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Dependência cultural e teoria do excedente

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 100-109)

É interessante retomar a questão partindo do artigo Entre inconfor- mismo e reformismo, produzido por encomenda do Banco Mundial, para uma obra sobre os pioneiros do desenvolvimento. Faz parte da sua obra autobiográfica, mas, de fato, é um texto bastante teórico, em que Furtado parte da explicitação, mais uma vez, no mesmo sentido referido a pouco, da semelhança entre a busca da Escola dos Anais e a do estruturalismo latino-americano.

Eles buscavam ajuda nas ciências sociais e nós, partindo destas, a buscávamos na história. Minha indagação partia da ideia de que o subdesenvolvimento, por sua especificida- de, estava fora do alcance explicativo das teorias do cresci- mento econômico. (FURTADO, 1977, t. 3 p. 11)

A necessidade de superar a simples “dinamização a-histórica de modelos macroeconômicos, na linha keynesiana ou na neoclássi- ca”, que caracterizavam a teoria do crescimento econômico do pós- guerra, leva o autor a definir nos seguintes termos o ponto de par- tida da sua contribuição:

O comportamento diacrônico das comunidades humanas confirma um elemento de intencionalidade que se traduz pelo exercício de opções. Ora, um horizonte de possibilida- des, uma margem de escolha pressupõe a disponibilidade de meios acima do necessário para reproduzir-se. Os meios excedentários de que dispõe uma comunidade podem assu- mir a forma de um estoque, utilizado de uma só vez, mas também podem apresentar-se como um fluxo, a exemplo do que ocorre com a abertura de linhas de comércio. Esses meios excedentários, que abrem graus de liberdade, são na realidade a base do processo acumulativo. Assim, o retor- no ao conceito de excedente social, introduzido pelos fisio- cratas na metade do século XVIII, constitui meu ponto de partida para situar o desenvolvimento econômico em seu contexto histórico. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 12)

Partindo das anomalias da economia brasileira, cuja análise exi- ge categorias que não se encaixam no paradigma hegemônico da ciência econômica da época, o autor define mais uma vez o estrutu- ralismo latino-americano, diferente do estruturalismo francês, pelo empenho em destacar os parâmetros não econômicos dos mo- delos macroeconômicos – o que “é particularmente pertinente com respeito a sistemas econômicos heterogêneos, social e tecnologica- mente, como é o caso das economias subdesenvolvidas.” O que produz esse enfoque latino-americano é “a visão global derivada da história, ao apoiar-se no conceito de sistema de forças produtivas.” Mais uma vez, é feito o reconhecimento ao pensamento marxista, que coloca em primeiro plano “a análise das estruturas sociais para compreender o comportamento dos agentes econômicos.” Trata- se, no total, de um “esforço visando ampliar o quadro conceptual a fim de abranger os condicionantes internos e externos do sistema de decisões”, (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 16-17) que conduziu à teo- ria da dependência.

Já tive a oportunidade de discutir este tema em extensão, em ar- tigo incorporado a Bolaño (2013). Não vou repetir os argumentos aqui, mas vale a pena citar os trechos em que, na sequência, Furta- do (1997, t. 3, p. 39) confirma explicitamente algumas das conclu- sões lá tiradas. Em primeiro lugar, o autor agrega, em nota, uma série de referências, para deixar claro que “foram meus estudos sobre a dinâmica da demanda e a modernização na reprodução do subdesenvolvimento que me orientaram para a ideia de dependên- cia, primeiro cultural e depois tecnológica.” De fato, como tratei de mostrar naquela ocasião, a teoria da dependência de Furtado é an- terior a todas as outras mais conhecidas e é, diferentemente delas, uma teoria da dependência cultural, diferente das teorias da depen- dência cultural posteriores, baseadas em autores como Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto, ou André Gunder Frank, entre outros. Na verdade, como defendo, a retomada da teoria da depen- dência cultural de Furtado nos dias de hoje seria de grande interes- se para os estudos de Comunicação. O fundamental, nesse sentido, é o seguinte:

Fora do quadro da dominação colonial, o fenômeno da de- pendência se manifestou de início no plano cultural, me- diante a transplantação de padrões de consumo que pude- ram ser adotados graças ao excedente gerado no quadro das vantagens comparativas estáticas obtidas no comércio exterior. É o forte dinamismo do segmento modernizado do consumo que projeta a dependência no plano tecnológico e a inscreve na estrutura produtiva. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 18)

A saída dessa situação – em que o aparelho produtivo aparece fraturado em uma parte modernizada, voltada para a importação ou a produção substitutiva de bens sofisticados – torna-se muito difícil, pois a dependência (cultural e tecnológica) tende a reprodu- zir-se de forma ampliada:

Na medida em que os padrões de consumo da minoria que se apropria do excedente devem acompanhar o estilo de vida dos países que lideram o progresso tecnológico (e que se ins- talaram em elevado nível de capitalização), qualquer tentati- va visando ‘adaptar’ a tecnologia será repudiada. Quando se tem em conta que a situação de dependência está sendo per- manentemente reforçada, mediante a introdução de novos produtos (cuja produção requer o uso de técnicas cada vez mais sofisticadas e dotações crescentes de capital), é eviden- te que o avanço da industrialização dá-se de forma simultâ- nea à concentração da renda. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 18)

Isto posto, a “ideia sintetizadora de minhas reflexões de econo- mista sobre a história” se traduz na dicotomia desenvolvimento- subdesenvolvimento, presentes no livro que está na origem da TPDE, referida esta em nota, cujos aspectos centrais Furtado (2009) se propõe a resumir nos dois itens seguintes do artigo, a saber, “uma teoria do excedente social” e “o sistema centro-perife- ria”. Segundo Furtado (2009, p. 19), o desenvolvimento da capaci- dade de ação do homem depende de uma mistura de inventividade e acumulação, entendida esta última como meio de transmissão das técnicas incorporadas, seja diretamente no homem, seja nos instrumentos e coisas de que este se utiliza.

Quando se limita à difusão de técnicas já conhecidas e comprovadas, o desenvolvimento se confunde com a acu- mulação. Mas circunscrever o estudo do desenvolvimento à acumulação é perder de vista que as técnicas não são outra coisa que formas de comportamento cuja racionalidade não é independente de fins preestabelecidos. A substituição do cavalo pelo automóvel não é apenas uma evolução do siste- ma de transporte: é a transformação de um estilo de vida. Falar de difusão ou transmissão de tecnologia é, portanto, um eufemismo, pois o que se está difundindo nesse caso é uma forma de viver, o que implica na desarticulação do

sistema de valores preexistente na sociedade receptora das novas técnicas.

Voltamos, assim, ao tema da difusão da civilização industrial, en- tendido como “adoção por todos os povos da terra do que se con- vencionou chamar de padrões de modernidade, ou seja, a forma de viver engendrada pela industrialização nos países que a lideram.” Com isso, perdem nitidez, por um lado, o papel da criatividade no desenvolvimento e, por outro, a relação entre acumulação e “os va- lores que presidem a vida social. Essa simplificação oculta a exis- tência de modos de desenvolvimento hegemônicos que monopoli- zam a inventividade no nível dos fins em benefício de certos países.” Para o autor, a teoria do excedente se articula com a teoria da estra- tificação social e ao “estudo das formas de dominação que engen- dram as desigualdades na repartição do produto social, ou definem as opções a tomar na utilização do excedente.” (FURTADO, 2009, p. 19-20) A elevação da produtividade, decorrente da divisão social do trabalho, do intercâmbio, da especialização, não é condição sufi- ciente para a produção do excedente, pois só se pode falar em um horizonte de opções, na medida em que

[...] os sistemas de dominação social limitam a satisfação de necessidades básicas que a população considera como ainda não satisfeitas de todo. É a estratificação social que permite a emergência do excedente, ou seja, de recursos com usos alternativos, abrindo o caminho à acumulação. Portanto, os recursos que permitem o desenvolvimento das forças pro- dutivas são os mesmos que tornam possível mobilizar a po- pulação para a guerra e que engendram as desigualdades sociais. (FURTADO, 2009 p. 20-21)

Assim, a acumulação assumirá as mais diversas formas, nas di- ferentes culturas, servindo tanto à estratificação social e à manu- tenção do sistema de poder quanto ao progresso técnico. Por que uma ou outra opção é privilegiada, para o autor, “transcende as teo-

rias do desenvolvimento e invade o estudo comparativo das cultu- ras, particularmente nos seus aspectos morfogenéticos.” O fato é que o mesmo problema pode receber inúmeras soluções e “é nessa diversidade que se manifesta a originalidade de uma cultura.” (FURTADO, 2009, p. 21)

Segue-se uma exposição sobre as duas formas básicas de apro- priação do excedente (autoritária e mercantil), referidas brevemen- te no capítulo anterior, no item Perspectiva histórica, mas que já tive também a oportunidade de analisar com mais detalhe em outra ocasião, (BOLAÑO, 2013, capítulo 1) tomando a exposição feita em Prefácio a Nova Economia Política (FURTADO, 1977) e comparando -a com as definições de Sohn-Rethel (1989) entre sociedades de apropriação unilateral e recíproca. No texto ora em exame, a ques- tão é posta nos seguintes termos:

O caso mais extremo do excedente gerado autoritariamente é a escravidão. Os sistemas impositivos têm origem idênti- ca, o que não impede que eles hajam evoluído no sentido da legitimação pelo consenso dos indivíduos tributados. For- mas mais sutis de extração autoritária do excedente são as normas que regem as profissões hereditárias, que freiam a mobilidade geográfica das pessoas, que impedem a circula- ção de bens, que restringem o acesso à terra arável e à água. Formas ainda mais sofisticadas são os sistemas de patentes, o controle da informação, o controle do acesso às escolas de prestígio etc. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 21)

A outra forma primária de apropriação do excedente (mercantil) “também gera a estratificação social, mas o seu ponto de partida não é a dominação e sim o aumento da produtividade criado pela especialização, possibilitada pelo intercâmbio”, que “pode existir no quadro de relações simétricas, ou seja, entre parceiros totalmen- te independentes um do outro.” (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 22)

É verdade que todo intercâmbio pressupõe um fluxo de in- formações cujo controle por um ou outro dos que o praticam rompe a simetria da relação. Mas neste caso a apropriação do excedente envolve um elemento de autoridade. Em to- das as sociedades complexas as duas formas primárias re- feridas apresentam-se combinadas das maneiras mais va- riadas. No mais das vezes, a forma autoritária alimenta os canais da comercialização [...].30 Nem sempre é fácil saber

onde termina uma forma e onde começa outra. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 22)31

Em todo caso, ao contrário da via autoritária, maciçamente hege- mônica ao longo da história, “a via mercantil gera ela mesma recur- sos que alimentam o excedente”.32 A revolução burguesa é definida

como “a ascensão da classe mercantil européia a posições de força que lhe permitirão desmantelar o sistema tradicional de apropria- ção autoritária do excedente, ou pelo menos colocá-lo em posição de dependência.” (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 23) Com isso,

[...] a atividade mercantil, antes limitada à circulação de bens, tende a verticalizar-se, abarcando a totalidade do processo produtivo. A atividade produtiva deixa de ser um conjunto

30 É o caso paradigmático da produção agrícola de base escravista voltada para o intercâmbio no mercado internacional, elemento central da acumulação primitiva. (nOVais, 1979) 31 “É o caso, por exemplo, da renda de um agente que ocupa uma posição estratégica, ou está

na vanguarda tecnológica [...]. como separar o critério mercantil do autoritário no caso da exploração monopolista de um serviço público? Que dizer do especulador que, mediante a manipulação da informação, obtém um ganho de capital com a valorização de ativos?” (furtadO, 1997, t. 3a, p. 22) Quase não resisto a entrar na discussão sobre a ideia de infor- mação, que furtado maneja neste e nos outros trechos citados há pouco. trabalhei o tema em Bolaño (2000, 2007, 2013) e meu colega alain Herscovici.

32 Vale agregar: “o intercâmbio não se funda apenas na especialização: requer a estocagem de produtos, o transporte destes a distâncias maiores ou menores, meios de proteção etc. toda uma infraestrutura de meios de transporte, armazenagem e de segurança está por trás das operações de comércio. tal infraestrutura e os bens cuja utilização é transferida no tempo, em função das exigências do comércio, constituem uma imobilização do excedente. esse excedente utilizado como meio para extrair outro excedente, seja como instrumento do intercâmbio, seja como vetor das técnicas de produção, denomina-se bens de capital.”

de relações estáveis entre pessoas [...] para transformar-se numa ‘combinação de fatores’ em grande parte intercambi- áveis e sujeitos a cotações de mercado. Porque tudo é inter- câmbio, a apropriação mercantil do excedente generaliza-se, o que permitirá considerar um número crescente de ativida- des humanas como sendo de natureza econômica. (FURTA- DO, 1997, t. 3a, p. 23)

Ao contrário da apropriação autoritária, em que “a técnica se in- tegrava na herança cultural, que era transmitida de geração a gera- ção no âmbito de atividades que prolongavam a vida familiar”, as atividades mercantis baseiam-se no cálculo de preços, custos, tudo com base no denominador comum, universalmente aceito, que é a moeda. “A ideia de produtividade não passa da expressão desse cál- culo. Ora, se a produtividade pode ser aumentada, mediante enge- nho e arte, é que a atividade mercantil produz riqueza”. Por outro lado,

Nas sociedades em que a atividade produtiva está regida por critérios mercantis, o nível de emprego da população já não é assegurado pela organização social, como ocorria na épo- ca em que se herdava o ofício ou o direito de acesso à terra arável. A segurança individual somente poderá ser recupera- da mediante um grande esforço de organização das massas trabalhadoras e do acesso destas às estruturas de poder que tutelam o sistema econômico. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 24)

Conclusão:

A evolução da sociedade capitalista compreende, portanto, duas fases perfeitamente definidas. A primeira está assina- lada pela desarticulação das formas de dominação social apoiadas na apropriação autoritária do excedente e de ascen- são da classe mercantil à posição de hegemonia. A segun- da é definida pela emergência da organização das massas

assalariadas como elemento de crescente importância nas estruturas de poder. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 24)

No segundo item mencionado (o sistema centro-periferia), o au- tor retoma a análise histórica da expansão da civilização industrial, a partir do seu primeiro núcleo, consolidado na Inglaterra da se- gunda metade do século XVIII. A evolução do processo, que tende à unificação da cultura material em todo o mundo, não difere da apresentação que o autor faz em diferentes ocasiões, inclusive na TPDE, em trecho resenhado no capítulo anterior, na análise do mo- delo de Furtado (1980) para o subdesenvolvimento, com intuito classificatório, ou, mais detalhadamente, em perspectiva histórica, na Pequena introdução ao desenvolvimento, que tive a oportunidade de resenhar no artigo que forma o quarto capítulo de Bolaño (2013): ampliação (para a Europa Ocidental) e complexificação do núcleo inicial, ocupação dos territórios de clima temperado de baixa densi- dade demográfica e, finalmente, ampliação dos circuitos comer- ciais, levando a uma divisão internacional do trabalho que inclui o resto do mundo, constituindo-se o subdesenvolvimento, que não se trata de uma necessidade imanente, inelutável, da expansão ca- pitalista, mas, uma vez instaurado, torna-se funcional:

Esse fato histórico iria condicionar a evolução subsequente das estruturas do sistema. Graças a ele, a acumulação no centro seria ainda mais rápida, aprofundando-se o hiato que o distancia da periferia. Daí que as estruturas sociais hajam sido cada vez mais diversas. Dada a forma histórica que assumiu a expansão do capitalismo industrial, já não seria possível defini-lo com base exclusivamente na ideia de gene- ralização da forma mercantil de apropriação do excedente. Também é inerente à sua morfologia atual um sistema de di- visão internacional do trabalho que reflete e reforça relações de dominação-dependência. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 27)

Na verdade, aquela divisão internacional do trabalho “é fruto da iniciativa do núcleo industrial em seu empenho de ampliar os cir- cuitos comerciais existentes e criar novos.” A iniciativa se mantém no núcleo gerador do progresso técnico, mas as transformações se darão, de forma diferenciada, por toda parte. A constituição da pe- riferia, nas regiões onde as mudanças foram moldadas do exterior, é definida pelo autor como um processo de aculturação, em que jo- gará um papel fundamental, “como vetor dos valores culturais do núcleo industrial em expansão”, a forma em que é utilizado o exce- dente retido na periferia. (FURTADO, 1997, t. 3a, p. 28)33Não é ne-

cessário avançar mais aqui na análise que o autor desenvolve em seguida das relações centro-periferia e dos problemas deixados pela modernização e pela industrialização retardatária da periferia.

Voltaremos de forma mais sistemática à teoria do excedente de Furtado (1977) adiante, ao analisar, em detalhe, o Prefácio a nova economia política.

No documento Conceito de cultura em Celso Furtado (páginas 100-109)