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Influências: de Freyre a Herskovits

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 94-100)

Já tive a oportunidade de citar em outra ocasião (BOLAÑO, 2013), mas repito aqui o trecho das Aventuras de um economista brasileiro, em que Furtado (1997, t. 2a, p. 16) reconhece a influência que so- freu “da sociologia norte-americana, em particular da teoria antro- pológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez por intermédio do livro de Gilberto Freyre, Casa grande e senzala”, aos 17 anos de idade, esclarecendo, não obstante, que

[...] olhando retrospectivamente, vejo com clareza que o li- vro de Freyre pouco ou nada me influenciou no que respeita a sua mensagem substantiva, isto é, no que se refere à inter- pretação do processo histórico brasileiro. Sua importância esteve em que nos revelou todo um instrumental novo de trabalho.

Esse instrumental novo, a teoria antropológica da cultura, estava presente, portanto, no pensamento de Furtado desde as suas pri- meiras leituras, ainda na adolescência. Mais ainda, a sua ideia de Cultura antecede a Economia, como confessou a Cristovam Buarque

na entrevista de 1991, no seu apartamento de Paris, citada no primei- ro capítulo deste trabalho, em que deixa claro que a escolha da Eco- nomia como matéria privilegiada de estudo se deveu a seu caráter de ciência social aplicada, a mais adequada aos seus propósitos de atua- ção sobre a realidade de um Brasil marcado pelo atraso.

Em A fantasia organizada, Furtado (1997, v. 1, p. 190) lembra da viagem que fez aos Estados Unidos, como membro da CEPAL, per- correndo centros de pesquisa, com o objetivo de “tomar pé no que outros estavam fazendo em áreas conexas ou mesmo naquela em que estávamos garimpando.” Vejamos a sua conclusão geral:

Esses contatos rápidos em alguns centros universitários dei- xaram-me entrever a riqueza das pesquisas em curso em áre- as correlacionadas com a temática geral do desenvolvimento. Também nesse setor, a universidade norte-americana alcan- çara plena maturidade e, pela amplitude do horizonte que abarcava e escala de recursos que aplicava, era de prever uma avalanche de coisas novas para breve. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 197)

No entanto,

[...] no campo propriamente da economia, as coisas iam mais devagar. Os mo delos de crescimento ainda não ha- viam entrado na moda com suas sofisticadas variantes de função de produção. O pesado corpo da ciência econômica, concebido para funcionar em um universo onde a dimen- são tempo inexiste, oferecia grande resistência. (FURTA- DO, 1997, t. 1, p. 197)

E segue:

Mas a fortaleza estava sob assédio. Em torno dela pipocavam ideias novas vindas da história econômica, da demografia, da antropologia, da sociologia, da história da ciência e das técnicas. Em pouco tempo mais, cristalizaria o paradigma

do desenvolvimento, e um caudal de pesquisa que se esteri- lizava em áreas saturadas encontraria novo canal por onde desaguar. Ao ganhar nitidez esse paradigma, impor-se-ia a necessidade de romper fronteiras e buscar a interdisciplina- ridade, de afrouxar as camisas de força do funcionalismo, de recolocar o problema epistemológico da relação entre fins e meios nas ciências sociais. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 197)28

Entre todos os contatos que fez na ocasião, o que mais o entusias- mou foi precisamente o antropólogo Melville Herskovits, da North Western University, de Chicago, estudioso do processo de mudança cultural, interesse declarado de Furtado (1997, t. 1, p. 194): “posto que o subdesenvolvimento é uma manifestação cultural, era natural que antropólogos nos houvessem antecipado no terreno que agora explorávamos, não sendo pouco o que com eles tínhamos que apren- der.” Dito isto, o autor vai ao núcleo do pensamento cepalino:

No centro do pensamento de Prebisch estava a ideia de que o desenvolvimento da periferia tinha como motor a difusão do progresso técnico. Por trás dessa tese havia dois proble- mas a elucidar: o da emergência de um foco de criativida- de tecnológica em determinada cultura, e o da natureza do processo de difusão dos valores. As ideias mais aceitas na

28 note-se que ele “estava convencido de que na cePal havíamos avançado em terra ignota e que ocupávamos posições de vanguarda.” apesar de reconhecer que em breve “seríamos envolvidos por forças avassaladoras, que soçobraríamos quando deflagrasse o potencial de pesquisa que se estava armando nos estados unidos”, não tinha dúvidas de que “havíamos ganhado um pequeno avanço e ninguém me convencia de que a deusa fortuna não estives- se de nosso lado.” (furtadO, 1997, t. 1, p. 197-198) em todo caso, não obstante o avanço dos estudos sobre desenvolvimento nos estados unidos, na década de 1960, o autor teve a oportunidade de observar in loco, depois de 1964, que “ninguém se atreveria a afastar-se do paradigma dominante, temendo uma inevitável desqualificação acadêmica. até então não me apercebera do verdadeiro terrorismo que exerce na economia a escola de pensamento dominante. trabalhar fora do paradigma do equilíbrio geral era auto-desqualificar-se. aque- les que tentavam recuperar o conceito clássico de excedente deviam aceitar a etiqueta de marxista, com as implicações que isso trazia, porquanto o marxismo não era tido como uma forma de conhecimento científico. O dogma implícito era que a ciência não é normativa, portanto prescinde de juízos de valor. esse positivismo impregnava o estudo e o ensino da

época eram as de Schumpeter sobre o papel do empresário inovador, fulcro da criatividade tecnológica e motor de todo processo de rápida transformação que caracteriza o mundo contemporâneo. Mas pouco se havia pensado sobre a lógica da difusão. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 194)

Ora, o subdesenvolvimento não é outra coisa, para Furtado, se- não o resultado da propagação da civilização industrial. É nesse sentido que ele avalia a contribuição de Herskovits:

A exemplo de outros antropólogos de sua geração, ele se inclinava a sobrepor uma ‘lógica da cultura’ à história, o que o levava a ver na inovação (e na descoberta) mais uma res- posta do que uma mutação. Estava longe de deslizar para o determinismo cultural, mas dava ênfase à preexistência de uma ‘base cultural’, sem o que a inovação não seria absor- vida e tampouco a mudança cultural se apresentaria orde- nada. Do mesmo ponto de vista, assegurava que a difusão também seguia uma linha de menor resistência, de alinha- mento com respeito à orientação preexistente. No caso de uma sociedade de classes, com cortes culturais nítidos, o processo de difusão interna de valores dar-se-ia nas mes- mas linhas. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 194-5)

É interessante ainda a referência à ideia, que Herskovits herda de Ralph Linton, de que “as culturas têm uma área de preocupa- ção dominante, de máxima percepção, cujo estudo é essencial para a compreensão da sua dinâmica.” (FURTADO, 1997, t. 1, p. 195) A religião seria a área focal dos povos da África Ocidental. No seu diálogo com Herskovits, Furtado (1997, t. 1, p. 195) aponta que a forte religiosidade da população negra brasileira se explicava pela dureza da luta pela sobrevivência “numa sociedade que os reprimia e mutilava. Ele redarguiu que, embora isso fosse verdade, não foi por acaso que a criatividade dos negros brasileiros se refugiara na esfera religiosa.” Furtado (1997, v. 1, p. 195) tira daí duas conclusões:

Esse diálogo com o professor Herskovits fez-me pensar que a criatividade religiosa das populações brasileiras de origem africana, estimulada em luta secular pela sobrevi- vência, constitui elemento fundamental na formação da nossa cultura. Por outro lado, a corrente dominante da cul- tura brasileira teve sua área focal crescentemente desloca- da para a inovação tecnológica, principalmente através de empréstimos de outras culturas. Essa dicotomia de orienta- ção na área de percepção mais aguda da cultura não podia ser ignorada. Para pensar o Brasil era necessário começar pela antropologia.

Bem mais adiante, no mesmo livro, referindo-se ao seu ensaio Interpretação histórico-analítica do desenvolvimento econômico, con- densado de conferências proferidas em 1953, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), aponta que o seu interesse então era “encontrar fórmulas metodológicas que permitissem conjugar os recursos da história e da análise”, seguindo, sem ainda haver toma- do conhecimento dela, uma tendência próxima da Escola dos Anais, de busca do “entrosamento da história com as ciências so- ciais, partindo destas últimas, enquanto os membros dessa escola partiam da primeira.” (FURTADO, 1997, t. 1, p. 284) O ponto de partida do referido ensaio – que compõe o vasto material que aca- bará formando Desenvolvimento e subdesenvolvimento e a TPDE – era a afirmação, incluída no célebre artigo de comentário a Nurkse, de que “a apreensão do fenômeno do desenvolvimento exigia um en- foque mais amplo do que nos permitia a análise econômica, pois estávamos lidando com um amplo processo de mudança cultural, ‘força criadora das civilizações’.” (FURTADO, 1997, t. 1, p. 285) E segue:

E avançava a ideia de que, se há mudança, é porque existe a possibilidade de escolha, o que pressupõe uma margem na disponibilidade de recursos, um excedente com respeito ao estritamente necessário à sobrevivência da coletividade.

O ponto de partida teria de ser, por conseguinte, uma teoria do excedente social. Paul Baran pouco tempo depois che- garia a uma conclusão similar partindo de outro enfoque metodológico. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 285)

E explica:

A ideia de excedente social esteve na base do pensamento dos economistas clássicos, inclusive Marx, mas desapare- ceu a partir da introdução do conceito de equilíbrio geral. Na tradição clássica, o conceito de excedente é utilizado na teoria da distribuição, particularmente para explicar a renda da terra. Meu enfoque era muito mais amplo, pois preten- dia utilizar o mesmo conceito para explicar o processo de mudança social. Se os prisioneiros de guerra fossem comi- dos, haveria aumento do consumo, mas não formação de excedente; transformados em escravos, seu trabalho gera- ria um excedente, abrindo a possibilidade de acumulação e, portanto, de mudança. (FURTADO, 1997, t. 1, p. 285)

É a constatação de que “somente certas formas de dominação social canalizam o excedente para a acumulação” que leva o autor a interessar-se pela relação entre organização social e formação do excedente. Também “a busca da diversificação do consumo, esti- mulada pelo contato de culturas, desempenha papel importante no processo de mudança.” Enfim, as diversas formas de apropriação e uso do excedente expressam “a variedade de caminhos que trilha o homem no seu esforço de criatividade” e explicam “as distintas cur- vas descritas pelas civilizações.” (FURTADO, 1997, t. 1, p. 286)29 29 assim, por exemplo, “a mudança de uma corrente de comércio pode secar a fonte de um

excedente e modificar a curva de uma civilização, mas não existe progresso nem declínio necessariamente. O feudalismo, geralmente apresentado como organização social mais avançada do que a escravidão, também pode ser visto como ‘uma forma regressiva’ tendo surgido na área do império romano do Ocidente quando se desorganizaram os meios de transporte, atrofiou-se o comércio e se reduziu consideravelmente o consumo urbano. seria específico da economia feudal o fechamento que lhe foi imposto, impossibilitando-o de utilizar plenamente sua capacidade produtiva.” (furtadO, 1997, t. 1, p. 286)

Poderíamos aqui voltar ao conceito de poder econômico, explici- tado no capítulo primeiro, na medida em que, “destarte, era impor- tante conhecer a origem e a dimensão do excedente social, e tam- bém o comportamento dos grupos sociais que dele se apropriam.” Para nossos interesses, neste ponto, é mais importante verificar que, no momento da gênese do método histórico-estrutural, o seu formulador estava empenhado justamente em defender uma visão interdisciplinar do problema do desenvolvimento, com ênfase na necessidade de incorporação de um paradigma antropológico de inovação e de difusão cultural, para o que lança mão do velho con- ceito de excedente, numa perspectiva mais ampla.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 94-100)