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5. PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS

5.4. Irretroatividade

5.4.1 Introdução e conteúdo

O tema da irretroatividade135 está ligado às noções de passado, presente e futuro, enquanto caminho, transcurso numa linha do tempo. A existência do direito enquanto sistema prescritivo apto a solucionar conflitos e fixar parâmetros para a adoção de condutas pelos indivíduos depende, inexoravelmente, da inviolabilidade das dimensões obrigacionais surgidas no passado. Sem isso, a autoridade na qual está investida a lei é relativizada, o que colocaria em xeque a própria força prescritiva ordenamento jurídico, abalado em sua justificativa existencial.

Fica fácil entender, portanto, por que a vedação à retroatividade é tão antiga como a própria civilização. Ela está umbilicalmente ligada à segurança dos indivíduos e à proteção da propriedade, fatores que tornaram necessário o surgimento de comandos prescritivos genéricos de controle social. As palavras de Portalis a esse respeito são lapidares:

“o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro, nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o

135 Embora o BVerfG já tenha admitido a distinção da retroatividade em (i) retroatividade própria (quando a lei

intervém posteriormente, modificando preceitos do passado) da (ii) retroatividade imprópria (quando a lei atua sobre situações jurídicas ainda não definitivamente consolidadas), em direito tributário, jamais se reconheceu como admissível qualquer caso de retroatividade imprópria. Tipke, em estudo coordenado por Andrea Amatucci, critica a distinção traçada pelo Tribunal Constitucional Alemão. Segundo o jurista, essa distinção estaria acoplada ao conceito de periodicidade (anualidade). A respeito, vide: TIPKE, Klaus. La retroactividad

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peso do seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade, querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças”.136

O respeito à República depende do respeito à lei, cuja autoridade está diretamente ligada à sua capacidade de disciplinar e definir situações jurídicas a ela subsumidas, prescrevendo as respectivas consequências jurídicas. Assim, o império da lei é violado sempre que é suprimido seu vigor137, revelado pelas consequências jurídicas já disciplinadas pelo veículo legal e estabilizadas no tempo. Esse é o motivo pelo qual boa parte da doutrina considera que a irretroatividade é uma consequência da legalidade, como Rubén Oscar Asorey,138 para quem a certeza e a segurança jurídica não constituem um critério limite para a retroatividade, mas um conteúdo da legalidade, do qual decorre a irretroatividade.

Mesmo que não seja admitida como consequência lógica da legalidade, é inegável que a reserva legal, sem a garantia da irretroatividade, fica destituída de sua função estabilizadora, restringindo-se a um mero requisito formal ligado às fontes do direito. Como acertadamente pondera Dino Jarach, a adoção da legalidade significa que as situações jurídicas dos contribuintes devem ser regidas por lei, mas não por

136 Apud RÁO, Vicente, op.cit., p. 389.

137 Vigor é a qualidade da norma que diz respeito à sua força vinculante, que deve persistir, em geral, mesmo

quando ela não mais integra o ordenamento jurídico, pois a norma seguirá disciplinando as relações jurídicas nascidas sob a égide da sua vigência. Nesse sentido, vide FERRAZ JÚNIOR, 2001, op.cit., p. 199.

138 ASOREY, Rúben Oscar. Legalidad, certeza y irretroactividad fiscal. apud CASÁS, José Osvaldo, op.cit.,

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qualquer lei, senão pela lei anterior e vigente aos atos que se sujeitam ao seu império.139

Retroatividade tem a ver com incidência normativa. Quando uma norma eficaz produz o efeito previsto sobre fato ocorrido no passado, diz-se que ela incide retroativamente. Incidência significa que, a um fato acontecido, posterior ou anterior à vigência, se deu a configuração normativa. Tratando-se, por exemplo, de uma configuração subjetiva, fala-se em direito adquirido; de uma configuração objetiva, de ato jurídico perfeito e acabado.140

Apenas a Constituição Brasileira do Império (1824)141 e a primeira Carta Republicana (1891)142 impediam, de maneira incondicional, a irretroatividade das leis. As demais Constituições – seguindo o modelo instituído pela Constituição de 1934 – tornaram intangíveis apenas certas situações consolidadas no passado, a saber: o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

139 JARACH, Dino. Curso superior de derecho tributario. Buenos Aires: Ed. Cima, 1957. p. 112.

140 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Anterioridade e Irretroatividade no Campo Tributário. Revista

Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 65, fev. 2001. p. 127.

Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a

liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

I. Nenhum Cidadão póde ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei. II. Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade publica.

III. A sua disposição não terá effeito retroactivo.

142 Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União:

1º) criar impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para outro, sobre produtos de outros Estados da República ou estrangeiros, e, bem assim, sobre os veículos de terra e água que os transportarem;

2º) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; 3º) prescrever leis retroativas.

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Especificamente no campo tributário, o art. 150, III, “a”, da Constituição de 1988, prescreve:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III - cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;

No capítulo de direitos e garantias individuais e coletivos da Constituição Federal (art. 5º, XXXVI), está previsto que a lei não prejudicará a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Já o art. 150, III, “a”, anteriormente

transcrito, estabelece o Princípio da Irretroatividade – no direito tributário – em qualquer situação, ou seja, independentemente da configuração de coisa julgada, ato

jurídico perfeito ou direito adquirido.143 A prescrição é ampla e não comporta exceções decorrentes de qualquer classificação (retroatividade própria ou imprópria, ou máxima, média e mínima).144 Em suma, sempre que uma lei tributária agravar a

situação do contribuinte, sobre qualquer aspecto, não poderá ser dotada de eficácia retroativa.

143 Conforme VELLOSO, Carlos Mário da Silva.. O Princípio da Irretroatividade da lei tributária. Revista

Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 15, 1996. p. 14.

144 De acordo com VELLOSO (Ibid., p. 18), a retroatividade é máxima quando a lei retroage para atingir coisa

julgada ou fatos jurídicos consumados; é média quando atinge direitos exigíveis mas não realizados antes dela, vale dizer, já existentes mas ainda não integrados ao patrimônio do titular (efeitos ainda pendentes de atos praticados antes da nova lei); é mínima quando atinge os efeitos de fatos anteriores à sua edição, a contar da vigência da lei.

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Como bem explica Tércio Sampaio Ferraz Júnior,145 pela irretroatividade, cada fato-evento sucessivo fica protegido contra a lei a eles posterior, na sua singularidade. Protege-se a expectativa legítima neles contida enquanto fatos pretéritos. Por ela, impede-se que eles sejam atingidos, ainda que considerados componentes de uma materialidade mais ampla. O fato de possuírem relevância jurídica ditada pela norma tributária, mesmo enquanto partes de um todo, torna sua expressão e sua relevância, perante o ordenamento jurídico vigente na data da sua ocorrência, inalteráveis. Assim, ocorridos antes de uma lei nova que lhes confira enquadramento jurídico mais gravoso, restam cobertos pelo manto da irretroatividade.

Ao contrário do destaque expressamente conferido ao tema pelo legislador constituinte originário, diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros sequer possuem previsão expressa da irretroatividade, que, no campo tributário, é considerado corolário do Princípio da Capacidade Contributiva.

Para a doutrina italiana, uma norma tributária com efeito retroativo estaria em manifesto confronto com o art. 53, §1º, da Constituição Italiana, enunciado identificado como Princípio da Capacidade Contributiva, que determina que “todos estão obrigados a contribuir com os gastos públicos de acordo com sua capacidade contributiva”. Ignacio Manzoni, ao analisar esse artigo, afirma que a Constituição Italiana fixa como exigência à imposição tributária que o gravame tributário atinja

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capacidades contributivas atuais, jamais buscando representações de riqueza anteriores à vigência146 da nova lei tributária.147

O Princípio da Capacidade Contributiva exige contemporaneidade, de tal sorte que só se pode falar em Capacidade Contributiva atual, jamais em Capacidade Contributiva pretérita. Nem mesmo a omissão do legislador ao deixar de tributar determinado evento inequivocamente identificado como signo presuntivo de riqueza (na acepção cunhada por Alfredo Augusto Becker) e que tenha denotado aptidão tributária no passado constitui justificativa para atribuição de eficácia retroativa a uma norma. Como bem aponta Moschetti,148 a toda manifestação de capacidade contributiva deve corresponder a uma riqueza atual, pois, em caso contrário, o contribuinte estaria num estado de permanente incerteza.

É interessante observar como o significado de um enunciado dentro de cada ordenamento está ligado à existência e ao conteúdo atribuídos aos demais enunciados existentes no sistema (o conteúdo de um signo é definido pelo significado atribuído aos outros signos existentes no sistema). No Brasil, em virtude da determinação expressa da vedação à retroatividade no capo tributário contida no art. 150, III, “a”, da

146 Vigência não se confunde com vigor. Vigência é uma qualidade da norma que diz respeito ao tempo em que

ela atua, podendo ser invocada para produzir efeitos. Vigor diz respeito à força vinculante da norma, enquanto ela foi vigente. Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “é de se admitir, via de regra, vigência e vigor tendem

a coincidir. Isto é, a norma válida adquire vigência na data da sua publicação e desde então tem vigor. O vigor, contudo, não se confunde nem com a vigência nem com a validade. Que uma norma tem vigor, tem força, significa que ela é vinculante, ou seja, não há como subtrair-se ao seu comando, ao seu império” (ICMS sobre BensImportados,inhttp://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/51,acessoem19/06/10). 147 MANZONI, Ignacio. Sul problema de la constitucionalità delle leggi tributarie retroattive. Rivista de Diritto

Finanzziario e Scienza delle Finanze, n. 963, v.1. p. 519 apud CASÁS, José Osvaldo, op.cit., p. 803.

148 MOSCHETTI, Francesco. El Principio de capacidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales,

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Constituição, o Princípio da Capacidade Contributiva é associado, em geral, com o evento descrito na hipótese normativa tributária, que deve revelar uma situação que denote riqueza atribuída ao indivíduo situado no pólo passivo da sujeição legal. Nos países em que não existe previsão específica acerca da vedação à retroatividade da lei tributária, o Princípio da Capacidade Contributiva possui um alcance semântico muito maior, pois engloba o conteúdo da irretroatividade.

Sobre a consolidação da irretroatividade enquanto conteúdo integrante da capacidade contributiva, José Osvaldo Casás,149 a partir do excelente estudo desenvolvido por Regina Gaya Sicilia,150 sintetiza a concepção doutrinária absorvida pela Corte Constitucional Italiana e pelos países cujas Constituições não conferiram destaque específico ao Princípio da Irretroatividade. A clareza das palavras utilizadas pelo professor argentino reclama transcrição:

Las notas características de los precedentes referidos, y de otros muchos, marcaran una relación inescindible entre la subsistencia de capacidad contributiva en cabeza del destinatario legal tributario y la posibilidad de acción retroactiva de las leyes en la materia, lo cual ha obligado a ponderar distanciamiento temporal entre la hipótesis de incidencia tributaria y el momento de devengo de la prestación, como la previsibilidad de las medidas fiscales. De tal modo, el juego del art. 53, primer párrafo, de la constitución italiana cumple una importante función garantista de la libertad y la propiedad del ciudadano.

149 CASÁS, José Osvaldo, op.cit., p. 806.

150 GAYA SICILIA, Regina. El principio de irretroactividad de las leyes en la jurisprudencia constitucional.

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Seja em decorrência de previsão expressa no texto constitucional – caso da Constituição Brasileira –, seja como corolário implícito do Princípio da Capacidade Contributiva (Constituição Italiana), seja, enfim, enquanto conteúdo indissociável do Princípio da Segurança Jurídica, o fato é que o Princípio da Irretroatividade é identificado como barreira constitucional, reconhecida em quase todos os ordenamentos jurídicos, o que condiciona o válido exercício da competência tributária pelos entes tributantes.