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Breve parêntese sobre a parte maldita

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 132-150)

Já deve estar bem claro o significado da interdisciplinaridade pro- posta por Furtado e a importância, nesse sentido, das contribuições da antropologia empírica e da filosófica. Antes de entrar na discus- são do trabalho, bem mais complexo, em que o autor procurará dar um passo além, ao propor, não um enfoque interdisciplinar, mas a “busca de uma teoria social global, na qual entronquem a teoria da reprodução da população, a teoria das decisões intertemporais (acumulação), a teoria da estratificação social e a teoria do poder”, (FURTADO, 1977, p. 11) busca para a qual é central, mais uma vez, a teoria do excedente, devemos lembrar, rapidamente, a intrigante proposta de George Bataille (2009) de fundar uma “economia ge- ral”, que parte também de um conceito de excedente definido em termos antropológicos.

No prefácio da edição argentina de 2009, Julián Fava faz uma boa síntese, que nos ajudará a ir mais diretamente ao ponto. O pro- jeto de Bataille é, como aponta Fava, ao mesmo tempo materialista e monista, partindo da ideia de que toda a vida sobre a Terra, animal ou vegetal, é manifestação de uma única força produtora de um excedente destinado à destruição. Mais precisamente, ele parte do “fato elementar” de que “o organismo vivo, dentro da situação que

determinam os jogos da energia na superfície do globo, recebe em princípio mais energia que a necessária para a manutenção da vida.” (BATAILLE, 2009, p. 34) Essa

[...] energia (a riqueza) excedente pode ser utilizada para o crescimento de um sistema (por exemplo, de um organis- mo). Se o sistema não pode crescer mais [...] é necessária a perda sem benefício, o gasto, voluntário ou não, glorioso, ou ao menos, de maneira catastrófica.

No homem, desde que ele se constitui, pelo trabalho, essa força aparece domesticada, subordinando os meios atuais à utilidade fu- tura. Mas o homem produz muito mais energia do que a que neces- sita, destruindo-a inutilmente. Bataille encontra no conceito de potlatch, de Marcel Mauss, um gasto improdutivo com uma função social.

Bataille recupera, assim, a constituição de uma proprieda- de positiva da perda, da qual derivam a honra, a nobreza, a posição na hierarquia, toda a constelação que dá a essa instituição seu valor significativo. Essa figura do potlatch é o núcleo para pensar a passagem da ‘economia restringida’, que só leva em conta as atividades humanas que se inscre- vem sob a égide da utilidade, a escassez, a conservação e o lucro, a uma ‘economia geral’ que permita dar conta das operações de perda, luxo, desperdício e don. (FAVA, 2009, p. 13, tradução nossa)41

41 Bataille recupera, así, la constitución de uma propriedad positiva de la perdida, de la cual derivan el honor, la nobleza, el rango em la jerarquia, toda la constelación que le da a esa institución su valor significativo . esta figura del potlatch es el núcleo para pensar el pasaje de la “economia restringida”, que solo tiene em cuenta las actividades humanas que se inscriben bajo la égida de la utilidad, la escassez, la conservación y la ganância, a uma “eco- nomia general” que permita dar cuenta de las operaciones de perdida, lujo, derroche y don. (faVa, 2009, p. 13)

Aí se incluem todos os gastos que escapam à utilização racional dos fatores, o gasto livre, o sacrifício. Para Fava (2009, p. 17), A parte maldita é uma exposição radical do “desdobramento das for- ças do homem sobre a superfície do globo” em que a triple dimen- são religiosa, erótica e artística abre um “mais além da utilidade”, que “em sentido estrito é um mais aquém: a intimidade perdida ou os instantes soberanos.” O interessante é que em A parte maldita desenvolvem-se as bases para uma filosofia da história em que se articulam

[...] o gasto improdutivo e o principio da utilidade sob três formas: as ‘sociedades de consumo’, quer dizer, as socieda- des primitivas, nas que predomina o gasto improdutivo; as ‘sociedades de empresa’, nas quais o excedente de produção é absorvido pela ‘empresa militar ou religiosa’ (por exemplo: os impérios teocráticos); e finalmente a sociedade moderna burguesa ou capitalista, na qual o gasto improdutivo não só é questionado – no gesto pelo qual a burguesia se descola da velha casta aristocrática – senão que a premissa fundamen- tal é a reprodução do capital. (FAVA, 2009, p. 17-18)42

As sociedades, como os seres vivos, em geral, produzem neces- sariamente um excedente para além do que é necessário à sua sub- sistência É o uso que se faz desse excedente o que determina a “lei geral da economia”, de qualquer economia.

O excedente é a causa da agitação, das mudanças de estru- tura e de toda a história. Mas existe mais de uma saída, en- tre as quais a mais comum é o crescimento. E o próprio

42 [...] o gasto improdutivo e o principio da utilidade sob três formas: as ‘sociedades de con- sumo’, quer dizer, as sociedades primitivas, nas que predomina o gasto improdutivo; as ‘sociedades de empresa’, nas quais o excedente de produção é absorvido pela ‘empresa mi- litar ou religiosa’ (por exemplo: os impérios teocráticos); e finalmente a sociedade moderna burguesa ou capitalista, na qual o gasto improdutivo não só é questionado – no gesto pelo qual a burguesia se descola da velha casta aristocrática – senão que a premissa fundamental é a reprodução do capital. (faVa, 2009, p. 17-18)

crescimento tem muitas formas, cada uma das quais, ao fi- nal, encontra algum limite. Ao obstaculizar-se, o crescimen- to demográfico se faz militar, é constrangido à conquista: uma vez atingido o limite militar, o excedente tem as formas suntuárias da religião como saída, os jogos e os espetáculos que derivam deles ou o luxo pessoal. Continuamente, a his- tória registra o freio, logo a retomada do crescimento. É um dos estados de equilíbrio em que a vida suntuária acrescen- tada e a atividade belicosa reduzida oferecem ao excedente sua saída mais humana. Mas esse estado dissolve a socieda- de pouco a pouco e a devolve ao desequilíbrio. Nessas con- dições de mal estar, uma sociedade, desde o momento em que possa, se compromete em uma empresa suscetível de acrescentar suas forças. Então, a sociedade está disposta a refundar suas leis morais, dispõe de excedente para novos fins que excluem repentinamente as outras saídas. (FAVA, 2009, p. 124)43

Se a civilização islâmica encontrou na atividade guerreira um princípio de expansão, condenando todas as formas de vida pródi- ga, mas encontrando rapidamente os seus limites, a economia in- dustrial capitalista, envolta em “uma excitação desordenada, mos- tra-se condenada a crescer, ainda que já careça dessa possibilidade.” Para isso foi necessário superar o pensamento moral da Igreja, que

43 O excedente é a causa da agitação, das mudanças de estrutura e de toda a história. mas exis- te mais de uma saída, entre as quais a mais comum é o crescimento. e o próprio crescimento tem muitas formas, cada uma das quais, ao final, encontra algum limite. ao obstaculizar-se, o crescimento demográfico se faz militar, é constrangido à conquista: uma vez atingido o limite militar, o excedente tem as formas suntuárias da religião como saída, os jogos e os espetáculos que derivam deles ou o luxo pessoal. continuamente, a história registra o freio, logo a retomada do crescimento. É um dos estados de equilíbrio em que a vida suntuária acrescentada e a atividade belicosa reduzida oferecem ao excedente sua saída mais humana. mas esse estado dissolve a sociedade pouco a pouco e a devolve ao desequilíbrio. nessas condições de mal estar, uma sociedade, desde o momento em que possa, se compromete em uma empresa suscetível de acrescentar suas forças. então, a sociedade está disposta a refundar suas leis morais, dispõe de excedente para novos fins que excluem repentinamente as outras saídas. (faVa, 2009, p. 124)

se opunha ao livre desenvolvimento das forças produtivas. “A pro- dução, segundo a moral cristã, é um serviço cujas modalidades (as obrigações, os cargos e as prerrogativas) estão determinadas pelos fins (pelos clérigos que, em suma, são os juízes) e não por um mo- vimento natural.” (FAVA, 2009, p. 125, 135) Retomando o significa- do da Reforma para a reversão dessa lógica, o autor mostra que:

[...] na origem da sociedade industrial, fundada sobre o pri- mado e a autonomia da mercadoria – da coisa – encontra- mos uma vontade contraria de colocar o essencial [...] por fora do mundo da atividade, do mundo das coisas [...]. A re- ligião e a economia são, num mesmo movimento, liberadas daquilo que as endivida uma com a outra, a primeira é libe- rada do cálculo profano e a segunda, dos limites dados de fora. (FAVA, 2009, p. 147)44

A lógica da mercadoria, da coisificação, “o reino da coisa” sus- tentava-se, assim, também sobre a “propensão natural à servidão.” A “vontade de poder pura (de crescimento sem outro fim que o crescimento) [...], aparentemente oposta ao espírito servil, no fun- do não era mais do que o seu complemento.” Por outro lado, “o espírito rigoroso, aferrado ao desenvolvimento das ciências e das técnicas” servirá à necessidade de destruição das sobrevivências do mundo antigo, em benefício do capital que, ele mesmo, tolera cer- tos privilégios que obstaculizam o desenvolvimento. (FAVA, 2009, p. 156, 158)

No que se refere ao excedente, “sem dúvida nenhuma, a mudan- ça mais consequente [...] foi sua consagração primordial ao desen- volvimento dos equipamentos.” (FAVA, 2009, p. 172) E segue, em termos bem próximos de Furtado: “o que chamamos ‘acumulação’

44 [...] na origem da sociedade industrial, fundada sobre o primado e a autonomia da merca- doria – da coisa – encontramos uma vontade contraria de colocar o essencial [...] por fora do mundo da atividade, do mundo das coisas [...]. a religião e a economia são, num mesmo movimento, liberadas daquilo que as endivida uma com a outra, a primeira é liberada do cálculo profano e a segunda, dos limites dados de fora. (faVa, 2009, p. 147)

significa que grande quantidade de indivíduos afortunados recha- çou os gastos improdutivos de um estilo de vida faustuoso e em- pregaram suas possibilidades na aquisição de meios de produção.” Em Furtado, a categoria acumulação é mais geral, mas o problema da acumulação capitalista é precisamente esse. Há uma inversão e a lógica dos meios passa a imperar.

Em Bataille (2009, p. 173), na medida em que essa inversão blo- queia a válvula de escape do consumo improdutivo, do desperdício puro e simples da energia excedente, o sistema tenderá a um cres- cimento metastático, que colocará a guerra como solução sempre à espreita. Para o autor, o movimento operário e a política de esquer- da, ao interromper a produção por meio da greve, por exemplo, ou, quando tem as suas reivindicações atendidas, ao reduzir o tempo de trabalho, ou ao aumentar o salário, reduz não apenas a parte do excedente destinada ao luxo dos capitalistas, mas também aquela que seria acumulada, de modo que, no final das contas, faz com que uma parte maior da riqueza seja destinada ao gasto improduti- vo. Assim, “a esquerda que conhecemos tem em geral um sentido, se não de desencadeamento, ao menos de distensão”, estimulando, “em princípio, um movimento generoso e o gosto por viver sem espera.”

Não assim na União Soviética, onde se instala uma “acumulação comunista” destinada a cobrir um atraso secular. A rivalidade eco- nômica entre Estados Unidos e União Soviética é “a da produção excedente contra a da produção insuficiente – a produção chegada ao ponto da maturidade (em que longe de deixar lugar aos gastos de consumo, multiplica o excedente) contra a acumulação da primeira fase que reduz ao mínimo o consumo.” (BATAILLE, 2009, p. 262) O autor toma as análises de Perroux sobre o Plano Marshall para apresentar uma alternativa em que o excedente potencialmente destrutivo, de um lado, se transfere para o outro, como don, mas não é o caso de entrarmos aqui nesses detalhes. Em todo caso,

[...] o crescimento da riqueza tem por resultado uma exci- tação maior que a descarga. Isto não quer dizer: a fabrica- ção de canhões conduz à guerra, nem nada assim preciso, mas: a construção de fábricas exige que, de alguma manei- ra, uma atividade improdutiva seja subtraída ao princípio que preside a construção. O desejo dos homens não pode, aqui, mais do que traduzir uma verdade esquecida: que o consumo [consumation] é o aspecto maior; o aspecto fun- damental, a acumulação (com vistas a produções maiores) é um aspecto secundário, transitório, a acumulação modi- fica quantitativamente e de maneira passageira o sentido de uma atividade encaminhada ao instante de resolução em que a riqueza se perde, se gasta, se consome. (BATAILLE, 2009, p. 232-3)

Nesse sentido, pode-se sintetizar a filosofia de base antropológi- ca de Bataille (2009, p. 212) no seguinte trecho:

Os seres que somos não estão dados de uma vez por todas, aparecem expostos para um crescimento de seus recursos de energia. Na maior parte do tempo, fazem deste cresci- mento, mais além da simples subsistência, seu objetivo e sua razão de ser. Mas nessa subordinação ao crescimento, o ser oferecido perde sua autonomia, subordina-se ao que será no futuro graças ao crescimento dos seus recursos. De fato, o crescimento deve situar-se com relação ao instan- te em que se resolverá em puro gasto. Mas esta é justamen- te a passagem difícil. A consciência, de fato, opõe-se a isso no sentido em que busca aferrar-se a qualquer objeto de aquisição, a alguma coisa, não ao nada do puro gasto. Trata- se de chegar ao momento no qual a consciência deixará de ser consciência de alguma coisa. Em outros termos, tomar consciência do sentido decisivo de um instante em que o crescimento (a aquisição de alguma coisa) se resolverá em gasto é exatamente a consciência de si, quer dizer, uma cons- ciência que já não tem nada por objeto.

Furtado não vai tão longe. Para ele, o essencial é reverter a lógica dos meios e buscar os verdadeiros fins do humano, que se encon- trarão numa cultura liberada dos constrangimentos impostos pelo desenvolvimento capitalista, tal como veio se propagando pelo pla- neta a partir do seu núcleo originário. Voltarei a isso adiante. Antes, vale retomar o seu projeto de uma ciência social global, tal como exposto no Prefácio a nova economia política.

Excedente e a grande teoria

45

Já me referi acima à pretensão de Furtado (1977, p. 11), no texto que ora nos ocupa, de sentar as bases para uma ciência social glo- bal, o que vai além da mera interdisciplinaridade. A proposta adota “a forma de prefácio e índice de um livro que não existe”, com o obje- tivo de “chamar a atenção para a situação atual de carência de uma teoria geral das formações sociais.” Essa preocupação com uma te- oria geral das formações sociais é recorrente tanto no marxismo como na antropologia, formando um campo de diálogo para o qual o conceito de excedente é chave. Já vimos um pouco da solução de George Bataille no item anterior.

Darcy Ribeiro (1968), na introdução a O processo civilizatório, tra- ça uma genealogia das teorias da evolução sociocultural, iniciando por Ancient Society, de Lewis Morgan, publicado em 1877, mas in- clui também o texto de Marx sobre as formações pré-capitalistas, redigido entre 1857 e 1858, embora publicado só em 1939, como fonte clássica, que influenciou a reelaboração do esquema de Mor- gan feita por Engels, em Origens da família, da propriedade privada e

45 referência a mallorquin, (2005) que define o trabalho de furtado (1977, 1978) que será ana- lisado neste e no próximo item, ao lado de Criatividade e dependência na civilização industrial, que retomarei no próximo capítulo, como constitutivos do momento da “grande teoria”, em que furtado se afastaria do paradigma estruturalista, retomado, não obstante, logo em seguida, na Pequena introdução ao desenvolvimento, (1980) ao qual também voltarei adiante.

do Estado, publicado pela primeira vez em 1884. Segundo Ribeiro (1968, p. 16),

[...] poucos aspectos das teorias de Marx foram tantas vezes revistos por ele próprio e por Engels, e também por outros estudiosos marxistas, do que estas seriações de etapas da evolução sociocultural. Eles próprios as encaravam, prova- velmente, como tentativas pioneiras [...].

E traça a seguinte avaliação:

Embora trabalhando com a melhor bibliografia da época e capacitados para tirar dela o máximo proveito, Marx e Engels não podiam suprir lacunas só posteriormente preenchidas pelos estudos arqueológicos, etnológicos e históricos. Entre- tanto, mesmo passado um século, as anotações de Marx so- bre este campo – As formações pré-capitalistas – constituem uma das formulações teóricas mais ousadas e fecundas de que se dispõe. Lamentavelmente, o próprio Marx não re- tomou o tema posteriormente, cabendo a Engels rever os antigos estudos comuns com base na bibliografia publica- da mais tarde, principalmente na contribuição de Morgan. Os estudos marxistas posteriores encaminharam-se para uma orientação cada vez mais unilinear e dogmática [...]. Só recentemente, com a publicação das Formações de Marx (1966), estes estudos foram retomados com maior amplitu- de de visão. (RIBEIRO, 1968, p. 16-17)

Seria interessante retomar a contribuição do próprio Darcy, que trabalha conceitos antropológicos importantes para Furtado, como inovação, difusão, aculturação, mas deixemos isso para outra oca- sião. Tampouco temos espaço para avançar na rica tendência de es- tudos históricos na matéria, inaugurada pelo clássico prefácio de Hobsbawn (1986) às Formações, de Marx, incluindo o fundamental

trabalho de Perry Anderson (1998, 2004).46O fato é que o interes-

se de Furtado em propor uma teoria geral das formações sociais coloca-o como uma possível nova referência para esse diálogo en- tre antropologia e marxismo. Tanto mais porque essa proposta aparece claramente formulada como crítica da economia política. E mais, como crítica ao próprio estruturalismo latino-americano que ele ajudou a fundar:

A análise econômica corrente, fundada numa concepção funcionalista dos processos sociais, é reconhecidamente insuficiente para captar aspectos fundamentais dos siste- mas econômicos [...] fatos da maior significação ocorrem ‘no plano das estruturas’, sendo praticamente invisíveis para o analista econômico. O trabalho da escola estrutura- lista latino-americana orientou-se, desde os anos cinquenta, no sentido de explicitar, desenterrando-as da matriz estru- tural, elementos que permitem demonstrar a especificida- de do subdesenvolvimento [...]. O progresso assim obtido realizou-se a partir de determinado sistema de enunciados gerais que poderíamos chamar de tradicional, porque mui- to próximo da análise econômica convencional. Tratava-se de ‘transformar parâmetros em variáveis’, o que muitas ve- zes é simples decorrência do enriquecimento do fluxo de informação. Ora, o esforço de teorização dentro desse qua- dro encontra-se, há bastante tempo, em fase de rendimento decrescente: o aumento no fluxo de informação tem sido considerável, em termos relativos, mas sua eficácia no pla- no explicativo, bem modesta. (FURTADO, 1977, p. 13-14)

Trata-se, portanto, de um reconhecimento dos limites da ciência econômica: “a dificuldade maior para continuar avançando na construção teórica advém de limitações impostas pelos enunciados gerais que delimitam o horizonte especulativo.” (FURTADO, 1977,

46 também seria fundamental retomar os trabalhos de Krader (1974, 1983) sobre marx e a etnologia, mas tudo isso deve ficar para uma próxima ocasião.

p. 14) É preciso, portanto, ultrapassar as fronteiras e superar os próprios limites do estruturalismo latino-americano. “Quando, na década de 1980, o ‘estruturalismo interdisciplinar’ de Furtado re- torna como eixo central de seu pensamento, vemos que estão incor- porados os conceitos tratados aqui: ‘acumulação’ e ‘excedente’”, (MALLORQUIN, 2005, p. 260) como se verá na Pequena introdu- ção ao desenvolvimento.

Na verdade, o conceito de excedente não é novo na obra de Furta- do, mas, na leitura de Mallorquin, que se detém numa minuciosa análise da gênese dos textos, trata-se agora de um retorno,47 em que

o conceito se reveste de uma qualidade nova, tendo em vista o obje- tivo já referido de integração das teorias da acumulação, da estrati- ficação social e do poder. Por isso Furtado apresentaria, no livro em exame, duas definições de excedente:

[...] uma entidade que se cria no processo de trabalho e, por- tanto, condição de existência de qualquer tipo de formação social. Esta acepção (clássica) do conceito de excedente às vezes será intercambiada por uma perspectiva que explica e privilegia sua origem a partir de certas relações assimétricas de poder e desigualdade. (MALLORQUIN, 2005, p. 263)

Ao quadro teórico mais amplo que se busca corresponde um conceito de acumulação mais abrangente. Para Furtado (1977, 15), na medida em que se trata, na economia política clássica, de expli- car a riqueza das nações, a acumulação deve ser vista como fluxo (formação de capital, investimento) – como “tendeu a prevalecer entre os clássicos mais influentes”, inclusive Marx, e entre os neo- clássicos – e como estoque (capital acumulado, capacidade de pro- dução) – que o autor encontra no debate clássico sobre o trabalho

47 “a noção de ‘excedente’ na obra de furtado aparece precocemente – podemos apreciá-la em

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 132-150)