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Subdesenvolvimento e dependência: as conexões fundamentais

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 177-186)

Este é o título do segundo ensaio do livro ora em exame, uma pre- ciosa síntese que referenda, mais uma vez, a interpretação das ideias do autor sobre dependência cultural que apresentei em um dos textos incluídos em Bolaño (2013), e que retomei aqui, no capí- tulo segundo, referindo-me a certos trechos da obra autobiográfica. O ponto de partida é a reafirmação da definição do subdesenvolvi- mento como consequência da expansão da Revolução Industrial, definida como “aceleração do processo de acumulação de capital e o aumento na produtividade do trabalho ocorridos entre os anos 70 do século XVIII e os anos 70 do século XIX.” (FURTADO, 1977, p. 77) A implantação da divisão internacional do trabalho definida no contexto da hegemonia do capitalismo industrial inglês, ao fa- zer valer, no início, a lei das vantagens comparativas, habilitou as elites locais dos países da periferia a “seguir de perto os padrões de consumo do centro, a ponto de perderem contacto com as fontes

culturais dos respectivos países.” (FURTADO, 1977 p. 80) Mas é claro que se a referida lei “proporcionava uma justificação sólida da especialização internacional”, ela

[...] deixava na sombra tanto a extrema disparidade na difu- são do progresso nas técnicas de produção como o fato de que o novo excedente criado na periferia não se conectava com o processo de formação de capital. Esse excedente era principalmente destinado a financiar a difusão, na periferia, dos novos padrões de consumo que estavam surgindo no centro do sistema econômico mundial em formação. (FUR- TADO, 1977, p. 79)

Consequência:

A existência de uma classe dirigente com padrões de consu- mo similares aos dos países onde o nível de acumulação de capital era muito mais alto, e impregnada de uma cultura cujo elemento motor é o progresso técnico, transformou-se, assim, em fator básico na evolução dos países periféricos. (FURTADO, 1977, p. 80)

Nessas condições, “não tem fundamento antepor a análise ao nível da produção, deixando em segundo plano os problemas da circulação, conforme persistente tradição do pensamento marxis- ta”, sendo

[...] indispensável focalizar simultaneamente o processo de produção (realocação de recursos dando origem a um exce- dente adicional e forma de apropriação desse excedente) e o processo de circulação (utilização do excedente ligada à adoção de novos padrões de consumo copiados de países em que o nível de acumulação é muito mais alto), os quais, conjuntamente, engendram a dependência cultural que está na base do processo de reprodução das estruturas so- ciais correspondentes. (FURTADO, 1977, p. 80)

Ainda que a matriz institucional que determina as relações de produção internas seja a chave para compreender como se dá a apropriação do excedente, a forma de utilização deste, que “condi- ciona a reprodução da formação social, reflete em grande medida o processo de dominação cultural que se manifesta ao nível das rela- ções externas de circulação.” O conceito de modernização é então definido justamente como “esse processo de adoção de padrões de consumo sofisticados (privados e públicos) sem o correspondente processo de acumulação de capital e progresso nos métodos produ- tivos”, (FURTADO, 1977, p. 81) o que inclui, enfatiza, formas de consumo civil, mas também militar. E agrega:

[...] quanto mais amplo o campo do processo de moderni- zação [...], mais intensa tende a ser a pressão no sentido de ampliar o excedente [...] mediante expansão das exporta- ções, ou por meio de aumento da ‘taxa de exploração’, vale dizer, da proporção do excedente no produto líquido. (FUR- TADO, 1977, p. 81)

Só mais adiante, “em fase mais avançada quando os respectivos países embarcam no processo de industrialização”, esse processo anterior de modernização mostrará toda a sua influência, pois a substituição de importações implica que “a tecnologia incorporada aos equipamentos importados não se relaciona com o nível de acu- mulação de capital alcançado pelo país e sim o perfil da demanda (o grau de diversificação do consumo) do setor modernizado da so- ciedade.” (FURTADO, 1977, p. 82)65 Assim, a dependência cultural

implica, num momento subsequente, dependência tecnológica, que se materializa na matriz industrial nacional e impacta profun- damente todo o campo econômico, condicionando a luta de classes:

65 as primeiras indústrias instaladas antes disso “concorrem com a produção artesanal e se destina[vam] a produzir bens simples destinados à massa da população”, (furtadO, 1974, p. 81) sem vínculos entre elas, não chegando a constituir, por isso, o núcleo de um sistema industrial.

[...] ao impor a adoção de métodos produtivos com alta den- sidade de capital, a referida orientação cria as condições para que os salários reais se mantenham próximos ao nível de subsistência, ou seja, para que a taxa de exploração aumente a produtividade do trabalho. (FURTADO, 1977, p. 82)

Assim:

O comportamento dos grupos que se apropriam do exce- dente, condicionado que é pela situação de dependência cultural em que se encontram, tende a agravar as desigual- dades sociais, em função do avanço na acumulação. Assim, a reprodução das formas sociais, que identificamos com o subdesenvolvimento, está ligada a formas de comporta- mento condicionadas pela dependência. (FURTADO, 1977, p. 82)

É do desejo das elites nacionais de reproduzir os padrões de con- sumo do centro, responsável pela rápida diversificação do consu- mo, que decorre a orientação da tecnologia, determinando, “mais do que a existência de uma oferta elástica de mão de obra [...], o di- ferencial entre o salário industrial e o salário no setor de subsistên- cia”, ponderado pelo grau de organização dos distintos setores da classe trabalhadora. Em outros termos, dado aquele nível de orga- nização, “a dimensão relativa do excedente apropriado pelos gru- pos privilegiados reflete a pressão gerada pelo processo de moder- nização.” (FURTADO, 1977 p. 82-3)

Vale a pena retornar à questão, posta no capítulo primeiro, da semelhança entre Furtado e Marx no reconhecimento dos fatores extraeconômicos que determinam a economia capitalista na sua essência. Em A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina, falando sobre a segunda fase do desenvolvimen- to capitalista no centro (“durante a qual os problemas criados pelos ajustamentos superestruturais ganham considerável importância”;

FURTADO, 1973, p. 11), em que já não existe o excedente estrutural de mão de obra dos seus inícios, criando-se condições para a classe trabalhadora apropriar-se de uma parte dos ganhos de produtivida- de do sistema, Furtado (1973, p. 11-13) nota a existência de

[...] uma tendência persistente à melhoria das condições de luta da classe trabalhadora, abrindo-lhe acesso aos frutos do desenvolvimento, tanto pela elevação dos salários reais como pela redução do número de horas da jornada de trabalho.

Ora, são justamente esses, os dois fatores extraeconômicos que determinam a taxa de exploração e, portanto, de apropriação do ex- cedente pela classe capitalista, em Marx, como vimos então, os res- ponsáveis pela dinâmica do desenvolvimento nas economias cen- trais, em Furtado, relacionada com a interação entre inovação e difusão, como também vimos no capítulo primeiro. No caso do subdesenvolvimento, essa mesma dinâmica não funciona por cau- sa da dependência cultural. Dependência que pode existir mesmo na ausência de empresas transnacionais, pois “o que importa não é o controle do sistema de produção local por grupos estrangeiros e sim a utilização dada àquela parte do excedente que circula pelo comércio internacional.” Mesmo a propriedade pública das empre- sas não resolve necessariamente o problema “se o país em questão se mantém em posição de satélite cultural dos países cêntricos do sistema capitalista e se encontra numa fase de acumulação de capi- tal muito inferior à alcançada por estes últimos.” (FURTADO, 1974, p. 84)

A questão da autonomia cultural é, portanto, central, e Furtado a coloca em diálogo com Marx, num parágrafo esclarecedor. Pri- meiro, apresenta um desafio à imaginação, perfeitamente válido nos dias de hoje: “pode-se ir ainda mais longe e formular a hipó- tese de que um tipo semelhante de colonização cultural vem desem- penhando importante papel na transformação da natureza das

relações de classe nos países cêntricos.” (FURTADO, 1974, p. 84) E segue com Marx:

A ideia formulada por Marx, segundo a qual um processo crescentemente agudo de luta de classes, no quadro da eco- nomia capitalista, operaria como fator decisivo na criação de uma nova sociedade, essa ideia para ser válida requer, como condição sine qua non, que as classes pertinentes estejam em condições de gerar visões independentes do mundo. Em outras palavras: a existência de uma ideologia dominante (que, segundo Marx, seria a ideologia da classe dominante em ascensão) não deveria significar a perda total de auto- nomia cultural pelas outras classes, ou seja, a colonização ideológica destas. (FURTADO, 1974, p. 84-5)

Aí está condensada a problemática da hegemonia, da domina- ção ideológica, da resistência e todas as questões de fundo que di- videm vastas áreas dos campos da Comunicação, dos Estudos Cul- turais, da Economia Política da Comunicação etc. Fica clara, aliás, a distância de Furtado das perspectivas deterministas das teorias da Dependência Cultural, como tive a oportunidade de enfatizar em artigo incluído em Bolaño (2013). Aliás, fica claro, a meu ver, que não há crítica a Marx nesse trecho, mas um desafio aos mar- xistas para que não deixem de considerar a questão da hegemonia e da contra-hegemonia em termos de autonomia cultural de classe, da classe trabalhadora:

Marx, no seu 18 Brumário, quando atribui papel importante aos paysans parcellaires – nos quais se teria apoiado Luis Bo- naparte –, afirma claramente que eles não haviam tomado consciência de si mesmos como classe; contudo, constitu- íam uma classe, no sentido de que podiam servir de fator decisivo nas lutas pelo poder, porque ‘opunham seu gênero de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras clas- ses sociais’. Entre as condições objetivas para a existência de

uma classe, portanto, estaria a autonomia cultural. (FUR- TADO, 1974, p. 85)

Em seguida, um segundo desafio à nossa imaginação:

Ora, nos países capitalistas cêntricos, essa autonomia cultu- ral, no que se refere à classe trabalhadora, foi consideravel- mente erodida. O acesso da massa trabalhadora a formas de consumo antes privativas das classes que se apropriam do excedente criou para aquela um horizonte de expectativas que condicionaria o seu comportamento no sentido de ver, na confrontação de classes, mais do que um antagonismo irredutível, uma série de operações táticas em que os inte- resses comuns não devem ser perdidos de vista. (FURTA- DO, 1974, p. 85)

Este é precisamente o contexto de análise do surgimento e ex- pansão da Indústria Cultural (BOLAÑO, 2000) até hoje, elemento central, embora não, por certo, o único, na construção da hegemo- nia ao longo do século XX. Em sentido inverso, se as relações entre produção e consumo passam por complexas instâncias de inter- câmbio simbólico e controle social, a dinâmica capitalista se verá também influenciada pela estrutura dos seus meios de comunica- ção de massa, veiculadores da publicidade, da propaganda e viabili- zadores de complexas formas de interação social, como as dos atu- ais sistemas de redes digitais, entre eles a internet, que não podem deixar de ser considerados na definição das estruturas de poder nos dias de hoje. (BOLAÑO et al., 2011) Sobre a incorporação do pensa- mento de Furtado na análise desses fenômenos, ver Bolaño (2013). Em seguida, o autor se volta para o caso dos países periféricos, apontando que “o processo de colonização cultural radica original- mente na ação convergente das classes dirigentes locais [...] e dos grupos que, a partir do centro do sistema, controlam a economia internacional”, conexão que abre o caminho a “todas as formas de ‘intercâmbio desigual’ que historicamente caracterizam as relações

entre o centro e a periferia do sistema capitalista”, mas que não po- dem ser entendidas isoladamente. Os aspectos centrais da questão encontram-se na “forma como o excedente é utilizado na periferia sob o impacto da colonização cultural.” (FURTADO, 1974, p. 85)

A colonização cultural, por outro lado, pode ocorrer mesmo na- quelas áreas do globo, como a Austrália ou o Canadá, em que os salários puderam subir significativamente, atingindo níveis simila- res aos do centro. Nesse caso, a modernização levará à dependência – pela disparidade entre o nível de consumo e a “acumulação de capital no aparelho produtivo, porquanto a elevação de produtivida- de, que dá origem ao excedente, resulta da utilização extensiva de recursos naturais no quadro de vantagens comparativas internacio- nais” (FURTADO, 1974, p. 86) – sem subdesenvolvimento,66 o que

mostra que a dependência é fenômeno mais geral que este.67

Por outro lado, “a situação de dependência está sendo perma- nentemente reforçada, mediante a introdução de novos produtos” e “a industrialização, nas condições de dependência, de uma eco- nomia periférica requer intensa absorção de progresso técnico sob a forma de novos produtos e das técnicas requeridas para produzi -los.” (FURTADO, 1974, p. 88-89) Nessas condições,

66 algumas dessas economias puderam realizar processos precoces de industrialização, como o canadá. a argentina é um caso particular dentro dessa categoria, em que fatores his- tóricos atrasaram a industrialização, que acabou assumindo o modelo de substituição de importações (consequência da crise do setor exportador), comum a toda a américa latina. (furtadO, 1974)

67 Por outro lado, se “a transição do subdesenvolvimento para o desenvolvimento é dificil- mente concebível no quadro da dependência”, o mesmo “não se pode dizer do processo inverso.” a rápida diversificação do setor de consumo torna a dependência dificilmente re- versível. com a industrialização substitutiva, o aparelho produtivo tende a dividir-se em dois segmentos, um tradicional, produtor de bens para a exportação ou mercado interno, e ou- tro “constituído por indústrias de elevada densidade de capital, produzindo para a minoria modernizada”, configurando o chamado ‘desequilíbrio ao nível dos fatores’, conceito que o autor critica, pois não se trata de simples inadequação da tecnologia absorvida, na medida em que “os bens que estão sendo consumidos não podem ser produzidos senão com essa tecnologia e [...] às classes dirigentes que assimilaram as formas de consumo dos países cêntricos não se apresenta o problema de optar entre essa constelação de bens e uma outra qualquer”. trata-se, portanto, mais uma vez, de uma questão de dependência cultural e de poder. (furtadO, 1974, p. 87)

[...] e na medida em que avança essa industrialização, o pro- gresso técnico deixa de ser o problema de adquirir no estran- geiro este ou aquele equipamento e passa a ser uma questão de ter ou não acesso ao fluxo de inovação que está brotando nas economias do centro. (FURTADO, 1974, p. 89)

A conclusão, não necessária, segundo o autor, é que “a depen- dência, antes imitação de padrões externos de consumo mediante a importação de bens, agora se enraíza no sistema produtivo e as- sume a forma de programação pelas subsidiárias das grandes em- presas, dos padrões de consumo a serem adotados.” (FURTADO, 1974, p. 90)

Mais uma vez, não é o caso de desenvolver a questão aqui, mas vale perguntar se não estaríamos, neste momento, com a massifi- cação da internet e tudo que está por trás dela, vivendo o paroxismo dessa situação, em que o próprio consumo cultural adota essas ca- racterísticas, muito além da mera adoção de formatos mais ou me- nos globais da velha Indústria Cultural, cujo paradigma é a TV de massa. A lógica da inovação nas indústrias culturais e da comunica- ção, nos setores convergentes, na informática de massa, como nas indústrias ligadas às biotecnologias, ou nas chamadas indústrias criativas, tudo aponta para formas de dependência cultural, que só confirmam a posição de Furtado expressa na seguinte conclusão:

O controle local, ao nível da produção, não significa ne- cessariamente menos dependência, se o sistema pretende continuar a reproduzir os padrões de consumo que estão sendo permanentemente criados no centro. Ora, a experi- ência tem demonstrado que os grupos locais (privados ou públicos) que participam da apropriação do excedente, no quadro de dependência, dificilmente se afastam da visão do desenvolvimento como processo mimético de padrões cul- turais importados. (FURTADO, 1974, p. 94)

Esse é particularmente o caso, vale explicitar, dos oligopólios na- cionais que controlam as indústrias culturais e da comunicação.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 177-186)