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Antropologia filosófica e marxismo

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 123-132)

Até aqui já deve ter ficado clara a engenhosa articulação entre o conceito antropológico de mudança social e aquele de desenvolvi- mento, de origem econômica, o que responde a uma necessidade crucial, de ordem epistemológica, determinada pela busca de Fur- tado, de uma ciência orientadora da prática política (reformista), visando à transformação da realidade. A definição de desenvolvi- mento como hipótese ordenadora do processo histórico retira o ca- ráter idealista da dialética hegeliana, exigindo, por outro lado, para a incorporação do conceito de mudança social, a crítica ao “pre- conceito antiteleológico” da antropologia, permitindo recuperar a perspectiva de Hegel e Marx do processo histórico como totalidade. Pode-se, assim, compatibilizar o uso da dialética para a definição de uma lógica totalizadora do processo histórico, com a aplicação rigo- rosa dos métodos da ciência analítica na abordagem de problemas sociais, sem cair nas armadilhas da razão instrumental.

A razão que está implícita na visão analítica do mundo é a razão instrumental, que se refere à coerência entre os fins e os meios de alcançá-los. A partir de Kant, essa razão, funda- mento dos meios, fora rejeitada como deformação empiris- ta, a qual seria fruto do desconhecimento de que o homem tem fins que não são apenas os da natureza [...]. Existem fins que apenas se compreendem no quadro da cultura, isto é, a partir de uma visão mais ampla do homem do que a que nos proporcionam as leis da natureza. Na percepção de Kant, a própria ideia de razão implica a de fins. O avanço do seu pensamento, com respeito ao racionalismo, consistiu em assinalar que os fins apreendidos pela razão não devem ser vistos como exteriores ou superiores a ela. Em realidade, o método dito transcendental não é outra coisa senão essa crítica imanente da razão que se julga a si mesma. (FURTA- DO, 1997, t. 3b, p. 306-7)

Numa sociedade voltada para a acumulação, como é o capitalis- mo, os meios tornam-se fins. O conhecimento do mundo, por exemplo, torna-se instrumento para a acumulação de riqueza e po- der, e não mais um fim em si mesmo, como ocorreria em outras culturas. A própria riqueza torna-se um fim em si, no movimento tautológico do capital, diria Marx, de valorização do valor. Para Fur- tado (1997, t. 3b, p. 307), nesse ponto, “a atividade criadora na so- ciedade passa a subordinar-se ao processo acumulativo” e não à satisfação das necessidades humanas.

Como corolário, a satisfação das necessidades humanas ten- de a ser vista como um processo que contribui para o bom funcionamento do sistema produtivo, ou seja, para que se mantenha a acumulação. Cumpre-se a subordinação dos fins aos meios. Se o homem cria no plano dos meios – com vistas à eficácia na ação – é porque na busca de um senti- do para a própria vida ele é compelido a criar no plano dos fins, realizando dessa forma suas virtualidades. Canalizar o impulso criativo em função de esquemas preestabelecidos é negar a capacidade de autotransformação, que é o especifi- camente humano. (FURTADO, 1964)

E segue:

A ciência moderna, expressão última do espírito analítico, armou o homem de meios cada vez mais poderosos para transformar o mundo. Mas essa força transformadora con- finou-se num espaço cultural rarefeito, porquanto a capaci- dade do homem para inventar valores finais que ampliam a visão de si mesmo e do mundo começava a declinar à medida que a criatividade se ia subordinando ao processo acumulativo. (FURTADO, 1964, p. 308)

E conclui:

A ideia de mundo dentro da qual cristalizou a ideia de pro- gresso, bússola dos grandes movimentos sociais modernos, tem seus suportes últimos no idealismo kantiano – que vê na razão humana um processo criador de fins – e no espí- rito analítico, que reduz o homem ao quadro da natureza, à qual sempre teriam pertencido os fins que regem a cultura. Mas se os fins não são simples secreção da razão humana nem o homem apenas o locus de uma razão com fins exte- riores a ela mesma, é que a própria visão do homem deve ser reconsiderada. (FURTADO, 1964, p. 308)

Daí deriva importantes questões:

Como pensar a felicidade humana sem antes tentar respon- der à pergunta de Kant: que é o homem? Como escapar às múltiplas formas de reducionismo que nos impôs o espírito analítico sem cair num simples idealismo? Há espaço para uma antropologia que se funde numa visão global do ho- mem? (FURTADO, 1964)

Questões centrais de uma antropologia filosófica. Furtado recu- pera, em seguida, Fourier, comparando-o a Hegel e apontando as influências que teve sobre Marx por ter percebido “com agudeza que os conflitos da vida social não são outra coisa senão manifesta- ções das potencialidades humanas.” (FURTADO, 1964) Não vamos voltar a isso aqui, mas é importante registrar outras questões que propõe Furtado a partir dessa leitura, questões que o afligem tam- bém no momento em que reivindica a necessidade de uma antro- pologia filosófica:

Como se relacionam as estruturas da sociedade e do ho- mem no processo de invenção da cultura e que papel cabe nesse processo ao impulso do homem para renovar suas aspirações e sua capacidade de criar meios de satisfazê-las?

Podem as estruturas sociais castrar esse impulso à auto- transformação e reduzir o homem a simples peça de um mecanismo cuja finalidade lhe escapa? (FURTADO, 1964, p. 309)

Marx é apresentado, pouco adiante, como aquele que faz “a sín- tese do pensamento social crítico da primeira metade do século XIX.”

Esse trabalho intelectual realizou-o Marx em permanen- te diálogo com a filosofia idealista alemã, particularmente com Hegel, que ele supunha haver superado. Mas o seu empenho em abandonar o enfoque idealista hegeliano não o impede de conservar a ideia de que a história é um proces- so pelo qual o homem avança para liberar-se. Ele se inclui, portanto, entre os pensadores que viram na rápida acumu- lação provocada pelo capitalismo industrial a via de acesso à liberação do homem. O futuro encerraria uma promessa de salvação. (FURTADO, 1964, p. X)

E segue referindo-se ao deslocamento de Marx “das armações conceituais caras aos filósofos idealistas para focalizar a realidade social”, lançando mão da “nova ciência econômica fundada por Ri- cardo.” Assim,

[...] demonstrava-se a mesma coisa que Hegel – o progres- so da razão na história – a partir da observação direta e sistemática da realidade social. A visão global do homem continuava impregnada de idealismo e os métodos utiliza- dos prenunciavam o reducionismo científico. (FURTADO, 1964)

Essa posição sobre a relação de Marx com Hegel será defendida nas páginas subsequentes, em que cita extensamente Marx e tam- bém o Anti-Dühring, de Engels. A antinomia que poderia existir entre a ideia do desenvolvimento não linear de uma história marca-

da por conflitos sociais crescentes com “[...] o postulado do avanço da razão teve solução no plano teórico graças ao apelo a uma antro- pologia filosófica cuja expressão mais acabada é Feuerbach” e que constituiria “a pedra de toque da teoria social” nos manuscritos de Marx de 1844.37 “Esse ponto de partida será abandonado em bene-

fício de uma visão estritamente sociológica do homem.” (FURTA- DO, 1964, p. 313-314) Furtado (1964, p. 313) vê nessa mudança, um empobrecimento:

Ao descobrir a profundidade das transformações provoca- das no tecido social pela generalização do trabalho assala- riado – a coisificação em mercadoria do trabalho humano – Marx inclinou-se a reduzir a realidade do humano a suas dimensões sociais. O homem outra coisa já não é senão um ‘ente social’ [...] Esse empobrecimento da ideia do homem conduzirá ao abandono do conceito de alienação, que pres- supõe a coexistência do social com o não social no indivíduo [...] pelo de ‘fetichismo’, que aparece em O Capital [...], [o que] reflete a prevalência definitiva do enfoque sociológico.

A solução de Marx, supondo o desenvolvimento das forças pro- dutivas como o motor da história, seria uma teoria do processo de acumulação que carregaria uma “visão ricardiana do processo so- cial”. Mas Marx superpôs a essa perspectiva uma teoria em que

[...] as ações conflitivas entre classes se desenvolveriam dentro de um conjunto de relações sociais estruturadas a que ele chamou de modo de produção. A capacidade dessa

37 “O homem somente atingirá sua plenitude como homem quando lograr liberar-se da natu- reza e das constrições sociais que decorrem diretamente de sua submissão à ordem natural. O motor desse processo de liberação é o desenvolvimento das forças produtivas, o qual encontra uma linha de menor resistência na divisão social do trabalho, que, por seu lado, en- gendra a alienação do indivíduo. tudo se passaria como se o homem devesse atravessar um vale de lágrimas em sua caminhada para o paraíso. a cooperação entre os homens forma-se, portanto, num quadro de constrições naturais, e a história é o fruto do esforço permanente dos homens para liberar-se dessas constrições.” (furtadO, 1997, t. 3b, p. 314)

estrutura para resistir às pressões geradas pelas referidas ações conflitivas seria limitada. Alcançado certo ponto de tensão, as energias desprendidas já não podiam ser adequa- damente canalizadas e da consequente ruptura do sistema de relações sociais emergia um novo modo de produção. (FURTADO, 1964, p. 315)

Na sequência, Furtado (1964, p. 315) atacará a convicção de Marx de que o capitalismo seria sucedido por um modo de produção so- cialista, a qual não se fundaria na teoria dos modos de produção, mas numa “doutrina ad hoc, que não era de natureza sociológica, segundo a qual cabia à classe operária um determinado papel his- tórico.” Não importa. Tampouco a discussão sobre o voluntarismo e a aceleração da história em Babeuf e Lênin. Retenho apenas, das últimas citações, a valorização da teoria dos modos de produção que, em Marx, está no texto sobre as formações pré-capitalistas que citarei novamente adiante, pois é ele que faz o entroncamento com a antropologia e a teoria do excedente. É bem nessa linha que vai a antropologia marxista e também Furtado, como se verá. O mais importante neste ponto é reafirmar a crítica ao reducionismo socio- lógico de Marx em relação a Hegel. Furtado (1964, p. 320) volta ao tema algumas páginas adiante:

O pensamento de Marx, ao servir de ponte entre o volunta- rismo revolucionário e a visão da história como avanço da razão, contribuiu para desviar a atenção do conteúdo des- sa ordem futura da gênese de novos valores. O futuro que nasceria da revolução seria inevitavelmente melhor que o presente. Ora, a tradução da visão hegeliana da história em termos de teoria social significa deixar de lado os elemen- tos antropológicos nela implícitos, a redução do homem a seus condicionantes sociais. Conforme a interpretação que nos dá Hegel, em sua Estética, da Antígona de Sófocles, o homem é e será um animal conflitivo, pois, sendo todo

processo de socialização necessariamente parcial, a ativida- de humana sempre está aberta à liberdade.

E segue:

Programar o homem como ser social não significa esgotar o projeto humano. Os conflitos, que surgem no indivíduo, podem ter projeções sociais, o que faz do homem um ser potencialmente em revolta. É essa dimensão antropológica do pensamento hegeliano que se perde de vista à medida que a ideia de ruptura se circunscreve à esfera das relações de produção: a emergência de um modo de produção fun- dado na socialização dos meios de produção implicaria re- construir todo o tecido social. A visão do homem que estava implícita na teoria da ruptura de Platão era certamente mais rica: para tornar-se efetiva, a ruptura devia destruir pelo me- nos duas matrizes da vida social: o sistema de propriedade e o sistema familial. Marx subestima a significação deste último. (FURTADO, 1964, p. 320-1)

E logo adiante:

Marx foi categórico: ‘uma formação social não desaparece jamais antes de que se desenvolvam todas as forças produ- tivas que nela podem ser contidas’. Mas se Lênin deu ao marxismo o caráter dogmático que o fez tão eficaz como instrumento de mobilização social foi porque simplificou a teoria da transição dos modos de produção, extremando o reducionismo sociológico. (FURTADO, 1964, p. 321)

Frente à insistência de Furtado sobre a antropologia, a antropolo- gia filosófica e tudo o que vem sendo discutido neste capítulo, soam inconvincentes certas referências de Mallorquin (2005, p. 191), como esta, sobre Dialética do desenvolvimento: “o livro já demonstra o que será a parte mais vital do seu estruturalismo: uma concepção decidi- damente sociológica e histórica das sociedades.”, Seria muito mais

adequado dizer que o aspecto mais vital do seu estruturalismo é uma concepção decididamente antropológica e histórica da cultura.38

Não pretendo, com isto, abrir polêmica, nem muito menos en- trar em temas específicos de sociologia da cultura e antropologia, muito menos de antropologia filosófica. Ademais, já foi apontada a influência reconhecida de Mannheim sobre Furtado (1966) e tem toda razão Mallorquin (2005, p. 212) ao enfatizar a sua visão neokan- tiana, como, por exemplo, quando, analisando Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, afirma: “a busca da autodetermina- ção impõe que se recupere a noção (neokantiana) dos critérios va- lorativos implícitos em cada comunidade, base para impulsionar qualquer tipo de meta ou planificação econômica.” O autor voltará ainda ao tema, na leitura de Desenvolvimento econômico: um mito, e chega a afirmar, ao referir-se a Dependência e criatividade, (FUR- TADO, 1974, 1978) que, “além da vertente weberiana” da explica- ção do capitalismo “pela difusão da racionalidade instrumental”, “vemos também que a interpretação de Furtado supõe uma espécie de antropologia filosófica.” (MALLORQUIN, 2005, p. 212)

Ora, em que pese a questão estar posta, particularmente no livro de 1964, sobre o pano de fundo de um debate sobre as relações entre Hegel e Marx (e o marxismo), a definição dessa “espécie de antropologia filosófica” por Furtado é feita, como vimos, por refe- rência direta a Kant, o precursor da disciplina, desenvolvida poste- riormente, a partir dos anos 1920, por autores como Scheller, Ples- sner ou Gehllen. (RABUSKE, 1999) Gábor Gángó (2009, p. 16, 14) analisa A antropologia pragmática (1798), de Kant, fruto do “único

38 não resisto a voltar à observação que fiz em artigo que compõe Bolaño (2013) a respeito do reconhecimento de furtado (1980), na Pequena introdução ao desenvolvimento, do célebre livro de fernando Henrique cardoso e enzo faletto (2004) como a obra básica na elabora- ção da teoria da dependência “de um ângulo sociológico”, não sem reivindicar (com toda justeza) a paternidade do conceito, ainda que de forma extremamente sutil e elegante, ao citar a sua tPde. eu relaciono esse reconhecimento com as qualidades intrínsecas do texto de cardoso e faletto (2004) como recorte particular (sociológico) no interior daquela ciência social global a que furtado se dedicava, o que ficará explícito no livro de 1977 que analisarei em seguida.

curso de Kant cujo texto foi publicado por ele mesmo – sob o título de Antropologia em sentido pragmático, no ano acadêmico de 1795/96”, onde desenvolve as fundamentais ideias de formação e de ação. “O que está no centro da Antropologia é a disposição natu- ral do homem. É o homem que vive no mundo da cultura quem se torna objeto do conhecimento.”39

A questão é complexa e não cabe tratá-la aqui.40 Mas há um as-

pecto que interessa deixar registrado, ligado ao fato de que a cultura é definida, “antes de tudo”, na Antropologia, como uma cultura bur- guesa do tempo livre:

Nas Lições sobre a enciclopédia filosófica [...], por certo, Kant sublinhava que ‘não tudo o que entretém [...] tem um valor, senão aquilo que contém os verdadeiros fins. Mas lá men- cionava unicamente exemplos daquilo que entretém de uma maneira fútil. Na Antropologia, pelo contrário, avança na di- reção da explicação do papel do entretenimento em relação

39 em 1794, segundo o autor, Kant fala em três “modos” de definir o homem: (a) por referência à “‘animalidade do homem enquanto ser vivo”; (b) a “sua humanidade enquanto ser vivo e, ao mesmo tempo, racional”; (c) “sua personalidade enquanto ser racional e, ao mesmo tempo,

responsável”. “Quatro anos mais tarde, a Antropologia se decidiu [...] pela segunda definição

– que em si possui duas partes – para submetê-la a um exame exaustivo”, uma fisiológica, do homem como ser vivo, e outra pragmática, do homem como ser racional. É nesse terreno intermediário entre natureza e razão que se define, portanto, a antropologia. “Poder-se-ia dizer que a antropologia descreve um estágio intermédio do caminho que conduz à cultura.” (GÁnGÓ, 2009, p. 15)

40 embora Kant estivesse em diálogo com as correntes antropológicas contemporâneas, fazen- do muitas referências, nos seus textos mais iniciais, “ao contexto polêmico da antropologia de Platner”, apresentando ainda “passagens estreitamente aparentadas com as perspectivas de Herder”, (GÁnGÓ, 2009, p. 17) na Antropologia ele “se distanciou em boa medida dos debates da sua época”, que pretendia “interpretar a formação como um processo de apro- ximação ao modelo ideal-transcendente do homem”, optando por destacar “os traços para- doxais da cultura que estão ancorados nas particularidades naturais do homem”. mas, além de fenômeno paradoxal, a cultura é também uma construção precária em que as paixões contrárias à razão se cristalizam. “essas paixões possuem também funções de conforma- ção da cultura e se referem à determinação especificamente humana do homem: enquanto contrário à razão, a paixão é uma disposição que pode ser característica unicamente de um ser racional.” (GÁnGÓ, 2009, p. 18) a partir daí poder-se-á discutir todos os temas centrais da filosofia de Kant, o que está obviamente fora dos limites deste trabalho, inclusive o da

comunicação, ou da comunicabilidade do saber, que também interessou a mannheim (apud

com os fins do homem. No melhor dos casos, o avanço da cultura prepara os homens para desfrutar das ciências e das artes e para que possam, pois, apropriar-se delas mais facil- mente. (GÁNGÓ, 2009, p. 18-19)

Daqui já poderíamos derivar para a análise (sociológica) dos bens culturais e, no limite, da economia da cultura, para a qual Furtado contribuiu, seja na qualidade de intelectual, seja de homem públi- co quando da sua passagem pelo Ministério da Cultura. Mas isso ficará para bem mais adiante.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 123-132)