• Nenhum resultado encontrado

Filosofia, ciência e arte

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 195-200)

O último capítulo de Criatividade e dependência (Em busca de uma visão global) começa com a retomada da discussão sobre os dois sis- temas de cultura, cuja articulação, da forma como se deu, definiu a especificidade da civilização europeia, como já visto acima, expli- citando o fato de que ambos se confrontam, mas também se ali- mentam mutuamente, e as disparidades entre, por exemplo, uma Prússia onde, em pleno século XVIII, à burguesia era proibido o acesso à terra, e outras regiões do continente em que “a burgue- sia deixara de ser simples satélite do sistema tradicional de poder dois séculos antes.” O autor explicita o caráter não determinista do processo, de modo que, por exemplo, a Reforma, que nas suas ori- gens era um movimento de restauração dos valores tradicionais, ao romper a unidade religiosa num momento em que “outras forças estavam gerando tensões”, acabou se tornando “fator de orientação do impulso criador e pôs em marcha uma formidável renovação cultural.” (FURTADO, 1978, p. 154)

Da mesma forma, a assimilação da herança cultural grega – que, na sua versão aristotélica, servira para “reforçar a concepção hierár- quica e autoritária do mundo” – pela irradiação da sua redescober- ta, a partir de Veneza, numa ótica platônica, “assume as dimen- sões de uma revolução cultural”, quando se passa a entender “a natureza como sistema dotado de uma estrutura racional, escrita em caracteres geométricos, segundo a expressão de Galileu.” (FURTADO, 1978, p. 155) Com a passagem do empirismo ao for- malismo, afirma, citando Koyré, as matemáticas passam de ins- trumento a matriz da física e “a mecânica passa a ser um ramo das

matemáticas.” (FURTADO, 1978, p. 154)76 A essência do fenômeno

é que

[...] a aplicação dos critérios de racionalidade à organização da produção não era outra coisa senão a quantificação de todos os ingredientes da produção, vale dizer, a redução do processo da produção a esquemas ‘geometrizáveis’ [...]. Desta forma, o núcleo central da estrutura social – a orga- nização da produção – tendeu a ser moldado pelas técnicas do pensamento quantitativo [...]. O segmento da realidade social estruturado com base nos critérios de racionalidade tendeu a expandir-se, vendo-se nessa expansão a manifesta- ção da Razão na História. (FURTADO, 1978, p. 154, p. 156)77

O principal a ressaltar neste ponto é, na linha das duas últimas notas

de rodapé, que “a visão do mundo a partir do qualitativo foi relegada ao plano da consciência pré-racional ou ingênua, ou foi desviada para a esfera não acumulativa da intuição artística” (FURTADO, 1978, p. 154)

76 note-se, em favor da perspectiva que defendo, de aproximação entre furtado e sohn-rethel (BOlaÑO, 2013), que este último também recorre a Koyré num capítulo sobre a ciência galileana, fazendo questão de afirmar que o considera “um dos mais ilustres expoentes da história da ciência considerada como história das ideias.” (sOHn-retHel, 1989, p. 122 da edição espanhola de 1979) a referida subordinação da mecânica à matemática não é outra coisa senão o avanço da abstração que constitui o elemento central do processo estudado por sohn-rethel. furtado (1978, p. 154-5), por sua vez, no texto em exame, falando sobre a recepção europeia de arquimedes só na metade do século XVi e das “partes realmente originais do tratado das seções cônicas de apolônio” só um século depois, interpreta o fato em chave materialista histórica, em termos que bem poderiam ser assinados pelo alemão: “certo: a simples descoberta desses textos não pode ser considerada causa suficiente da eclosão de conhecimentos que ocorre no século compreendido entre a atividade criadora de Galileu e a de newton. copérnico praticamente não conheceu os matemáticos gregos e seu trabalho não é mais do que uma reelaboração da informação já contida na obra de Pto- lomeu. mas na época de copérnico já se haviam realizado as viagens de circunavegação e o interesse prático pelo conhecimento astronômico havia aumentado consideravelmente. era natural, portanto, que alguém se desse conta de que as doutrinas que prevaleciam na época estavam entravando o avanço de um conhecimento que se fazia cada vez mais necessário.” 77 trata-se, afinal, referendando o que se disse na nota anterior, sempre do problema da abstra-

ção/quantificação que está na base da mutação cultural iniciada já no século Xii, como tive a oportunidade de confirmar, citando crosby e le Goff, ao lado de sohn-rethel e avançando para uma explicação própria da terceira revolução industrial (BOlaÑO, 2002), já proposta em outros trabalhos (o primeiro deles, BOlaÑO, 1995).

e que “a racionalidade instrumental instala-se no cerne da prática so- cial.78 Este é o contexto que permitiria ao neoplatonismo galileano de

revestir a forma de ‘revolução científica’.”79 A revolução burguesa é vis-

ta, assim, como “a implantação do tipo de dominação social conducen- te à mercantilização dos ingredientes da produção, vale dizer, à estrutu- ração do processo da produção em função de critérios de racionalidade instrumental.” (FURTADO, 1978, p. 154, 157) Estão imbricados, por- tanto, no mesmo processo, elementos de duas ordens, conhecimento e poder.

Em relação a este último, o “controle de terras e homens” é subs- tituído pelo das técnicas “que asseguram a eficiência na organiza- ção da produção, como base da estrutura de poder.” Na medida, por outro lado, em que setores fundamentais da organização social são regulados a partir de critérios de racionalidade, subordinando-se a normas não necessariamente evidentes para os implicados, “os fundamentos da legitimidade do sistema de dominação social se modificam, como observou Marx e depois Marcuse.” A questão é posta logo adiante nos termos do conceito de poder econômico que

78 É interessante notar que, para furtado (1978, p. 157), “a difusão da racionalidade instru- mental no tecido social (a racionalização a que se refere Weber) é menos decorrência da prática do intercâmbio e do uso da moeda – da extensão do ‘mundo da mercadoria’ – do que da subordinação do conjunto das relações sociais à acumulação.” fica a questão em aberto sobre uma possível contradição em relação aos termos de sohn-rethel, ao contrário do proposto nas duas notas anteriores, embora se tratem de questões bem diferentes. en- quanto o alemão está preocupado em mostrar que a abstração real precede a abstração no pensamento, de acordo com o princípio materialista fundamental (o ser social determina a consciência), furtado, no trecho citado, faz uma crítica dirigida diretamente a Weber, que teria exagerado na ênfase ao intercâmbio e à moeda, dando margem a interpretações sim- plificadoras como a que ele atribui a Oscar lange. assim, “nas sociedades capitalistas de forte acumulação a racionalização avança bem mais rapidamente do que nas de acumulação lenta. Por outro lado, nas sociedades em que a civilização industrial penetrou por outra via que não o capitalismo – mas que se dotam de forte mecanismo de acumulação – o processo de racionalização apresenta-se com igual virulência”.

79 em todo caso, é preciso lembrar que “o comportamento racional com respeito a um fim predeterminado é comum a todas as culturas porquanto decorre da prática do trabalho produtivo. neste caso, as regras da lógica fluem naturalmente de uma comparação entre os fins propostos e os resultados obtidos. desta forma, a técnica pode ser concebida como uma extensão do organismo humano: das mãos, dos braços, do cérebro.” (furtadO, 1978, p. 157)

conhecemos de Furtado: “a ascensão na estrutura de poder de gru- pos sociais, que estão em condições de impor à sociedade um forte ritmo de acumulação, será acompanhada da ampliação da área so- cial submetida à racionalidade instrumental.” Assim, “tudo se pas- sou como se a prática social estivesse preparando o homem para assimilar a visão abstrata do mundo que correspondia aos novos conceitos da ciência galileana.” (FURTADO, 1978, p. 158)

Mas só com Kant, um século depois de Newton, se daria a ruptu- ra epistemológica em que

[...] o conhecimento científico – mais precisamente a dinâ- mica newtoniana – assume postura de paradigma. Em torno dele desenvolve-se um duplo esforço: para dotar a metafísica de fundamentos científicos e para descobrir invariâncias nos processos sociais que permitam tratar a história com os mé- todos comprovados das ciências naturais. (FURTADO, 1978, p. 160)

Voltamos, assim, ao tema desenvolvido no capítulo segundo, da posição de Kant no pensamento de Furtado. O seguinte trecho po- deria estar diretamente na sequência do nosso raciocínio naquela altura:

Se, como pensava Kant, a razão prática prevalece sobre o en- tendimento e os imperativos morais são categorias a priori, o aperfeiçoamento das regras de convivência social não será outra coisa senão a plena realização das faculdades huma- nas. Entre essas faculdades do sujeito transcendental kan- tiano e a visão hegeliana da História como transformação do caos em ordem racional existe perfeita continuidade. Não obstante as duras críticas que faz ao racionalismo do século dezoito, o historicismo inscreve-se no mesmo qua- dro de busca de um ponto de apoio que desempenhe as funções dos antigos dogmas e ao mesmo tempo refira-se à razão. (FURTADO, 1978, p. 163)

Mas aqui a recepção de Kant e Hegel está mediada por Nietzsche, quem “percebeu essa continuidade, daí tê-lo considerado simples ilusão que afastava o homem da confrontação consigo mesmo”, (FURTADO, 1978, p. 163) o que complica evidentemente o nosso trabalho. Alfredo Bosi, no prefácio à edição de 2008 de Criatividade e dependência, aponta convergências entre Furtado e a crítica da cul- tura da Escola de Frankfurt, “apesar das diferenças de linguagem”. Assim,

[...] o uso da expressão ‘racionalidade instrumental’ é sinto- mático dessa convergência com o estilo de pensar de Ador- no, Horkheimer e Marcuse [...]. Entretanto, transparece no discurso de Furtado o sentimento de respeito profundo pe- los grandes criadores da ciência moderna. (BOSI, 2008, p. 23-4)

Incorporando criticamente Marcuse e Habermas,

[...] afirma que a contribuição da ciência moderna no pro- cesso de modernização induziu a uma interpretação que ge- rou uma explicação da natureza e da sociedade a partir das ciências naturais, quando a dessacralização da natureza e a secularização da sociedade foram consolidadas a partir de práticas sociais que refletiam as exigências da acumulação. (LIMA, 2008, p. 35)

Coincidindo com Bosi, prossegue Costa Lima (2008, p. 35): “Marcuse, por certo, radicaliza esta linhagem de pensamento, ao estabelecer o caráter ideológico à ciência e às tecnologias moder- nas. Nesta discussão, é mister observar que o perfil cartesiano de Furtado se sente mal.” Não vou retomar aqui a discussão de fundo (secundária) de Furtado com os frankfurtianos, mas vale citar o seguinte trecho, polemizando com Marcuse, que apoia a posição tanto de Lima como de Bosi:

[...] se a orientação da ciência e da técnica está historicamen- te condicionada, a ciência em si mesma e o essencial de suas aplicações já comprovadas pela experiência constituem uma ampliação da capacidade do homem para pensar e agir de validade permanente. (FURTADO, 2008, p. 159)

No impasse, Furtado recorre a Nietzsche, que, segundo nosso economista, percebeu como poucos a contradição inerente à nossa civilização. A obra de Nietzsche é, sobretudo, pre- ocupação com os valores, ou melhor, tenta redefinir os va- lores, num mundo em que estes valores se perderam e que se ordena em razão dos meios, do pragmatismo, do utilita- rismo. Celso Furtado, neste ponto, desenvolve uma reflexão em torno do nascimento da tragédia, que tem sua percepção centrada nessa supremacia que acabou predominante na ci- vilização ocidental, de subordinar os meios aos fins. O culto à razão, no apolíneo, é a fonte da perda de sentido do homem moderno, que leva ao empobrecimento da vida [...]. Neste ponto, o nosso economista busca resgatar as dimensões da liberdade e, sobremaneira, da criatividade, da responsabilida- de diante da própria obra. (LIMA, 2008, p. 35-6)

A interpretação de Bosi (2008, p. 30) é semelhante:

Não estranhe o leitor os trechos em que Celso Furtado se reporta ao pensamento de Nietzsche para conformar a sua proposta de libertação integral do homem contemporâneo. A sua aspiração pode ser assim formulada: que a atual sub- missão dos fins do ser humano aos meios seja revertida em prol de uma transmutação dos valores que regem a barbárie do consumismo de massas e a insensibilidade dos detento- res do capital internacional.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 195-200)