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O modelo de base de Furtado para o desenvolvimento

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 60-68)

Comecemos por uma definição de desenvolvimento que se pode ler no capítulo 7 da referida obra:

O conceito de desenvolvimento pode ser [...] utilizado com referência a qualquer conjunto econômico no qual a com- posição da procura traduz preferências individuais e coleti- vas baseadas em um sistema de valores. [...] Ele se refere ao crescimento de um conjunto de estrutura complexa. Essa complexidade estrutural não é uma questão de nível tec- nológico. Na verdade, ela traduz a diversidade das formas sociais e econômicas engendradas pela divisão do trabalho social. [...] Esta [estrutura] sofre a ação permanente de uma multiplicidade de fatores sociais e institucionais que esca- pam à análise econômica corrente. (FURTADO, 1983, p. 78) Aí está o ponto de partida para a compreensão de como a cultura se encaixa no modelo de Furtado (1983, p. 79-80), o qual é expres- so, pouco mais adiante, nos seguintes termos:

[...] o desenvolvimento tem lugar mediante aumento da pro- dutividade ao nível do conjunto do complexo econômico. [...] O aumento da produtividade física com respeito ao conjunto da força de trabalho de um sistema econômico somente é possível mediante a introdução de formas mais eficazes de utilização dos recursos, as quais implicam seja acumulação de capital, seja inovações tecnológicas, ou mais corrente- mente a ação conjugada desses dois fatores. Por outro lado, a realocação de recursos que acompanha o aumento do flu- xo de renda é condicionada pela composição da procura, que é expressão do sistema de valores da comunidade. Des- ta forma, o desenvolvimento é ao mesmo tempo um proble- ma de acumulação e progresso técnico, e um problema de expressão de valores de uma comunidade.

Não obstante a importância que dá, como vimos, à acumulação de capital na construção da teoria do desenvolvimento, faz questão de esclarecer que “seria um equívoco pretender explicar o desen- volvimento pela acumulação como se esta última fosse um fim em si mesma”, sendo antes “uma resposta à ação de forças que coman- dam o sistema econômico em função dos objetivos da vida social”. (FURTADO, 1983, p. 102) Forças essas que

[...] variam de uma sociedade a outra e são determinadas pelo nível de vida já alcançado pela coletividade, pelo regi- me político, pelo sistema de valores prevalecente, pelas res- ponsabilidades internacionais que se atribui à coletividade ou seus dirigentes, por formas de dominação externa etc. (FURTADO, 1983)

Na trilha da crítica ao “modelo” de Marx, a que me referi acima, acrescenta à dupla determinação (acumulação, progresso técnico) da produtividade e do aumento do fluxo de renda que o acompanha uma terceira, que condiciona a distribuição: o sistema de valores da comunidade, que se expressa na composição da demanda. Em se- guida, para explicar as modificações estruturais inerentes ao pro- cesso de desenvolvimento, supõe que:

[...] em função dos recursos disponíveis e de um horizon- te de possibilidades tecnológicas, a coletividade, por inter- médio de certos agentes econômicos, elabora seu plano de produção, o qual deve ser compatível com o projeto de vida concebido pelos membros dessa coletividade no quadro da distribuição de renda e de outros parâmetros institucionais. (FURTADO, 1983, p. 80)

Os dados do problema incluem, assim, um conceito de cultura em que a questão da hegemonia está claramente (embora não ex- plicitamente) posta, de modo que as modificações estruturais na demanda global decorrentes de um aumento da produtividade pri-

vilegiarão certos setores, enquanto “outros verão sua procura per- manecer estacionária ou mesmo declinar”. Mais adiante, a questão é posta em termos mais claros, quando afirma que o objeto de estu- do do desenvolvimento é a “elevação do nível material de vida na forma como determinada sociedade o define partindo de uma esca- la de valores que reflete o equilíbrio de forças que prevalece nessa sociedade.” (FURTADO, 1983, p. 82) E segue:

Pretender identificar no desenvolvimento uma realidade em si mesma, de validade universal, tem o mesmo funda- mento que atribuir a uma determinada escala de valores a mesma significação para todas as sociedades. Com efeito: é na medida em que a quase totalidade das sociedades con- temporâneas atribuem uma alta prioridade à disponibilida- de de certa constelação de bens materiais, cujo acesso se confunde com a forma ‘moderna’ de vida, que o desenvol- vimento econômico constitui hoje problema universal. En- tretanto, como não é possível encontrar uma base que nos permita comparar dois conjuntos de bens materiais sem introduzir elementos subjetivos específicos de uma cultura, o desenvolvimento como aspiração universal somente pode ser definido de forma vaga. (FURTADO, 1983, p. 82)

É esta complexidade estrutural que se evidencia ao considerar- mos aquele elemento de ordem valorativa relacionado à estrutura distributiva, envolvendo relações de poder, que diferencia o concei- to de desenvolvimento daquele de crescimento, para Furtado (1983, p. 78). Melhor: “o conceito de desenvolvimento compreende a idéia de crescimento, superando-a”, pois “se refere ao crescimento de um conjunto de estrutura complexa”,18o que torna o conceito de

renda ambíguo, mas não constitui obstáculo

18 nos termos de Perroux, citado por furtado (1983, p. 78), desenvolvimento é «la combinaison

des changements mentaux et sociaux d’une population qui la rendent apte à faire croître, cumu- lativement et durablement, son produit réel global».

[...] ao estudo do desenvolvimento no quadro de uma deter- minada coletividade, com respeito à qual se conhecem os elementos que condicionam a organização da produção e a distribuição da renda. A estrutura do sistema econômico se funda nesses elementos institucionais, na base de recursos naturais, em dados técnicos e em certos padrões de com- portamento que se definem em cada sociedade. É graças à relativa estabilidade desses elementos institucionais, físicos e psicológicos que as variáveis econômicas [...] apresentam uniformidades que podem ser objeto de análise. (FURTA- DO, 1983, p. 82)

Na exposição do “esquema macroeconômico do desenvolvimen- to” (capítulo 9), Furtado (1983, p. 98) coloca a questão assim:

A análise keynesiana pôs em evidência o fato de que as mo- tivações dos agentes responsáveis pela poupança são distin- tas das dos agentes que promovem as inversões. Contudo, em um e outro caso, as decisões são tomadas num quadro estrutural cuja estabilidade é imprescindível para estabele- cer a função consumo. Na análise do desenvolvimento, mais que diferenças entre motivações psicológicas dos agentes, adquire relevância o poder que podem exercer certos agen- tes para alterar o comportamento dos outros. São as modifi- cações dos parâmetros estruturais, ou seja, o deslocamento de certos agentes da curva que estabelece os padrões do seu comportamento previsível, o que mais interessa ao analista do desenvolvimento.

Os fatores que podem promover uma mudança estrutural são: (a) progresso técnico; (b) incorporação de novos recursos naturais; (c) realocação de recursos graças à integração num mercado mais amplo; (d) intensificação na capitalização. Este último fator

[...] traduz diretamente uma modificação estrutural [aumen- to da taxa de investimento I/Y] que pressupõe modificação

na função consumo, ou seja, um deslocamento para a direi- ta da curva que estabelece a relação funcional entre os níveis de consumo e os da renda global. (FURTADO, 1983, p. 99)

enquanto os demais impactam a relação Y/K, “de ínfima signifi- cação para o conjunto da economia”, se as demais condições estru- turais não se alterarem. Entretanto,

[...] os agentes que estão em posição estratégica podem apro- priar-se, por tempo mais ou menos prolongado, dos benefí- cios de uma elevação da produtividade, ou melhor, podem modificar certos parâmetros estruturais e interferir no com- portamento de outros agentes. É o que ocorre quando a in- dústria que se beneficia de aumentos de produtividade, gra- ças ao acesso a uma tecnologia de vanguarda, mantém os preços relativos sem alteração, conserva as taxas de salários e transforma em maiores lucros a redução dos custos de produção, ou seja, se beneficia de uma quase-renda. A pe- quena modificação de Y/K irá transformar-se em alteração relativamente maior de I/Y. Ocorre, assim, uma distribuição dinâmica da renda em benefício de certos grupos. (FURTA- DO, 1983, p. 99)

Esses grupos com capacidade de alterar parâmetros e com isso influenciar o comportamento de outros em benefício próprio de- têm poder econômico, na definição de Furtado. Na medida em que esses agentes com poder econômico logram apropriar-se dos frutos de um aumento de produtividade, outros agentes exigirão, num segundo momento, a transferência desses benefícios para o con- junto da coletividade. Nesse sentido, o autor critica a noção de “equilíbrio dinâmico”, expressão que ocultaria “o que é mais signi- ficativo para a compreensão do processo de desenvolvimento, ou seja, o fenômeno da difusão do poder econômico e da forma como as estruturas se modificam pela ação dos agentes que exercem esse poder.” (FURTADO, 1983)

Nas economias de livre empresa, segundo o autor,

[...] os períodos de concentração de renda e elevação da taxa de inversão tendem a ser sucedidos por outros de mais in- tensa difusão dos frutos do desenvolvimento, a fim de que se mantenham as oportunidades de inversão. Da interde- pendência entre a tendência à concentração da renda, criada pelos agentes que exercem poder econômico e tomam de- cisões estratégicas, e a necessidade de manter os mercados em expansão, resulta um teto à proporção do produto que a economia tende a inverter espontaneamente. (FURTADO, 1983, p. 101)

Nessa linha de raciocínio, a dinâmica será dada, em última instân- cia, pela luta de classes. Segundo Furtado, numa economia capitalis- ta, destaca-se entre os fatores que condicionam o processo econômi- co a defesa (preservação ou melhora), pelos agentes econômicos, da sua participação na renda nacional. Os assalariados lutarão na defesa do nível absoluto e relativo da taxa de salários, enquanto os capitalis- tas procurarão maximizar a taxa de remuneração do capital.19

No concernente à acumulação, Furtado (1983, p. 102) admite que “a produtividade do fator trabalho, no plano macroeconômico, de- corre do aumento da dotação de capital por pessoa ativa, e que este último aumento incorpora sempre melhoras tecnológicas”, seja pela introdução de novas invenções, seja pela difusão de inovações já em uso.20

19 O que não se limita à maximização do lucro, mas envolve também “a preocupação do ca- pitalista em evitar que seu coeficiente de liquidez se coloque acima de certo nível crítico. O primeiro objetivo é aplicar os capitais de forma remuneradora e o segundo é evitar o de- clínio da taxa de remuneração.” (furtadO, 1983, p. 103)

20 a incorporação de técnicas superiores decorre: (a) da inversão líquida e a decorrente expan- são do estoque de capital; (b) da reposição do estoque de capital já existente; (c) da simples expansão do sistema, que dá acesso a economias de escala e engendra economias externas; (d) da incorporação de recursos naturais superiores; (e) das vantagens comparativas decor- rentes da ampliação dos mercados externos; (f) do aperfeiçoamento do fator humano decor- rente da elevação do nível de vida. nestes três últimos casos, eles podem ser “assimilados

O processo de formação de capital, isto é, o aumento da do- tação média de capital por pessoa ativa, apresenta-se sem- pre em duas dimensões. A primeira é a acumulação strictu sensu, e a segunda traduz o fator que permite que essa acu- mulação se realize sem declínio da produtividade do capital.

O autor reduz o segundo fator, para simplificação do modelo, a duas formas básicas: “a que está ligada à invenção, isto é, ao deslo- camento do horizonte de possibilidades técnicas, e a que traduz uma mais ampla utilização de possibilidades técnicas já conheci- das.” (FURTADO, 1983)21

Assim, o modelo de Furtado (1983, p. 103) envolve a interação no tempo de dois momentos do processo acumulativo (acumulação -incorporação de invenções e acumulação-difusão de inovações), do lado da oferta, pautados por uma análise da demanda efetiva que considera uma diferença não meramente quantitativa, entre con- sumo assalariado e consumo capitalista, correspondendo a “unida- de de gasto”, neste último, a “um grau de acumulação e a um nível tecnológico superiores.” Supondo dois tipos de consumidores, um que deriva sua renda da propriedade ou do controle da economia (A) e outro cuja renda advém exclusivamente de salário, o autor descreve uma dinâmica em que, num primeiro momento, o au- mento da taxa média de salário desloca o padrão de consumo de B em direção a A (o que não significa necessariamente que a dis- tância se reduza, visto que o padrão de A também pode estar mu- dando), de modo que se “abre o canal da acumulação mediante a simples utilização das técnicas que são amplamente conhecidas”, configurando um desenvolvimento apoiado na acumulação-difu- são de inovações.

a vias de acesso a níveis superiores de tecnologia, porquanto permitem que se intensifique a acumulação sem que decline a produtividade do capital.” (furtadO, 1983, p. 102) 21 além dessas duas formas, o autor se refere à incorporação de melhores recursos naturais,

à integração a um mercado internacional maior e à modificação no perfil da procura interna de bens de consumo.

Esse tipo de desenvolvimento engendra uma procura relati- vamente intensa de mão-de-obra, o que significa que a taxa de salário tenderá a crescer mais que a produtividade, fazen- do com que B se aproxime ainda mais de A. A modificação conseqüente no perfil da procura global de bens de consumo reforça a tendência dos empresários no sentido de preferir a acumulação baseada na difusão das técnicas conhecidas. Se outros fatores não operassem em sentido contrário, tal tendência levaria a uma modificação na distribuição da ren- da, elevando-se a taxa de salário acima da produtividade do trabalho absorvido nos investimentos, o que paralisaria a formação de capital. (FURTADO, 1983, p. 103)

Mas, a partir de um nível crítico, os empresários tratarão de in- troduzir novas técnicas poupadoras de mão de obra, com o objetivo de defender a sua taxa de remuneração, abrindo um novo canal de desenvolvimento, desta vez baseado na acumulação-incorporação de invenções, o que “coloca a classe empresário-capitalista em posi- ção privilegiada para reter os frutos do incremento de produtivida- de e, desta forma, aumentar sua participação na renda.” (FURTA- DO, 1983 p. 104) Nessas condições, os padrões de consumo de B voltam a afastar-se dos de A, ao mesmo tempo em que se ampliam a dotação de capital por pessoa ativa, o horizonte de possibilidades técnicas e a diversificação dos padrões de consumo superiores.

Contudo, se se intensifica o processo nessa direção, a maior concentração da renda tenderá a se traduzir em aumento re- lativo da massa de recursos a inverter. Para evitar que se ele- ve o coeficiente de liquidez e que a taxa de remuneração do capital desça abaixo de certos níveis, os empresários terão que voltar-se para os canais da difusão do progresso técnico, o que reduz a dotação marginal do capital por pessoa ativa, intensifica relativamente a procura de mão-de-obra e reativa o primeiro processo referido. (FURTADO, 1983, p. 104)

Nessas condições, as pressões dos trabalhadores por aumentos salariais na fase de expansão são em si mesmas benéficas ao siste- ma, pois, ao modificar a composição da demanda, fazem com que a acumulação se realize de acordo com o horizonte de possibilida- des já conhecidas. Como o processo de distribuição de renda é au- tointensificado, a consequente elevação da taxa de salário acima da produtividade do trabalho induzirá a introdução de invenções pou- padoras de mão de obra, e assim por diante. Trata-se, portanto, de uma dinâmica em que essas duas forças sociais (empresários capi- talistas e trabalhadores assalariados), com capacidade efetiva de exercer “poder econômico”, “se estimulam e limitam mutuamente” de acordo com “limites estabelecidos pelo próprio sistema”, (FUR- TADO, 1983, p. 105)22 determinando uma evolução alternada do

desenvolvimento, com momentos, opostos e complementares, de concentração e de distribuição da renda em favor dos assalariados.23

Assim, concorrência e luta de classes se articulam na determina- ção da dinâmica do desenvolvimento, pautada esta pela inovação e amplamente dependente de fatores de ordem cultural.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 60-68)