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3. CRÉDITO TRIBUTÁRIO

3.1. Nascimento da relação jurídica tributária

O crédito tributário diz respeito ao direito subjetivo pelo qual a fazenda pública tem de exigir do sujeito passivo tributário a adoção da conduta prevista na regra-matriz de incidência tributária, qual seja: o pagamento do tributo.47 Conforma um dos polos do enlace obrigacional, que tem no polo oposto a obrigação tributária, imputada ao sujeito passivo.

O nascimento da relação jurídica tributária, para grande parte da doutrina, tem lugar com a ocorrência, no mundo fenomênico, do evento descrito na hipótese normativa tributária, como aponta José Juan Ferrero Lapatza:48

Já podemos afirmar que a realização do fato imponível determina o nascimento da obrigação tributária principal. A obrigação tributária principal nasce quando tal fato se realiza. Neste momento, segundo a terminologia usualmente aceita por nosso Direito positivo, se ‘devengo’ o tributo. O ‘devengo’ marca o momento em que, realizado o fato imponível, nasce a obrigação de contribuinte.

47 Pode ser efectual (aquele que nasce com ocorrência do evento previsto pela hipótese normativa tributária), ou

concreto (aquele inscrito num ato de aplicação, como o lançamento tributário).

48 LAPATZA, José Juan Ferreiro. Direito tributário: teoria geral do tributo. Barueri: Manole; Espanha: Marcial

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Essa corrente doutrinária tem esteio nos ensinamentos de Albert Hensel, para quem o nascimento da obrigação tributária tem lugar com a ocorrência do respectivo pressuposto de fato. Assim, ocorrendo a congruência entre os critérios previstos na hipótese tributária (norma geral e abstrata) e as peculiaridades fáticas de uma situação considerada, nasce a obrigação tributária, corolário da incidência automática e infalível da norma sobre o evento ocorrido, denominado fato imponível.

O fato imponível, nessa concepção, corresponde ao evento considerado pelo legislador como suficiente ao surgimento da obrigação jurídica. Nas palavras do saudoso Professor Geraldo Ataliba, o fato imponível é um fato jurígeno a que a lei atribui a consequência de determinar o nascimento da obrigação tributária concreta.49 A expressão cunhada por Geraldo Ataliba foi novamente batizada por Paulo de Barros Carvalho como fato jurídico tributário. Segundo o jurista, o fato não é ainda “imponível” antes da sua ocorrência. Logo, seria semanticamente mais correto denominá-lo “fato jurídico tributário”.

Em virtude do Princípio da Legalidade, reafirmado no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, o nascimento válido da obrigação jurídica tributária está atrelado à perfeita congruência entre o conceito da norma e o conceito do fato. Assim, tem-se o nascimento do vínculo obrigacional a partir da ocorrência do evento descrito na hipótese normativa tributária, com todas as suas coordenadas (critérios material, temporal, espacial, subjetivo e quantitativo).

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Nesse modelo, como bem define o Prof. Luciano Amaro,50 a relação jurídica nasce com a ocorrência do fato jurídico tributário e ganha exigibilidade com o lançamento tributário (lançamento de ofício), ou o autolançamento.

O lançamento de ofício configura ato administrativo vinculado, privativo da autoridade fiscal, previsto no art. 142 do Código Tributário Nacional. Através dele, o crédito tributário é constituído, tornando-se exigível a conduta correspondente ao pagamento pelo sujeito passivo. Em face dos distintos contextos nos quais esse ato poderá ser produzido pela autoridade fiscal, entende-se que ele pode ser originário ou suplementar.51

O autolançamento, por sua vez, diz respeito aos atos praticados pelos contribuintes, aos quais certas normas de competência que integram o ordenamento jurídico atribuem eficácia constitutiva da relação jurídica tributária, como, por exemplo, a Declaração de Contribuições e Tributos Federais (DCTF). Difere do lançamento de ofício no que diz respeito, apenas, ao órgão produtor do ato-norma.

O lançamento e o autolançamento, segundo essa linha teórica, são dotados de eficácia meramente declaratória da obrigação jurídica tributária – cujo nascimento

50 AMARO, Luciano da Silva. Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 318.

51 O lançamento de ofício originário tem lugar nos tributos em que a legislação atribui à autoridade fazendária o

ônus de realização do lançamento. Exemplos: IPTU, IPVA. O lançamento de ofício suplementar, de sua vez, ocorre nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, nos casos em que o sujeito passivo que deveria, originariamente, constituir o crédito tributário através do autolançamento incorre em omissões, que serão objeto de um lançamento de ofício (suplementar) com provável imposição de multa.

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teria ocorrido quando da ocorrência do fato imponível –, embora tenham eficácia constitutiva do crédito tributário até então inexistente.

Sob a ótica até aqui analisada, verifica-se que grande parte da doutrina admite a desvinculação entre a obrigação e o crédito tributários, cujos nascimentos estariam ligados a momentos lógicos distintos: o primeiro teria lugar com a ocorrência do fato imponível, corolário da incidência automática e infalível; o segundo seria fruto de um ato de aplicação – denominado de lançamento, ou autolançamento, pela legislação brasileira. Segundo Rubens Gomes de Souza,52 a consequência do lançamento é a criação da obrigação em sentido formal, já que a obrigação em sentido material teria surgido com a ocorrência do fato gerador.

As conclusões contidas no parágrafo anterior, contudo, não foram e não são, até hoje, pontos pacíficos na doutrina. A primeira formulação acerca da constituição do vínculo tributário, elaborada no início do século passado pelo professor austríaco Franz Von Myrbach-Rheinfeld, tratava o assunto de modo distinto. Myrbach- Rheinfield estabelecia a diferença entre a “obrigação de imposto” (Abgabenverbindlichkeit) e a “dívida de imposto” (Zahlungsbefeld). A primeira nasceria com a verificação das circunstâncias previstas em lei que conferem à entidade fiscal o direito de determinar o montante devido e o respectivo sujeito passivo. A segunda teria lugar no momento em que o aludido ato de autoridade se

52 SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras,

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realiza, conforme descreve o Professor Soares Martínez,53 deflagrando a relação jurídica tributária (dívida de imposto).

Como a maioria dos sistemas jurídico-tributários não conhecia a figura da ordem de pagamento, a doutrina do professor austríaco teve de ser adaptada, substituindo-se a ordem de pagamento pelo conceito de liquidação (“lançamento” no direito português, accertamento no direito italiano, ermittlungsverfahren no direito alemão).

Influenciado por essa doutrina, Berliri afirmou que a obrigação tributária se concretizava em duas fases: a primeira caracterizava-se pelo nascimento de um direito potestativo, como consequência do fato imponível; a segunda, pelo nascimento e desenvolvimento da obrigação tributária. As duas fases seriam interligadas pelo lançamento (ato de imposição).54

Utilizando a Semiótica como ferramenta e encarando o direito como fenômeno linguístico que estabelece a forma pela qual os fatos sociais ingressam no sistema comunicacional jurídico, Paulo de Barros Carvalho enfrentou as questões relativas ao nascimento da obrigação jurídica tributária de modo singular. Segundo o jurista, o processo de positivação do direito compreenderia uma trajetória que parte da

53 MARTÍNEZ, Soares. Direito Fiscal. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2003. cap. II.

54 BERLIRI, Antonio. Principios de Derecho Tributario. Trad. espanhola de Narciso Amorós Rica e Euzébio

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mais ampla generalidade e abstração e atinge níveis de individualidade e concreção, através de atos de aplicação.

Esse movimento ocorre porque uma ordem jurídica não se realiza, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que dos comandos gerais e abstratos sejam sacadas normas que singularizem fatos jurídicos e instituam relações jurídicas determinadas. A norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor da sua juridicidade, reivindica a edição de uma norma individual e concreta.55

A dinâmica dentro da qual o direito é realizado está relacionada com esse movimento intercalar que, no campo tributário, tem como referência e ponto de partida as normas que dizem respeito às competências tributárias inscritas na Constituição Federal e, como ponto de chegada, a norma individual e concreta derradeira, não mais sujeita a alterações, ponto a partir do qual as expectativas e realidades jurídicas são estabilizadas. Nessa sucessão de normas, baixando incisivamente para o plano das condutas efetivas, está sempre o ser humano, praticando aqueles atos conhecidos como fontes de produção normativa. O homem, portanto, movimentaria as estruturas do direito, sacando de normas gerais e abstratas normas jurídicas de maior concretude, para disciplinar os comportamentos intersubjetivos.56

55 CARVALHO, Paulo de Barros, 1999, op.cit., pp. 218-220. 56 Ibid, p. 34.

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Na perspectiva do grande professor ora abordada, a assertiva de que a

incidência deve ser considerada como automática e infalível deve ser considerada correta somente no que diz respeito à relação implicacional existente entre descritor e prescritor da norma jurídica, demonstrando que sua validade independe da verificação efetiva da conduta prescrita na realidade social.

Entretanto, enquanto condição necessária ao nascimento da obrigação jurídica tributária, a incidência não é automática e infalível, como afirmou Becker. Não é o texto normativo que incide sobre o fato social, tornando-o jurídico. É o ser humano que constrói a norma jurídica individual e concreta, buscando fundamento de validade em uma norma geral e abstrata. Emprega, para tanto, a linguagem que o sistema estabelece como adequada, instaurando o fato e seus efeitos prescritivos, consubstanciados no laço obrigacional que vai atrelar os sujeitos da relação.

Instituída a relação jurídica tributária através de uma norma individual e concreta produzida tanto pelo sujeito ativo (lançamento de ofício), como pelo sujeito passivo (autolançamento), atinge-se uma etapa do fluxo de positivação cujo alcance deflagra reflexos que vão desde o descarte de remédios processuais estendidos ao contribuinte (ação declaratória de inexistência de relação jurídica tributária, por exemplo), passam pela eventual impossibilidade de obtenção de certidões de regularidade fiscal, dentro dos parâmetros ordinários (inexistindo pagamento, suspensão da exigibilidade do crédito tributário ou garantia da dívida), e atingem a inalterabilidade do enquadramento jurídico conferido ao evento, nos casos de

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lançamento de ofício (previsão expressa contida no artigo 146 do Código Tributário Nacional).57

Essa posição doutrinária sustentada pelo Professor Titular de Direito Tributário da PUC-SP e da USP – adotada como referencial teórico no presente trabalho – atribui significativa importância aos operadores do direito, aos quais, em cada contexto, foi atribuído o dever de constituir a relação jurídica tributária, através do respectivo ato-norma (lançamento e autolançamento). A clareza e a didática com que Paulo de Barros Carvalho exprime seu entendimento sobre o tema são reveladas a partir da seguinte transcrição:

Resumimos, para deixar patente que o lançamento tributário é ato jurídico administrativo que põe no ordenamento jurídico uma norma individual e concreta: no antecedente, o relato do evento tributário, estabelecendo-se como fato; no conseqüente, a prescrição de um vínculo que nasce unindo dois sujeitos em torno de uma prestação pecuniária. Visto na sua integridade, apresenta caráter declaratório do fato e constitutivo da relação, ainda que possamos rematar que o ‘declaratório do fato’ representa sua própria composição no plano das objetividades, aparecendo exatamente assim para o conhecimento jurídico.

Enfim, é através desse ato (lançamento ou autolançamento) que determinado evento ingressa no sistema jurídico enquanto antecedente de uma norma que estabelece uma relação jurídica tributária. Esse antecedente corresponde à descrição de um evento que, já ocorrido, constitui o marco na linha do tempo de onde é extraída

57 Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos

critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento, somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

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a legislação tributária aplicável (o que não inclui as normas sancionatórias, tendo em vista o disposto no art. 106, II, do CTN).58

A norma originária que institui a relação jurídica tributária será sempre constituída por um dos sujeitos que compõem o enlace obrigacional (sujeito passivo ou sujeito ativo) e jamais pelo Poder Judiciário, cuja função será sempre desconstitutiva (total ou parcialmente) ou declaratória (cumulada por ato dotado de eficácia mandamental). Isso explica por que a anulação judicial do crédito tributário inscrito em dívida ativa devido à utilização de fundamento legal equivocado não pode ser suprida nem mesmo com a substituição da respectiva Certidão de Dívida Ativa por outra, dotada do fundamento legal correto, conforme hipótese prevista no art. 2º, §8º, da Lei 6.830/80.59 Ora, a relação jurídica tributária deve nascer de um ato constitutivo, praticado pelo polo ativo ou pelo polo passivo do enlace obrigacional, respaldado num fundamento de validade aceito pelo ordenamento, sob pena de nulidade. Reconhecida a nulidade, deverá ser praticado outro ato visando à constituição válida da relação jurídica tributária (novo lançamento)60.

58 O ato-norma (lançamento ou autolançamento) pode inserir no ordenamento jurídico uma relação jurídica

calcada num evento ocorrido até cinco anos antes da sua lavratura, conforme preceituam os arts. 150, §4º e 173, I, do CTN.

59 A respeito da inscrição na dívida ativa, vide: VERGUEIRO, Camila Campos. Obrigação tributária: o processo de positivação e as causas suspensivas da sua exigibilidade. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 69 e segs.

60 Nesse sentido, a jurisprudência do STJ: “Até a decisão de primeira instância, a CDA poderá ser emendada ou

substituída, assegurada ao executado a devolução do prazo para embargos. A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que tal preceito ampara apenas as hipóteses de mera correção de erro material ou formal, sendo inviável a substituição da CDA nos casos em que haja necessidade de se alterar o próprio lançamento” (AgRg no Recurso Especial 1.086.823-RJ).

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Na esteira das observações referidas no parágrafo acima, deve ser acrescentado que assim como a substituição da CDA, pela Fazenda, nos casos em que nulidade fulmina o fundamento de validade do ato constitutivo da relação jurídica, não elide o vício de origem que permeou todo o processo administrativo, cuja regularidade assegura a certeza do crédito tributário, muito menos se pode admitir a correção do fundamento, apenas na CDA, pelo Poder Judiciário. Isso transformá-lo-ia em órgão instituidor da própria relação jurídica tributária (instituída de modo originário já no âmbito judicial), retirando-lhe a presunção de imparcialidade que constitui a essência da jurisdição num Estado democrático de direito.

A alteração de fundamento normativo implica inequívoca instituição de nova relação jurídica (surgida a partir da nova CDA), tarefa constitutiva incompatível com a função desempenhada pelo Poder Judiciário de acordo com a separação de poderes prevista na Carta Maior. No campo tributário, a relação jurídica tributária é apenas desconstituída (parcial ou integralmente) pelo Poder Judiciário, que jamais poderá exercer a função do sujeito ativo da relação tributária, redefinindo as normas individuais e concretas instituidoras da relação jurídica tributária.61

61 Nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA COM FUNDAMENTO EM LEI DECLARADA

INCONSTITUCIONAL PELO STF. POSSIBILIDADE DE O MAGISTRADO, DE OFÍCIO, VERIFICAR A VALIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. ARTIGO 2º DO CPC E ARTIGO 2º, § 8º, DA LEF NÃO

PREQUESTIONADOS. SÚMULA N. 211 DO STJ. ANÁLISE DE VIOLAÇÃO AO ART. 204 DO CTN E AO ART. 3º DA LEF. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO.

SÚMULA N. 7 DO STJ. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA.

1. Agravo regimental no qual se sustentam as seguintes alegações: (i) a existência de violação ao art. 535 do CPC; (ii) a liquidez e a certeza da CDA; (iii) a inaplicabilidade ao caso da Súmula n. 7 do STJ; (iv) a necessidade de perícia contábil para oportunizar-se-lhe a substituição da CDA, uma vez que os documentos necessários à confecção de nova CDA foram destruídos pela administração tributária; (v) que não há vício de

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3.2. DESENVOLVIMENTO E EXTINÇÃO DA RELAÇÃO