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5. PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS

5.5. Anterioridade

A ideia inicial de anterioridade deve partir de uma garantia individual (cláusula pétrea), estendida pelo ordenamento constitucional aos contribuintes, segundo a qual a cobrança de novos tributos ou a majoração de tributos já existentes deverá vir estabelecida em lei conhecida com suficiente antecedência, o que exige evidente hiato temporal separando sua publicação e vigência.

Entende-se por vigência a aptidão normativa, abstrata, que uma norma possui de poder incidir sobre eventos descritos no seu antecedente normativo.183 A norma se

diz vigente quando está apta para qualificar fatos e determinar o surgimento de efeitos de direito, nos limites de espaço e tempo previstos pelo ordenamento jurídico.184

A anterioridade, considerada corruptela da anualidade por Aliomar Baleeiro,185 com essa não se confunde. Como bem aponta Carrazza,186 o Princípio da Anualidade alberga um plus em relação ao da Anterioridade. Enquanto este se limita a exigir que a cobrança do tributo se perfaça de acordo com as leis vigentes no exercício anterior, aquele exige, também, a autorização orçamentária para que ela ocorra de modo válido.187

183 RAYA, Francisco José Carrera. Manual de derecho financiero. Madrid: Tecnos, 1993. v. 1. p. 106. 184 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros, 2008, op.cit., p. 406.

185 BALEEIRO, Aliomar, op.cit., p. 50.

186 CARRAZZA, Roque Antonio, op.cit., pp. 181-183. No mesmo sentido, vide: AMARO, Luciano da Silva. O

imposto de renda e os princípios da irretroatividade e da anterioridade. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n. 25/26, 1983. p. 151

187VILLEGAS, Héctor Belisario. Curso de Finanzas, derecho financiero y tributario. Buenos Aires: Depalma,

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De acordo com Héctor Villegas Belisario, a anualidade é resultado histórico de lutas pela supremacia, entre o soberano e os representantes do povo, consequência de um processo que se iniciou com a conquista da legalidade tributária, passou pela interferência dos representantes do povo na definição dos gastos públicos e alcançou a percepção de que tanto gastos como recursos públicos devem ser autorizados anualmente. A transcrição lógica dessa evolução histórica,188 retratada por Paulsen,189 merece reprodução:

Em uma fase inicial, o Princípio da Anualidade identificava-se com a ideia de consentimento que deu suporte ao próprio surgimento da legalidade tributária, porquanto, a cada ano, em uma única lei se instituíam os tributos a serem cobrados no ano subsequente conforme as despesas previstas. A própria instituição dos tributos era temporária, anual, exigindo, pois, renovação.

Em uma segunda fase, ... a anualidade passou a cumprir uma função limitadora da instituição de novos tributos ou majoração dos já existentes, pressupondo-se que, se não prevista no orçamento daquele ano, não poderia incidir, não estando autorizada a sua cobrança.

Em uma terceira fase, que é a atual, sequer se condiciona a instituição ou majoração de tributos à prévia inclusão na lei orçamentária. Isso porque se entende que, provindo do mesmo órgão legislativo, ainda que não prevista na lei orçamentária, a instituição posterior, por força da lei, pressupõe, ela própria, um juízo contemporâneo quanto à necessidade daquela receita e a autorização para a cobrança após o decurso do prazo constitucional que garante o conhecimento antecipado pelo contribuinte, a anterioridade.

188 Sobre o assunto, vide, ainda: ALMEIDA, Lise de. Princípio da anterioridade. Revista de Direito Tributário,

São Paulo, n. 55, pp. 321-331, 1991 e AMARO, Luciano da Silva, 1983, op.cit., pp. 140-158.

189 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 219.

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No atual sistema constitucional brasileiro, o Princípio da Anualidade não configura condição à válida cobrança ou majoração de tributos, embora, como salientado por Misabel Derzi, institua parâmetros jurídicos indispensáveis, dada sua importância dentro da lógica orçamentária. O Princípio é responsável pela fixação (i) do marco temporal imposto expressamente ao legislador financeiro na fixação do exercício; (ii) do marco temporal imposto ao legislador tributário para eficácia e aplicação das leis tributárias que instituem ou majoram tributo, graças ao Princípio da Anterioridade; e (iii) do referencial indicativo da periodização dos impostos incidentes sobre a renda e o patrimônio.190

O Princípio da Anterioridade foi a adaptação brasileira encontrada às violações constantes ocorridas ao Princípio da Anualidade, que, chanceladas pelo STF,191 colocaram em xeque o referido Princípio. Na atual Carta Brasileira, o Princípio da Anterioridade encontra assento constitucional no art. 150, III, “b”, “c”e art. 195, §6º, abaixo transcritos:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: II - cobrar tributos:

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

190 Apud COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,

2004. pp. 253-255.

191 Na vigência da Constituição de 1946, inobstante a expressa previsão da anualidade no art. 141, §34, o STF

entendeu ser “legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro” (Súmula 66), e “inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro” (Súmula 67).

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c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (EC nº 42/03)

§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156,

I. (Redação da EC nº 42/03)

Publicada uma lei criando um novo tributo ou aumentando o valor a ser recolhido em face de um tributo existente, sua vigência fica postergada para o exercício seguinte, desde que o prazo entre a data da publicação da lei e o próximo exercício seja superior a noventa dias. Se o prazo existente entre a data de publicação da lei e o término do exercício fiscal for inferior a noventa dias, a majoração do tributo existente ou novo tributo criado somente poderão ser exigidos após o transcurso do prazo nonagesimal.

A finalidade da alteração criada pela Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, como se observa, parece ter sido a de estabelecer uma garantia padronizada, mínima (noventa dias), no aumento de tributos, indo ao encontro da segurança jurídica através da estruturação de uma regra comum a todo sistema. As exceções contidas no §1º do art. 150 da Carta Constitucional, além da já estabelecida no art. 177, §4º, da Carta Maior, no entanto, esvaziaram bastante essa garantia, acrescentando complexidade à matéria, que pode ser esquematizada da seguinte forma:

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I. Exceções a qualquer forma de anterioridade (referidas pelas alíneas “b” e “c” do inciso III do art. 150 da CF/88):

a) empréstimos compulsórios criados em virtude de despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência;

b) imposto de importação; c) imposto de exportação.

II. Exceções exclusivas à anterioridade referida pelo art. 150, III, “b”, da CF/88: a) imposto sobre produtos industrializados;

b) imposto sobre operações de câmbio, de crédito, de seguros ou relativas a valores mobiliários;

c) contribuição de intervenção no domínio econômico sobre a comercialização e importação de petróleo e derivados, gás natural e seus derivados, álcool combustível.192

III. Exceções exclusivas à anterioridade nonagesimal, apenas (art. 150, III, “c”, e art. 195, §6º, da CF/88):

a) imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza;

b) fixação da base de cálculo do imposto sobre a propriedade territorial urbana e do imposto sobre a propriedade de veículos automotores;

c) contribuições previdenciárias, que encontram fundamento de validade no art. 195 da CF/88.

192 Sendo restrição criada pelo legislador constituinte derivado à garantia do contribuinte prevista pelo art. 150,

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A majoração de tributos pode ocorrer sob diversas formas, das mais simples (aumento de alíquota e ampliação da base de cálculo), até as mais complexas, como a restrição à utilização de créditos para abatimento do quantum debeatur, nos tributos não-cumulativos (IPI, ICMS, PIS, COFINS). Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida liminar postergando a aplicação das restrições ao direito de crédito de ICMS, previstas pela Lei Complementar 102, de 11 de julho de 2000, para o exercício seguinte (2001), entendendo que sua aplicação, no mesmo exercício, violaria o Princípio da Anterioridade.193 O mesmo raciocínio aplica-se à revogação de

norma que estabelece isenção, pois a revogação da isenção nada mais significa do que a instituição de tributo.

Conforme referido anteriormente, enquanto a irretroatividade está ligada à intangibilidade do passado, a anterioridade destina-se ao futuro, assegurando aos contribuintes a fixação de um período mínimo para que planejem suas atividades a partir de uma carga tributária majorada. Isso permite que os contribuintes tenham a plena antevisão das consequências tributárias de seus atos, assegurando o regular desenvolvimento de suas vidas e atividades.

O fim primordial dessa limitação constitucional, portanto, é a tutela da segurança jurídica, especificamente configurada na justa expectativa do contribuinte quanto à certeza e à previsibilidade da sua situação fiscal. Esse ponto constitui o centro a partir do qual devem gravitar todas as questões retóricas e dogmáticas ligadas

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à anterioridade. Ela constitui uma garantia de estabilidade e previsibilidade contra o agravamento repentino da posição tributária de um contribuinte reputada estabilizada, seja essa alteração causada por uma alteração legislativa, em sentido estrito, seja ela decorrente da interferência porventura causada pelo Poder Judiciário, modificando expectativas tuteladas por institutos jurídicos estabilizadores, como a coisa julgada.

Antes de encerrar o tópico, não pode passar despercebida a análise, ainda que en passant, da Súmula 584, que dispõe o seguinte: “Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.”

A Súmula acima reproduzida foi resultado da prevalência da corrente doutrinária que entendia que a lei aplicável à tributação da renda era aquela vigente no final do exercício. Isso porque o evento tributário (“fato gerador”) ocorreria somente no final do ano. Dessa forma, qualquer alteração ocorrida antes do ocaso, em 31 de dezembro, não violaria os Princípios da Anterioridade ou Irretroatividade.

Essa vetusta Súmula, embora tenha sido alvo de críticas de boa parte da doutrina brasileira, foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal mesmo após o advento do Novo Texto Constitucional Brasileiro, como revela o precedente abaixo transcrito:

DIREITO CONSTITUCIONAL, TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. IMPOSTO DE RENDA SOBRE EXPORTAÇÕES INCENTIVADAS, CORRESPONDENTE AO ANO-BASE DE 1989. MAJORAÇÃO DE ALÍQUOTA PARA 18%, ESTABELECIDA PELO INC. I DO ART. 1º DA

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LEI Nº 7.968/89. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO ART. 150, I, "A", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

1. O Recurso Extraordinário, enquanto interposto com base na alínea "b" do inciso III do art. 102 da Constituição Federal, não pode ser conhecido, pois o acórdão recorrido não declarou a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.

2. Pela letra "a", porém, é de ser conhecido e provido.

3. Com efeito, a pretensão da ora recorrida, mediante Mandado de Segurança, é a de se abster de pagar o Imposto de Renda correspondente ao ano-base de 1989, pela alíquota de 18%, estabelecida no inc. I do art. 1º da Lei nº 7.968, de 28.12.1989, com a alegação de que a majoração, por ela representada, não poderia ser exigida com relação ao próprio exercício em que instituída, sob pena de violação ao art. 150, I, "a", da Constituição Federal de 1988.

4. O acórdão recorrido manteve o deferimento do Mandado de Segurança. Mas está em desacordo com o entendimento desta Corte, firmado em vários julgados e consolidado na Súmula 584, que diz: "Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração." Reiterou- se essa orientação no julgamento do R.E. nº 104.259-RJ (RTJ 115/1336). 5. Tratava-se, nesse precedente, como nos da Súmula, de Lei editada no final do ano-base, que atingiu a renda apurada durante todo o ano, já que o fato gerador somente se completa e se caracteriza, ao final do respectivo período, ou seja, a 31 de dezembro. Estava, por conseguinte, em vigor, antes do exercício financeiro, que se inicia a 1º de janeiro do ano subsequente, o da declaração.

6. Em questão assemelhada, assim também decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do R.E. nº 197.790-6-MG, em data de 19 de fevereiro de 1997. 7. R.E. conhecido e provido, para o indeferimento do Mandado de Segurança. 8. Custas "ex lege" (STF, 1ª Turma, RE 194.612, Rel. Min. Sydnei Sanches, D.J.U. 08/05/98).

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O claro posicionamento do STF acima revelado não arrefeceu as críticas doutrinárias ao conteúdo da Súmula 584 do STF. Sua questionável premissa, inconciliável com a segurança jurídica e com uma interpretação sistemática erigida a partir da confiança dos contribuintes e da previsibilidade das consequências jurídicas decorrentes dos atos e negócios por eles praticados ao longo do exercício fiscal,194 tem

feito com que esse posicionamento venha sofrendo severas críticas do próprio Poder Judiciário, como revela a excelente decisão proferida pelo TRF da 4ª Região, que teve como Relator o Desembargador Federal Leandro Paulsen:

TRIBUTÁRIO. IR E CSL. LIMITAÇÕES À COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZO FISCAL E DE BASE DE CÁLCULO NEGATIVA. POSSIBILIDADE. IRRETROATIVIDADE E ANTERIORIDADE. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA SÚMULA 584 DO STF. - Toda a tributação relacionada a fatos geradores ditos complexivos (como é o caso do lucro anual) dá-se por períodos de tempo, relativamente aos quaisse afere a dimensão quantitativa do fato gerador –base de cálculo – para fins de apuração do montante devido. As deduções possíveis são aquelas previstas em lei como medida de política fiscal. Fora disso, só se poderia afastar o cômputo daquelas receitas que, por sua natureza, não implicassem renda ou lucro. Inexiste direito adquirido à dedução de prejuízos ou base de cálculo negativa de períodos anteriores.

- Tanto a irretroatividade como a anterioridade constituem garantias do contribuinte em prol da segurança jurídica.

- A não-majoração da carga tributária relativa a fatos passados ou situados entre o período de advento da lei nova e o decurso do interstício da anterioridade (de exercício ou nonagesimal) é efeito da irretroatividade e da anterioridade.

194 A própria provisão do Imposto de Renda restaria praticamente inócua, assim como incertos restariam os

custos inerentes ao exercício de uma atividade, e o lucro existente ao longo do exercício, apurado em balanços intermediários.

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- Ainda que tomado como referência o aspecto temporal da hipótese de incidência tributária, não se tem como entender possível que a modificação na legislação, ocorrida em dezembro, venha a gravar o lucro do mesmo ano seja relativamente ao imposto de renda ou à contribuição sobre o lucro, eis que não atende nem à anterioridade de exercício nem à anterioridade nonagesimal.

- O momento de cumprimento de obrigação tributária acessória e o próprio prazo para pagamento dos tributos são dados irrelevantes para a análise da irretroatividade e da anterioridade, pois desbordam do fenômeno da incidência. Não há como continuar-se aplicando, pois, a Súmula 584 do STF.

- Afasta-se as limitações à compensação de prejuízos fiscais e da base de cálculo negativa relativas a exercícios anteriores, impostas pela MP 812, de 30 de dezembro de 1994, na apuração tanto do IRPJ como da CSL relativos ao lucro de 1994, cujos fatos geradores consideram-se ocorridos em 31 de dezembro do mesmo ano.195

Felizmente, a discussão acerca do alcance e da extensão da Súmula 584 foi reaberta no Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Recurso Extraordinário n° 183.130. O julgamento encontra-se suspenso, devido a um pedido de vistas do Min. Cezar Peluso. Até o momento, negaram provimento ao recurso extraordinário interposto pela União os Ministros Carlos Velloso (já aposentado) e Joaquim Barbosa. Em sentido contrário, deram provimento ao Recurso os Ministros Eros Grau e Menezes Direito.

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5.6. ISONOMIA, LIVRE-CONCORRÊNCIA E CAPACIDADE