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5. PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS

5.2. Legalidade

5.2.3 Legalidade e república

5.2.3.1. Função sistemática e significado

Conforme a brilhante lição do saudoso Professor Geraldo Ataliba,106 para se compreender, adequadamente, o conteúdo, o sentido e o alcance do Princípio da Legalidade no Brasil, é imperioso compreender sua ligação umbilical com o Princípio

103 § 34 Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada

exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.

104 § 2º Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 105 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - instituir ou aumentar tributo sem que a lei o estabeleça, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

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Republicano, que funciona como eixo central no esquema de tripartição dos poderes, idealizado por Montesquieu e adotado pelo ordenamento constitucional brasileiro.

Na República Brasileira, como bem esclarece o artigo 1°, Parágrafo Único, da Carta Magna, o poder emana do povo, que o exerce através dos seus representantes, eleitos diretamente. A criação do direito, através das leis, é expressamente estendida aos mandatários designados pelo povo, que, mediante o voto, destina a indivíduos

distintos as funções de legislar e administrar, que constituem poderes harmônicos e

independentes. Nesse contexto, como decorrência da forma de governo adotada, o

artigo 5°, inciso II, da Carta Maior, refletindo o Princípio Republicano, determinou, no capítulo de direitos e garantias individuais, que somente o produto do trabalho dos representantes do povo – lei – eleitos para essa finalidade é que constitui instrumento normativo apto a criar, extinguir e modificar direitos.107

Essa engrenagem representa uma conquista histórica contra o arbítrio e o desvio do poder e deve ser ainda mais observada quando seu funcionamento tem por finalidade a normatização de restrições impostas ao patrimônio dos cidadãos, matéria localizada no ponto central da tensão que está ligada às raízes da própria Constituição, enquanto fenômeno jurídico indispensável ao convívio social, desde a Idade Moderna.

107 O conceito de representação popular por meio da lei é bem definido por Valdés Costa, que, ao comentar o

Princípio da Legalidade, ressalta: “El principio está secularmente identificado con la idea de autoimposición, en

el sentido de obligación consentida por los obligados por medio de sus representantes en los parlamentos, cortes o Estados generales…” (COSTA, Ramón Valdés. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 2004. p. 125).

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A lei representa a vontade de autonormatização de uma coletividade que não reconhece outros poderes além daqueles que emanam do conjunto de cidadãos que fazem parte dela. Reflete as normas que a comunidade dá a si mesma por meio de seus representantes e é por isso que deve conter a estrutura básica do sistema jurídico, aquele em que se baseia e onde encontra apoio o restante da normativa que configura o ordenamento. Pois o sistema só garante a primazia da vontade popular quando se reserva à lei tal estrutura básica.108

Se o povo é titular da res publica e se o governo, como mero administrador, há de realizar a vontade do povo, é preciso que esta seja clara, solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a vontade popular. Em consequência, nenhuma expressão de vontade estatal será compulsória se não amparada em lei. Só a lei obriga, salvo as exceções expressas, que devem ser restritivamente interpretadas.109

A Legalidade, como se vê, domina a atuação de todos os órgãos do Poder.110 Essa é a razão pela qual deve ser encarada não apenas como uma mera legitimação formal-normativa, mas como um pilar central dentro da Constituição,111 assegurando a preservação da república e desempenhando as seguintes funções substanciais: a)

108 LAPATZA, José Juan Ferreiro, op.cit., p. 8. 109 ATALIBA, Geraldo, 2001, op.cit., p. 122.

110 Cf. SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha, op.cit., p. 54.

111 Quanto ao âmbito constitucional do Princípio da Legalidade, Valdés Costa comenta: “Conforme al dogma de

la subordinación de todas las ramas jurídicas a la Constitución […], la existencia de una ley no es suficiente por sí sola; es imprescindible, además, que la ley se ajuste a las normas y principios establecidos expresa o implícitamente en la Constitución…” (COSTA, Ramón Valdés. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 2004. p. 123).

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proteção do direito de propriedade, que é um condicionante da liberdade humana; b) garantia de segurança jurídica, trazida pela característica estabilizadora da lei, essencial ao desenvolvimento de valores como a confiança e a boa-fé no ordenamento jurídico; c) publicidade e democracia, pois a criação de obrigações jurídicas através do Legislativo possibilita o debate democrático e público dentro da sociedade.112

Em um estado democrático de direito, conforme ensina Klaus Tipke, o Princípio da Legalidade deverá ter como significado mínimo as seguintes determinações: (I) a atribuição de cargas tributárias é reservada à lei, ou seja, ela só é admissível na extensão e na medida em que é ordenada pela lei (assim chamada

reserva da lei). A fixação de um tributo pressupõe que seja preenchido um tipo legal,

ao qual a lei conecta um tributo como consequência jurídica (tipicidade da

imposição). Mas a consequência jurídica também precisa resultar da lei; (II)

regulamentos jurídicos e atos administrativos não podem se chocar contra a lei (Vorrang des Gesetzes).113

Se a ação estatal de tributar (tributação) atinge a liberdade e o patrimônio – e se esses bens encontram na sua proteção a própria razão de ser da Constituição –, é bem de ver que aquela faculdade que ao Estado se reconhece há de ser disciplinada estritamente em termos constitucionais. Em outras palavras: é matéria

112 Vide, a respeito, RODRÍGUEZ, Maria José, op.cit., pp. 143-144.

113 Ou primado da lei, conforme o autor. TIPKE, Klaus; LANG, Joaquim. Direito Tributário. Porto Alegre:

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substancialmente constitucional.114

Se assim é, desde que se adotou o Princípio Republicano – que postula que a função política é desempenhada por órgãos representativos, com mandato periódico e debaixo de um estatuto de responsabilidades –, impõe-se o pleno prestígio do consentimento dos tributos ao conteúdo do Princípio da Legalidade. E como consectário necessário do Princípio do Consentimento da Tributação – que se traduz na aprovação orçamentária dos tributos – está a fiscalização popular sobre a atividade arrecadadora e sobre a aplicação dos dinheiros públicos.

Enfim, como já apontava Hensel, em um sistema tributário estruturado a partir de garantias mínimas de um estado de direito, o Princípio da Legalidade deve ser observado integralmente e sem qualquer margem de consideração.115 Somente esse respeito assegurará o cumprimento do Princípio Republicano e a criação de um ordenamento jurídico dotado de segurança jurídica, previsibilidade e certeza acerca dos efeitos decorrentes dos atos praticados.

Ilustrativamente, o Princípio da Legalidade Tributária pode ser compreendido como uma moeda. Numa das faces, estará contida a determinação de que somente as obrigações respaldadas em veículo normativo próprio (lei) têm aptidão de criar hipóteses normativas tributárias válidas no nosso sistema. A atividade da Administração (Poder Executivo) através de decretos, instruções normativas, portarias

114 ATALIBA, Geraldo, 2001, op.cit., p. 127. 115 HENSEL, Albert, op.cit., p. 133.

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ou outras espécies normativas estará, sempre, adstrita aos limites legais, sendo supletiva e secundária. O desenho legal da obrigação não poderá ser alterado ou inovado por outro veículo que não a lei.

No outro lado da moeda, tem-se a determinação de que todos os elementos necessários ao surgimento da obrigação tributária (coordenadas de tempo, lugar, quantidade, sujeitos e evento) devem estar pormenorizadamente descritos nas hipóteses normativas, conferindo ao contribuinte condições plenas de antever, com exatidão, não apenas todos os elementos componentes da situação cuja ocorrência poderá ensejar o nascimento da obrigação jurídica tributária, como também a definição precisa do montante devido. A primeira face da moeda é, dogmaticamente, denominada “Legalidade Formal” ou “Legalidade”; a segunda, “Legalidade Material”116 ou “Tipicidade”.117

A lei, portanto, deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão do órgão de aplicação do

116 Qualquer hipótese normativa, como é cediço, possui um descritor, no qual está inserida uma determinada

situação (hipótese) e um prescritor, que atribui consequências jurídicas ao fato e/ou situação previstos no descritor. Tratando-se de hipótese normativa tributária, o descritor será composto por três elementos (lugar, tempo, fato jurígeno), que definem coordenadas indispensáveis à identificação da situação normativamente prevista. O prescritor, por sua vez, conterá uma obrigação de cunho econômico (obrigação de dar), que terá um sujeito ativo – titular da capacidade tributária – e um sujeito passivo, responsável pela realização da conduta correspondente ao pagamento de determinado valor. Esse, por fim, será o resultado da multiplicação de uma base de cálculo por uma alíquota.

Cada um dos elementos que compõe a hipótese normativa tributária deve estar claramente definido e identificado pela lei instituidora da exação sujeita ao Princípio. Somente asim estará atendida a Legalidade Material ou Tipicidade. Em breve síntese, pode-se dizer que a hipótese normativa tributária válida deve ter respaldo legal (Legalidade Formal), no qual estejam previstos todos os seus elementos definidores (Legalidade Material ou Tipicidade).

117 Na doutrina latino-americana, José Osvaldo Casás, por exemplo, adota tal distinção (CASÁS, José Osvaldo, op.cit., p. 221).

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direito no caso concreto. Daí que as normas que instituem tributos sejam verdadeiras normas de decisão material (Sachentscheidungsnormen), na terminologia de Werner Flume, porque, ao contrário do que sucede nas normas de ação (Handlungsnormen), não se limitam a autorizar o órgão de aplicação do direito a exercer, mais ou menos livremente, um poder, mas lhe impõem o critério da decisão concreta, predeterminando integralmente o conteúdo normativo.118

Desse modo, sujeito ativo, sujeito passivo, critérios material, espacial, temporal, base de cálculo e alíquota, devem estar descritos em diploma legal. Se a lei for omissa ou obscura em qualquer desses pontos, descabe ao administrador (que aplica a lei de ofício) e ao juiz (que aplica a lei contenciosamente) integrarem a lei, suprindo a lacuna. Nesse caso, o juiz deve sentenciar a inaplicabilidade da lei por insuficiência normativa, somente suprível através de ato formal e materialmente legislativo.119

A subsunção tributária que, na lição clássica do direito tributário, dá origem à obrigação jurídica tributária, ocorre a partir da identidade entre o conceito da norma e o conceito do fato, de forma que os elementos que compõem aquele estejam presentes neste.

118 XAVIER, Alberto, op.cit., pp. 17-18.

119 Nesse sentido, vide ADI 1600 (STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, Rel. p/ Acórdão Min.

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A ausência de subsunção, portanto, pode decorrer tanto de hipótese normativa incompleta, na qual pelo menos um dos critérios estruturais (conotativos) da obrigação tributária não se encontra presente, como na hipótese de insuficiência do fato; ou seja: o fato considerado não possui todos os atributos e circunstâncias definidos na hipótese legal.

Do Princípio da Legalidade, enfim, decorre a necessidade de encontrar na lei o fundamento direto das decisões administrativas produzidos pelas autoridades fiscais, com as ressalvas criadas pelo legislador constituinte originário.