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O modelo de base de Furtado para o subdesenvolvimento

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 84-91)

O subdesenvolvimento, para Furtado, é uma condição histórica de- corrente da expansão da economia industrial europeia, analisada no item anterior. Essa expansão se dará, para o autor, em três direções:

1. Dentro da própria Europa Ocidental, nos termos já dis- cutidos, primeiro em condições de oferta elástica de mão de obra e, em seguida, através do progresso técni- co que dá flexibilidade a um sistema econômico que já incorporara parte significativa da economia pré-capita- lista, tornando inelástica a oferta de trabalho.

2. Deslocamento, para além do espaço europeu “de mão- de-obra, capital e técnica, onde quer que houvesse ter- ras ainda desocupadas e de características similares às

da própria Europa”, graças a diferentes fatores, como o ouro, na Austrália ou no Oeste norte-americano, aliado à revolução nos transportes marítimos. “Mas importa ter em conta que esse avanço da fronteira não se dife- renciava, basicamente, do processo de desenvolvimento da própria Europa do qual fazia parte, por assim dizer: as economias australiana, canadense ou estadunidense, nessa fase, eram simples prolongamentos da economia industrial européia.” Inclusive em termos culturais, pois os colonos, que emigravam da Europa, levavam consigo as técnicas e os hábitos de consumo. Além dis- so, como “só se estabeleciam onde existia uma base de recursos naturais muito favorável, explica-se que suas populações hajam alcançado, desde o início, elevados níveis de vida, comparativamente aos dos países euro- peus.” (FURTADO, 1983, p. 141-2)

3. A terceira linha de expansão é aquela formada por regiões já ocupadas, por vezes densamente povoadas, formando um conjunto heterogêneo de economias pré-capitalistas. O efeito do impacto da expansão capitalista sobre essas es- truturas variou de região para região, ao sabor das circuns- tâncias locais, do tipo de penetração capitalista [limitado, às vezes, à abertura de linhas comerciais, outras à exploração de fontes de matérias-primas...] e da intensidade desta. Con- tudo, a resultante foi quase sempre a criação de estruturas dualistas, uma parte das quais tendia a organizar-se à base da maximização do lucro e da adoção de formas modernas de consumo, conservando-se a outra parte dentro de formas pré-capitalistas de produção. Esse tipo de estrutura sócio-e- conômica dualista está na origem do fenômeno do subde- senvolvimento contemporâneo. (FURTADO, 1983, p. 142)

Assim, o subdesenvolvimento é “um processo histórico autôno- mo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimen- to.” No caso típico da implantação de uma exploração mineira, por exemplo, o impacto na estrutura pré-existente dependerá do nível de salário (bastando ser um pouco superior ao nível pré-existente de remuneração, dependente das condições de vida anteriores), do volume da população (normalmente bem superior às necessidades da empresa que se implanta, beneficiada ainda por medidas de pro- filaxia e outras que reduzem a taxa de mortalidade) e dos impostos que sejam pagos. Uma situação, segundo o autor, até certo ponto idêntica à

[...] primeira fase do desenvolvimento da economia capita- lista, quando o sistema artesanal pré-existente ia sendo des- truído e absorvido [...] Entretanto, a similitude é aparente, pois a empresa capitalista que penetra em uma região de estrutura econômica pré-capitalista não se vincula, efetiva- mente, a esta última, pelo simples fato de que a massa de lucros por ela gerados não pertence à economia local. (FUR- TADO, 1983, p. 142)

Na medida em que as decisões de investimento e consumo capi- talista dependem do empresário, e o consumo assalariado, do nível global de emprego, “sempre que o núcleo capitalista existiu como uma cunha controlada de fora, pouco se modificaram as estrutu- ras”, dependendo o seu impacto do volume de mão de obra absor- vido pelo setor capitalista. A isso, Furtado chama capitalismo bas- tardo. Em todo caso, esclarece, se não há mudança estrutural, há sim mudanças na composição da demanda global da economia subdesenvolvida em questão e também uma tendência de urbani- zação e de criação de uma “infra-estrutura de serviços básicos de mais alto padrão técnico.” (FURTADO, 1983, p. 143-144)

Mas há um segundo caso, em que a atividade exportadora é con- trolada principalmente por capitais nacionais, como no caso da economia cafeeira no Brasil.26Na verdade, “a experiência brasileira

surge como um caso especial, no qual se conjugam o controle por grupos nacionais da produção exportável, a abundância de recursos naturais”,27 o que facilitaria a reinversão dos lucros na própria ativi-

dade cafeeira, facilitando a absorção da economia de subsistência pré-existente, o financiamento da imigração europeia e, com isso, a expansão da economia monetária e a “formação de um mercado interno de dimensões relativamente grandes”, (FURTADO, 1983, p. 145) abrindo caminho para os investimentos industriais. A diver- sificação desse novo setor industrial leva à constituição de um tipo de economia subdesenvolvida de grau superior (fase superior do subdesenvolvimento), capaz de produzir internamente parte dos equipamentos requeridos pelo processo de desenvolvimento.

Não cabe entrar aqui na análise do conhecido processo de subs- tituição de importações, a forma que adquire a industrialização nessas economias, segundo o modelo da CEPAL. O importante é que

[...] a maior preocupação do industrial local é a de apresen- tar um produto similar ao importado e adotar métodos de produção que o habilitem a competir com o importador de artigos estrangeiros. Assim sendo, os processos produtivos que se afiguram mais vantajosos são aqueles que permitem

26 furtado (1983, p. 144) cita ainda um caso intermediário, nas repúblicas centro-americanas, onde se daria tanto “o efeito de incrustração de empresas estrangeiras – no caso das plan- tações de banana – [... quanto o] efeito de uma expansão controlada por capitais nacionais – no caso das plantações de café”. em todo caso, “o resultado não foi muito distinto. uma vez esgotadas as possibilidades de expansão do setor cafeeiro, a experiência demonstrou que os novos capitais nele formados tendiam antes a expatriar-se que a buscar outros campos de aplicação dentro da economia onde se formavam.”

27 a elasticidade da oferta de fatores era dada pela abundância de terras, mas também pela capacidade de utilização, numa primeira etapa, da mão de obra escrava semiutilizada da região mineira decadente, depois pela imigração europeia e, finalmente, pela absorção de excedentes de mão de obra do nordeste e de minas Gerais.

reproduzir com exatidão os artigos importados, e não os que permitam uma transformação mais rápida da estrutura econômica pela absorção do setor de subsistência. (FURTA- DO, 1983, p. 146)

Nessas condições, a estrutura ocupacional não se modifica, não é eliminado o dualismo – característico também das primeiras fa- ses da industrialização nos países centrais, mas que neste caso se torna uma “característica estrutural e permanente” (FURTADO, 1983, p. 151) – e não se reduz a dependência externa, nem a hetero- geneidade estrutural, as duas características essenciais do subde- senvolvimento. O fundamental, para nossos objetivos, é que “uma economia subdesenvolvida não deve ser considerada isoladamente do sistema de divisão internacional do trabalho em que está inseri- da” e que, “em suas raízes, o subdesenvolvimento é um fenômeno de dominação, ou seja, de natureza cultural e política.” (FURTA- DO, 1983, p. 148)

Se, inicialmente, o subdesenvolvimento decorre de vantagens comparativas decorrentes da especialização geográfica, num mo- mento em que, como decorrência da Revolução Industrial, consti- tuía-se o sistema de divisão internacional do trabalho, ampliando-se a demanda por bens primários, a própria especialização transfor- mará os países “periféricos” em “importadores de novos bens de con- sumo, fruto do progresso tecnológico nos países ‘cêntricos’.” (FUR- TADO, 1983, p. 181) É isso que, segundo o autor, a lei das vantagens comparativas dos clássicos, válida então de um ponto de vista está- tico, deixava na sombra.

Ora, o aumento de produtividade média no país ‘periférico’ não se traduzia [...] em aumento significativo da taxa de sa- lário; mas [...] trazia necessariamente consigo elevação dos gastos em consumo e modificação qualitativa do padrão de vida da minoria proprietária e dos grupos urbanos profis- sionais e burocráticos. Desta forma, desenvolvimento (ou

melhor, progresso, na concepção vulgar) passou a confundir- se com importação de certos padrões culturais, ou seja, com a modernização dos estilos de vida. (FURTADO, 1983, p. 181) Forma-se, assim, um grupo social que não passava, em todo caso, de um décimo da população nacional, com hábitos de consu- mo e estilos de vida semelhantes aos dos países em que ocorria a revolução tecnológica. A industrialização periférica, por substitui- ção de importações, acabará incorporando, em decorrência, o pa- drão técnico, o coeficiente de capital dos países centrais, de modo que “o ‘dualismo’ que se formara no plano cultural (padrões de consumo em permanente mutação e importados versus padrões de consumo tradicionais) tenderá a projetar-se na estrutura do siste- ma produtivo”, (FURTADO, 1983, p. 182) situação que tende a per- petuar-se.

Desenvolvimento ‘periférico’ passa a ser, portanto, a diversi- ficação (e a ampliação) do consumo de uma minoria cujo es- tilo de vida é ditado pela evolução cultural dos países de alta produtividade e onde o desenvolvimento se apoiou, desde o início, no progresso tecnológico. Mais precisamente: o prin- cipal fator causante da elevação de produtividade na econo- mia periférica industrializada parece ser a diversificação do consumo das minorias de altas rendas, sem que o processo tenha necessariamente repercussões nas condições de vida da grande maioria da população. (FURTADO, 1983, p. 182)

O Estado pode, através da sua política fiscal, promover mudan- ças no perfil da demanda e na estrutura do sistema produtivo, mas em geral a sua atuação tem sido, segundo o autor, no sentido de reforçar a natureza dual dos processos de modernização e indus- trialização na periferia. A assimetria da evolução das economias centrais e periféricas faz com que as primeiras, que controlam o progresso tecnológico, acabem por impor padrões de consumo para as segundas, que se tornam, assim, dependentes.

Assim, na economia dependente existirá, sob a forma de um ‘enclave’ social, um grupo culturalmente integrado nos subsistemas dominantes. O dualismo tem, portanto, desde o início, uma dimensão cultural, a qual se traduz, em termos econômicos, numa descontinuidade na ‘superfície’ da pro- cura. É a industrialização ‘substitutiva de importações’ que transfere essa descontinuidade para a estrutura do aparelho produtivo. Para o economista que observa uma economia subdesenvolvida como um sistema fechado, esse fenômeno se apresenta como um ‘desequilíbrio ao nível dos fatores’, decorrente da ‘inadequação’ da tecnologia. Escapa-lhe que o referido fenômeno é, fundamentalmente, uma decorrência das formas de comportamento ligadas ao quadro estrutural da dependência. (FURTADO, 1983, p. 183)

O dualismo se define, portanto, de início, no plano cultural – ou seja, de acordo com a citação anterior da página 148 da TPDE, em termos de dominação, que é de natureza cultural e política – trans- ferindo-se para o dos processos produtivos, graças ao funciona- mento de mecanismos explicáveis pelo conceito, anteriormente exposto, de poder econômico. Assim, a teoria do subdesenvolvi- mento de Furtado – que não se separa da sua teoria do desenvolvi- mento, formando ambas um constructo único, capaz de explicar os mecanismos e tendências de expansão da civilização industrial – é uma teoria da dependência, entendida como dependência cultural. (BOLAÑO, 2013) Além disso, integra perfeitamente a problemáti- ca das relações centro-periferia, como a da luta de classes, ao definir aquilo que denomina, nesta altura, como dualismo, em termos de capacidade de acesso a padrões de consumo importados, decorren- te da forma específica do processo de modernização na periferia.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 84-91)