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3.2 Desenho da Investigação

3.2.1 Apontamento sobre a análise narrativa em educação e a sua apropriação

Na Figura 10, onde explicitamos o desenho da investigação, referimos o uso da análise narrativa e da narrativa na investigação-ação. Para que possamos clarificar o que neste trabalho concreto entendemos por narrativa e análise narrativa dentro da já vasta produção científica sobre o assunto, vamos em primeiro lugar identificar alguns pontos que emergem da literatura e que para nós se revelaram como essenciais na compreensão e implementação da análise narrativa neste trabalho, após o que faremos uma ligação entre a análise narrativa e a investigação-ação.

Martin Cortazzi (1993), no seu livro Narrative Analysis argumenta que o uso de narrativas dos professores - “estórias dos professores sobre as suas próprias experiências” (p. 5) – tem sido visto como central no estudo do pensamento dos professores, sua cultura e comportamento. Todo o seu trabalho é fundado no uso da narrativa para melhor conhecer os professores (seus pensamentos e atividades na sua multidimensionalidade), bem como o ensino (sistemas educacionais, reformas curriculares e prática em sala de aula).

Também Michael Connelly e Jean Clandinin (1999) fazem um extenso uso das narrativas para o estudo da identidade dos professores e da sua satisfação/insatisfação com o seu trabalho. “Estes assuntos”, adiantam os autores, “estão no centro (…) da teoria, política e prática da mudança e melhoria da escola” (id., p. 100). De acordo com Connelly et al. (1999) a mudança da escola é interpretada de acordo com a criação de novas estórias através das quais a escola passa a viver, ou pela sustentação de estórias pelas quais a escola já vive; em particular, a identidade do professor é relacionada com a muito referida resistência à mudança, sendo aquela identificada com a permanência ou introdução de novas estórias pelas quais os professores vivem.

Esta ideia de estórias constitutivas da identidade dos professores (ou das escolas) presente em Connelly et al. (ibid.) é também encontrada em Catherine Riessman (2008). Como afirma:

Enquanto as estórias pessoais prevalecem certamente na vida contemporânea, refletindo e produzindo o culto do “eu” como um projeto na modernidade, a narrativa tem uma vida robusta além do indivíduo. Assim como as pessoas constroem estórias da experiência [vivida], também (…) comunidades, nações, governos e organizações constroem narrativas preferidas sobre elas próprias. (p. 7)

Riessman (ibid.) – que usa os termos estória e narrativa de modo indistinto tal como o faz, por exemplo, Donald Polkinghorne (1988, 1995), coloca mesmo a hipótese do grande desenvolvimento que as narrativas conhecem nas ciências sociais, ter origem

78 em “preocupações contemporâneas com a identidade.” (ibid.) De facto, como afirma, as identidades podem ser “construídas e desconstruídas, aceites ou contestadas e mesmo representadas para audiências” (id., ibid.), desempenhando a narrativa o processo pelo qual os indivíduos (ou grupos ou organizações) constroem e reconstroem a sua identidade.

Entretanto vários autores colocam a ênfase dos seus trabalhos na relação entre a narrativa e a investigação-ação (Brown & Jones, 2001; Elliott, 2007; McNiff & Whitehead, 2002; McNiff, 2007; Pushor & Clandinin, 2009) enquanto, por exemplo, Elliot Mishler (1986) estuda a narrativa e a investigação narrativa no contexto da entrevista como metodologia em ciências sociais e Nancy Zeller (1995) e Robert Yin (2014) referem o uso da narrativa em estudos de caso. Ou seja, vemos a narrativa em interação com métodos ou estratégias de investigação (entrevistas), ou metodologias de investigação em educação (investigação-ação e estudos de caso), pelo que a narrativa entrou já num diálogo profícuo com outras tradições investigativas em educação constituindo-se assim como uma abordagem de que nos apropriámos.

Orientados pelo trabalho de Dewey sobre a experiência, Clandinin e Connelly (1994, 2000, pp. 48–52) conceptualizam a investigação narrativa num quadro tridimensional de interação, continuidade e situação. A interação, um primeiro eixo do espaço da investigação narrativa, tem em simultâneo a dimensão pessoal e social; a continuidade, o segundo eixo, comporta as dimensões passado, presente e futuro; a situação, o terceiro eixo da investigação narrativa, comporta o local, a cena. Ora esta conceptualização permitiu o desenvolvimento da investigação narrativa em quatro direções: para o interior (e.g., sentimentos, esperanças) e para o exterior (condições de existência, cena) no eixo da interação; para trás e para a frente no tempo trabalhando no eixo continuidade. A cena, o local passou a autonomizar-se mais tarde no trabalho dos autores.

Donald Polkinghorne (1988, 1995) aborda a narrativa sob outro olhar, o que nos permitiu formar um quadro mais rico onde desenvolvemos a investigação. De acordo com Polkinghorne (1988, p. 135), a “narrativa é a estrutura discursiva na qual a ação humana recebe a sua forma e através da qual adquire significado”, enquanto a análise narrativa é o “processo através do qual o investigador organiza os dados num relato coerente” (organizes the data elements into a coherent development account) (Polkinghorne, 1995, p. 15). Polkinghorne (1995) distingue dois tipos de investigação narrativa, a saber: a análise de narrativas (com a preposição de), em que os trabalhos têm como dados as próprias narrativas e a análise narrativa (sem preposição de). Um bom exemplo do primeiro tipo de investigação são os trabalhos de Connely e Clandinin (1999) sobre as narrativas dos professores na primeira parte do livro destes autores; já

79 a análise narrativa pode encontrar um exemplo no trabalho de Jean McNiff (2007). De acordo com Polkinghorne (1995):

A análise narrativa relaciona acontecimentos e ações uns com os outros configurando- os como cooperantes para o desenrolar do enredo. A estória constituída pela integração narrativa permite a incorporação das noções de propósito e escolha humanas bem como de acontecimentos casuais, temperamentos e pressões envolventes. O resultado da análise narrativa é uma explicação que é retrospetiva, ligando acontecimentos passados de modo a explicar como um resultado final poderá ter emergido. (p. 16) (ênfase nossa) Esta explicação de índole retrospetiva que organiza e dá sentido aos acontecimentos “envolve um movimento recursivo dos dados para um enredo temático emergente“ (id., ibid.). À medida que este enredo é construído, os acontecimentos cruciais para o desfecho da estória tornam-se evidentes: é este enredo em construção que informa o investigador sobre que dados são relevantes, do conjunto de todos os dados, para constarem da narrativa final. Em particular, adianta Polkinghorne (1995) “elementos que não contradizem o enredo mas que não são pertinentes para o seu desenvolvimento” (p. 16), não tomam lugar na narrativa, num processo que é conhecido por suavização da narrativa (narrative smoothing). Como afirma o autor, a experiência humana não combina com uma estória “cuidadosamente construída” e “congruente”, constituindo-se antes através de acontecimentos estranhos ou inabituais e de tarefas diárias assim como de múltiplos projetos individuais e coletivos (Polkinghorne, 1995, p. 16). Deste modo, “o próprio ato de trazer esses acontecimentos à linguagem impõe um nível mais elevado de ordem [sobre os acontecimentos] do que eles têm no fluxo da experiência diária.” (id., ibid.). Enquanto o “movimento para a configuração narrativa” leva a um nível superior de organização das experiências vividas, a estória final deve ser consistente com os dados ao mesmo tempo que lhes dá um significado que os dados, por si só não, possuem. Polkinghorne (1988) fundamenta extensamente esta sua abordagem à investigação narrativa, na qual, “o produto estorizado é uma gestalt temporal no qual o significado de cada parte é dado através das suas relações recíprocas com todo o enredo e as outras partes.” (p. 18)

Já Riessman (2008) aponta a análise narrativa como referindo uma família de métodos para a interpretação de textos que têm em comum a forma estória, parecendo apontar para o que Polkinghorne (1995) defende como um tipo de análise narrativa, a saber, a análise de narrativas (com a preposição “de”). Apesar de nos situarmos na análise narrativa (sem a preposição “de”) o trabalho de Catherine Riessman (2008) aponta importantes direções para a configuração de uma análise narrativa.

80 Segundo a autora, a investigação narrativa está fundada no particular, estudando o desenvolvimento de atores específicos em lugares e tempos específicos. Esta atenção ao caso, ao concreto, é muito valorizada na análise de Riessman (2008) à investigação narrativa. Por seu lado o investigador narrativo “interroga intenções e linguagem – como e porquê os incidentes são estoricizados e não simplesmente o conteúdo ao qual a linguagem refere” (Riessman, 2008, p. 11). Em vários autores, já havíamos deparado com esta atenção, e consequente relevância do processo de construção da própria narrativa (Clandinin & Connelly, 2000; Connelly & Clandinin, 1999; Polkinghorne, 1988), mas com Riessman (2008) o particular, o caso, tem um papel fundamental.