre os ritos pentecostais e a migração religiosa. Esta relação se dá porque os ritos, mesmo sendo “um modo de ação”, conforme Durkheim (2003:19), e uma “ação ordenada”, de acordo com Maria Angela Vilhena (2005:21), eles não mais dão estabilidade à identidade religiosa, seja a do fiel, seja a da organização religiosa. Esses aspectos mostram que os ritos são “rígidos”, mas não imutáveis, e podem, dependendo das circunstâncias sociais, culturais e religiosas, sofrer alterações, reduções ou acréscimos. Em se tratando do fiel, a migração religiosa é motivada pelas novas oportunidades de interação com outros indivíduos, pela repetição dos ritos e pela necessidade de inclusão, mesmo que momentânea, em outras comunidades religiosas. No que tange às igrejas, a migração religiosa é uma espécie de transformação, atualização e/ou negociação de sua identidade, cuja finalidade é a de não perder espaço e nem credibilidade. Daí a junção entre os ritos religiosos e migração religiosa.

O templo, nas expressões religiosas carismáticas é um espaço privilegiado para o rito religioso. É também um espaço para a manifestação do poder do “Espírito Santo”, tanto quanto de toda sorte de mal. É somente no templo com a mediação do líder carismático e o uso seus “dons espirituais” e com a participação nas sessões regulares dos rituais que o fiel elimina o desconforto e a perturbação espiritual. Nas igrejas carismáticas, a exemplo da

IURD, como destaca Campos (1997:155), a participação no ritual é para desafiar as forças que já foram derrotadas, mas que insistem em atacar os fiéis. Neste caso, se o fiel for ao templo, tiver fé e cumprir as exigências programadas pela igreja, através dos ritos religiosos, poderá vencer quem o atacou, superar um presente insatisfatório, usufruir as bênçãos de libertação e de prosperidade, e viver, no aqui e no agora, a felicidade. Afinal, o templo e os ritos são sagrados, e como tal, eficazes para garantir resultados espirituais e materiais na vida do fiel.

É por isso que o tempo nas religiões carismáticas não está restrito apenas a um ou dois dias de culto, aos cultos dominicais ou a um culto por dia, como fazem geralmente as igrejas protestantes históricas. A abertura do lugar sagrado, isto é, do templo todos os dias e a realização dos rituais em vários horários facilitam a participação do fiel nos ritos oferecidos, tanto quanto num espaço e num tempo é sagrado.

“Por meio de qualquer rito e, por conseguinte, por meio de qualquer gesto significativo (...) insere-se no ‘tempo mítico’. Porque a ‘época mítica’, dzugur, não deve ser pensada simplesmente como um tempo passado, mas também como presente e futuro: como um estado tanto como um período” (ELIADE, 2002, p. 319).

Para os carismáticos, o tempo destinado ao culto é sagrado e não se restringe apenas ao domingo, e é por isso que todos os dias têm cultos e em todos eles há rituais de cura, libertação, exorcismo e prosperidade. Mas, em se tratando de rituais, a sexta-feira ganha relevo e evidência, pois nela se realizam as sessões de “descarrego” ou libertação, o que se constitui no elemento central de toda ritualidade. Para se ter uma ideia da importância da sexta-feira, no último mês de abril, a IBL programou e lançou um novo tipo de ritual, a “sexta básica”32. Nesse novo rito da IBL, geralmente, há a participação de oito diferentes artistas- cantores, o que demonstra o seu aspecto “estético”, “atrativo”, do tipo “show” e também o concorrencial, já que atrai diferentes tipos de seguidores religiosos.

A mudança na categoria do tempo na religião carismática propicia a participação ativa do fiel nos cultos e nos ritos. Sendo assim, este envolvimento no rito é, segundo Campos (1997:139), um “mergulho nos tempos imemoriais”, e em nossa concepção, uma expressão da procura de prosperidade espiritual, emocional, material e financeira. O processo de envolvimento do fiel

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é vivido numa “busca ansiosa” de novas experiências de poder e de êxtase na relação com o sagrado e também num engajamento religioso em que prevalece a “guerra espiritual”. Sendo assim, todo e qualquer ritual carismático é dirigido a um sagrado – o da experiência pentecostal – e expressa o compromisso da igreja e do fiel com esse sagrado.

Como os ritos são usados para exaltar o “divino”, sua força e poder sobrenatural, as religiões carismáticas atuam ritualmente através de campanhas de oração e sessões de exorcismo e de libertação. Com esta atuação e “manobra” religiosa executadas com “palavras fortes” de determinação e de comando, as igrejas carismáticas colocam a seu favor as forças do sagrado, gerando sentimentos de fascínio, êxtase e maravilhamento, o que pode ser alusivo à divindade, à organização religiosa e ao líder carismático. Já que o ritual carismático carrega uma ação dinâmica, ele gera movimentação e esta, por sua vez, provoca a migração religiosa no campo religioso.

Considerando a migração religiosa como elemento típico da “contemporaneidade” e uma paisagem “comum” das religiões, Hervier-Léger (2008) utiliza-se as figuras do “peregrino” e do “convertido”, para acentuar a dinâmica do movimento e da migração na religiosidade. Estas duas figuras utilizadas por ela, mesmo referindo-se ao catolicismo aplicam-se às demais religiões e ao processo de migração religiosa que está acontecendo, tanto no que se refere à organização religiosa, quanto aos seguidores, “turistas”, frequentadores e “população flutuante”. Todavia, isto não impede que se creia na eficácia dos ritos e em seus resultados e nem elimina a ideia de que os ritos quando praticados e vividos tem a finalidade de re- estabelecer a ligação da terra, do fiel e de sua alma com o “mais alto dos céus”, de onde procede toda sorte de bênçãos.