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No § 2.1 explorámos vários caminhos que fundamentam a nossa investigações para uma humanização da educação em ciências, a saber, Natureza da Ciência, Literacia Científica e ensino por inquiry.

Procuramos, de seguida, encontrar e analisar argumentos oriundos de áreas diversas do conhecimento que originaram ‒ ou pretenderam sustentar ‒ propostas curriculares de humanização da educação e de concetualização da ciência como cultura. Estes argumentos reforçam o caminho percorrido pelas investigações em educação, em filosofia e em história da ciência em torno da NC, da LC e do inquiry como constructos culturalmente relevantes.

31 Com raízes na cultura portuguesa existem alguns pensadores que problematizaram o ensino humanizado da ciência e o ensino com HFC. Vitorino Magalhães Godinho afirma que “para compreender o processo do conhecimento importa ter em conta a evolução da ciência como desenvolvimento de ideias e como parte do conjunto das relações humanas” (Godinho, 1971a, p. 224). E um pouco mais à frente acrescenta:

É útil, afigura-se-me, iluminar a mútua conexão da ciência, da filosofia e da história da ciência: de uma filosofia que não seja escolástica estéril ou retórica desordenada, de uma história da ciência que veja as ideias e não as datas, de uma ciência viva e profundamente humana. [sublinhado nosso] (p.224)

Vemos em Magalhães Godinho uma preocupação profunda com o estado do ensino em Portugal, mas, em particular, com uma ênfase interessante na HFC: “a História da Ciência e do pensamento científico não merece qualquer atenção nos curricula oficiais, secundários ou ditos superiores.” (Godinho, 1971b, p. XXIII).

Já António Sérgio apela ao abandono da pedagogia que classifica de dogmática, desumana e passiva. Dogmática, diz Sérgio (2006) “por não apresentar com clareza aos jovens o motivo por que se adotou a conceção ensinada, quer dizer: como se chegou até ela” (p.93). Desumana “por não mostrar o esforço mental do cientista, o sacrifício, a canseira, a abnegação, a energia, a luta a que se sujeita para que se aceite a sua verdade” (ibid.). Passiva, “porque não revela aos alunos como se constrói a doutrina, isto é, porque não busca apontar-lhes o trabalho inventivo, a fantasia criadora de onde o saber promana. Porque diz que se descobre, e não que se cria a ciência” [sublinhado no original] (id., ibid.). Além do mais, como afirma Sérgio (2006) o progresso “exigiu sempre a polémica” necessária para combater o dogmatismo sempre à espreita, pelo que:

Conviria (...) combater o dogmatismo com delinear a história, ao menos, das mais célebres e importantes entre as conceções dos sábios, ligando-as às exigências do trabalho humano, quando por elas surgiram; ademais caracterizar as fases da investigação metódica, salientando o papel da congeminação criadora, ‒ dessa livre fantasia de onde brota a hipótese; e apresentar a ciência na sua realidade humana (...) jamais separando o saber científico da atividade-do-espírito que o vai criando (pp. 94- 95)

Armando de Castro autor da obra Teoria do Conhecimento Científico, no seguimento do pensamento marxista português, denuncia “As tendências utilitárias, pragmáticas (...) evidentes no ensino médio e superior do nosso país” (Castro, 1988, p.

32 235) acrescentando de seguida, que “um dos meios de a combater no plano pedagógico consiste em aliar o ensino teórico e prático ao ensino (...) através da história crítica de cada disciplina” (id., ibid.). E sublinha, no mesmo trabalho:

No próprio plano educativo um ensino das ciências a-histórico, como sublinhava já então Paul Langevin, perde interesse para os estudantes que o procuram adquirir, tornando-se frio, estático, e levando à convicção de que a ciência é uma atividade morta, um conjunto de posições definitivas e insuperáveis. [Essa apresentação a- histórica], além de mecanizar uma atividade que, pela sua própria natureza deve ser criadora, introduz distorções na compreensão de diversas teorias científicas. (pp. 235- 236)

Armando de Castro (1988) adianta que “distinguir a atividade ideológica [ou pré científica] ou a atividade filosófica da atividade científica é uma tarefa fundamental, quer nas ciências do homem [por razões que apontou anteriormente] quer inclusive nas ciências do mundo inorgânico e biológico.” Também nesta tarefa a “história das ciências não se pode pôr de lado, pois ministra ensinamentos válidos ao apontar para as repetidas intromissões de um e de outro plano no 'saber científico'; deste modo, [a história da ciência] participa ativamente no esforço de purificar estes diversos planos” (ibid.).

Importa determo-nos um pouco nesta reflexão. Veja-se como para Armando de Castro, a atividade científica não está isenta de “contaminações” vindas tanto do conhecimento comum, não científico – apontando assim para uma dimensão pessoal da atividade científica que encontramos na epistemologia de Holton nos themata, crenças muito pessoais que 'dirigem' as escolhas que o cientista tem de realizar, mas também “contaminações” eminentemente sociais na construção do conhecimento científico, pois o “conhecimento comum” é, também, um conhecimento social, ou socialmente partilhado. De facto, Castro (ibid., p.232) explicita esta ideia ao defender que a “formulação de problemas científicos nasce da lógica interna do desenvolvimento disciplinar combinada com as exigências do meio social em que esta problemática surge” (sublinhado nosso), formulação, afirmamos nós, com expressão clara na filosofia da ciência de Gerald Holton.

Questões levantadas por esta problematização

É necessário colocarmos estas problematizações no contexto de um país periférico e com 40 anos de ditadura fascista, e onde a influência predominante nos meios intelectuais, tanto progressistas como conservadores, era a cultura francesa. No entanto, como veremos, é do meio anglo-saxónico que provêm as principais (as mais

33 férteis, sem dúvida) forças motrizes de mudança curricular para um ensino humanista. Mas estes condicionantes não devem conduzir-nos a uma ação irrefletida de desvalorização destes contributos.

Profundamente inseridos na realidade portuguesa, estes apelos a um ensino da ciência humanizado (de alcance curricular certamente quase nulo), merecem ser objeto de investigação. Nomeadamente: a) as propostas teóricas avançadas com eventual utilidade para a epistemologia da educação em ciências, onde relevam as de Armando de Castro e Magalhães Godinho; b) as propostas avançadas para a integração da HFC no ensino da ciência no contexto educativo português e oriundas deste; c) propostas didáticas relevantes onde talvez António Sérgio tenha aqui um papel mais significativo.

2.4.2 A humanização do ensino da ciência

A humanização do ensino da ciência constitui-se como a “mais generalizada” fonte de propostas curriculares alternativas ao ensino tradicional da ciência com o objetivo de preparar cidadãos que, de modo racional e crítico, vivam a sociedade imersa na ciência e pela ciência e tecnologia (Aikenhead, 2007, p. 881). Solbes e Traver (2003), após uma descrição e breve análise das causas prováveis da crise que o ensino da ciência atravessa, avançam com a exposição de duas linhas de propostas curriculares com o intuito preciso de “evitar a crise atual da educação em ciência” (p.704). Uma, remontando a Conant, prosseguindo com Holton e com o Project Physics Course e reforçada com a contribuição de Schwab e das propostas oriundas do BSCS defenderia a introdução da HFC, mas estaria mais ligada à história interna da ciência. Outra, ligada aos movimentos CTS, colocaria a ênfase na história externa da ciência.

Aikenhead (2007), por seu turno, enquadra as propostas CTS como resultantes tanto da “interação da ciência e dos cientistas com questões sociais e institucionais externas à comunidade científica” (p.884), como da “interação dos cientistas e dos seus valores comunitários, epistémicos e ontológicos internos à comunidade científica” (id., ibid.) (sublinhado no original).

De facto, dos problemas levantados pela Big Science que surgiram numa janela temporal relativamente larga (relação Estado-ciência; Bomba atómica, chuvas ácidas, questões energéticas e ambientais, escassez de recursos, aquecimento global, questões éticas da investigação em biologia) foram poucos ou quase nenhuns os que motivaram as primeiras propostas curriculares para um ensino humanizado. A preocupação de Conant em que cada cidadão compreenda o que denominou de “tática e estratégia da ciência” (Holton, 2003b) liga-se à sua motivação de tom muito conservador, pela coesão social da América e “preservação da nossa civilização”

34 (Holton, ibid.). Seria dos fins da década de 60 até à década de 80 que o eclodir dos movimentos ecologistas e pacifistas, por exemplo, deram expressão pública a uma realidade que já vinha percorrendo a atividade científica: a relação CTS.

Assim seríamos tentados a ver na divisão de Solbes e Traver (2003) uma proposta heurística útil, caso não víssemos que as preocupações de Conant são, em todos os aspetos relevantes, preocupações CTS: preocupações com a influência da ciência na sociedade e desta na ciência; preocupações sobre a “sobrevivência da nossa civilização”: bomba atómica, questões éticas e morais, etc.

Deste modo não vislumbramos a necessidade de sustentar as propostas CTS num quadro conceptual diferente do que levou ao emergir do Project Physics Course. Mas a ênfase, essa sim, foi mudando; os slogans foram-se alterando. Desde a década de 70 que a perspetiva humanista do ensino das ciências tem sido identificada com os curricula CTS (Aikenhead, 2007, p. 882).

Ora, ainda que seja esmagadora a evidência sobre o fracasso educacional do ensino tradicional em ciência (e.g., Aikenhead, 2007; Solbes & Traver, 2003) a resistência à mudança é enorme (Aikenhead, 2007; Chagas, 2000; Chubin, 2000). Como Chubin (2000) afirma no seu artigo intitulado Reculturing Science, que foi buscar à “muito ouvida frase” reinventing government, “Como muitas exortações, esta passa pelos lábios sem demasiado esforço. Fazer ocorrer mudanças é outra coisa. Mas elas devem acontecer. (...) [os hábitos], no entanto, são muito difíceis de quebrar” (p. 259).

Ciência como cultura

A investigação realizada sobre a transformação do ensino tradicional, educacionalmente um fracasso mas com elevado estatuto entre os professores (e.g., Aikenhead, 2007) leva-nos a considerar a categoria de relevância curricular. Aikenhead (2007) analisa a relevância olhando para 'quem decide' e adota sete categorias. 'Ciência como cultura' surge como uma categoria de relevância mais global capaz de servir de chapéu às outras categorias.

Já Douglas Roberts (1982), desenvolvendo o conceito de “ênfase curricular”, encontra a ciência como cultura – Self as explainer, como Roberts (1982) denomina esta ênfase curricular ‒ como uma das sete “visões alternativas de porquê os alunos devem aprender ciência” (p. 243). Para Roberts (1982):

Uma ênfase curricular em educação em ciências é um conjunto coerente de mensagens para o estudante sobre a ciência (mais do que de ciência). Tais mensagens constituem objetivos que vão além da aprendizagem de factos, princípios, leis e teorias dos próprios

35 conteúdos – objetivos que fornecem respostas à questão dos alunos: ‘Porque estou a aprender isto?’ (p. 245)

A ênfase curricular Self as explainer, transmite uma mensagem em que a ciência é uma instituição cultural e uma “expressão de uma das muitas capacidades do Homem.” (id, ibid.). Para que a história da ciência10 possa veicular esta estória da ciência

como instituição cultural, torna-se necessário insuflar vida naquela que é “provavelmente a mais comum imagem da história da ciência”: um seco catálogo de “quem ‒ fez ‒ o quê ‒ quando” (id., Ibid.). Assim, “revivificar a história da ciência é examinar o crescimento e mudança nas ideias científicas como função dos propósitos humanos e das preocupações intelectuais e culturais das situações particulares nas quais as ideias foram desenvolvidas e refinadas.” (p. 248)

Deste modo, conclui Roberts (1982, p. 248), o aluno recebe a mensagem de que a “humanidade da ciência é a sua própria humanidade”, pois também ele é um “explicador de acontecimentos, com os seus objetivos pessoais e o seu lugar próprio numa rede de preocupações intelectuais e culturais”. Para Roberts (1982), a ênfase curricular Self as explainer encontra a sua realização nos trabalhos didáticos de James Bryant Conant e do Project Physics.

Aikenhead (1998, p. 86) afirma que “uma perspetiva cultural trata o currículo de ciências como um artefacto cultural e carateriza a típica sala de aula de ciências como o palco de muitos eventos interculturais.” Mais, uma perspetiva cultural do currículo:

permite um relato fecundo, intuitivo e holístico das experiências vividas pelos alunos numa sala de aula de ciências, considerando essas experiências em função do cruzamento de fronteiras culturais entre subculturas como as dos pares, família, média e da escola, para a subcultura da ciência e da ciência escolar (p. 86)

Glen Aikenhead (1996, 1998) carateriza a aprendizagem de ciências na escola como uma aquisição cultural, onde cultura – numa definição que se deve a Geertz, “significa um sistema ordenado de significados e símbolos, em função dos quais as interações sociais se desenvolvem” (Aikenhead, 1996, p. 7)11. Assim, o ensino-

aprendizagem das ciências é, para Aikenhead (1996), um cruzamento de fronteiras entre subculturas pelos alunos (aprendizagem) e a inculturação na subcultura da ciência

10 Douglas Roberts expressa a ideia, comum na altura, da HC como uma história das ideias em

ciência. Ainda que esta perceção da HC esteja há muito ultrapassada, não retira força ao argumento.

11 Aikenhead (1996) elabora sobre várias possíveis definições de cultura e acaba por adotar uma

especificação da definição referida, devida a Phelan, a saber: cultura como as “normas, valores, crenças, expetativas e ações convencionadas de um grupo”. (p. 7)

36 escolar dos alunos por parte dos professores (ensino).

Vimos assim, alguns trabalhos, dos muitos que a literatura em educação tem produzido (Gaskell, 2003; Krugly-Smolska, 1996; Solomon, 1998, 1999; Stanley & Brickhouse, 1994) e que refletiram sobre como o entendimento da ciência como uma cultura determina a estrutura curricular.

Também a sociologia da ciência, assim como trabalhos na fronteira da história com a filosofia da ciência, têm uma vasta obra onde a atividade científica emerge como uma atividade cultural, i.e., geradora de significados partilhados, fornecedora de contextos criadores e que é transmitida e reforçada geracionalmente (Latour, 1987; Shapin & Shaffer, 1984; Ziman, 2000).

Mas fora destas investigações permanece o conteúdo disciplinar como uma cultura. Ou seja, o conteúdo disciplinar, não apenas como parte constituinte de uma cultura, mas ele próprio uma cultura. Nesta vertente, os trabalhos que relevam o dialogismo e a pluralidade são promotores de uma nova visão disciplinar. Como afirma Igal Galili (2012a)12:

Recentemente, resultados oriundos da investigação em educação em ciências mudaram substancialmente os curricula de ciências. O discurso da educação em física tem proporcionado novas perspetivas fundamentais, entre as quais os aspetos da pluralidade e do dialogismo podem ser tomadas como emblemáticos para o nosso tempo. (p. 1) De acordo com Galili (2012a) e Tseitlin e Galili (2005, 2006), uma teoria em física poderá ser modelada como sendo constituída por: a) um núcleo, que incorpora os princípios fundamentais (a teoria paradigmática, as suas leis fundamentais e conceitos de natureza ontológica e epistémica); b) um corpo, que incorpora várias aplicações do núcleo (problemas resolvidos, fenómenos explicados, etc.); c) uma periferia, que inclui todos os tipos de oponentes ao núcleo (os seus rivais do passado, que se constituem como predecessores históricos, do presente, que se constituem como ideias alternativas em ciência e conceções alternativas dos alunos, e do futuro, que incluem as teorias que, resultante do desenvolvimento da física, irão ultrapassar as que no presente constituem o núcleo.)

Como salienta Igal Galili (2012a), em geral, os curricula de física estão restritos ao núcleo e corpo: a periferia é deixada de fora. Ora “um aspeto importante da disciplina como cultura (discipline-culture) é uma adequada representação das relações entre as

12 Os trabalhos de Galili e Tseitlin referem explicitamente a área disciplinar da física. No entanto

as principais conclusões dos seus trabalhos são extensíveis às outras áreas do conhecimento científico (Galili, 2012a, 2012b; Tseitlin & Galili, 2005, 2006).

37 teorias que foram sendo substituídas no curso da história.” (p. 4). De facto, como salienta Galili (2012a)

Os principais conceitos não desapareceram ou apareceram apenas para provocar uma revolução imediata. Eles são preservados na periferia, mantendo um discurso com as conceções rivais. A apresentação deste debate na educação introduz pluralidade ao conhecimento de conteúdo da educação. O foco de tal perspetiva histórica está na ciência através da troca de conceitos e desenvolvimento de ideias pelo discurso, em lugar de reter um catálogo de nomes, datas, perspetivas históricas ou filosóficas. (p. 5) E mais à frente, os curricula orientados segundo esta perspetiva de “dialogismo concetual”, introduzem este mesmo valor na educação em ciências “pela inclusão da polifonia de ideias e interpretações relevantes” – sem eliminar a avaliação do conhecimento em correto ou incorreto de acordo com a perspetiva atualmente aceite.(I. Galili, 2012a, p. 11).

Tseitlin e Galili (2005) avançam decididamente na conceptualização do conhecimento disciplinar como uma cultura quando afirmam:

Estudar física começa a se transformar num estudo de uma cultura. O que nos torna mais próximos de uma cultura é a presença do ‘Outro’ (outro conhecimento). O que nos permite falar de ensinar física como uma Cultura será que não apresentaremos a física apenas como Conhecimento, mas de igual modo como um espaço de afirmações (visões, teorias) de físicos, um discurso, ou seja, como um Texto. (p. 241)

Estas investigações, que conceptualizam a ciência como uma cultura com origem na educação em ciências (Aikenhead, 1996, 2007; Brickhouse & Stanley, 1995; Holton, 2014; Solomon, 1994, 1998; Stanley & Brickhouse, 1994, 1995) e na sociologia da ciência (Latour, 1987; Ziman, 2000), tiveram, com os trabalhos de Michael Tseitlin e de Igal Galili que discutimos acima, mais um passo para a perceção da ciência e do conhecimento científico não apenas como pertencendo a uma cultura, mas como sendo eles mesmo uma cultura (Galili, 2012a, 2012b; Tseitlin & Galili, 2005, 2006).

Esta construção teórica, leva a que a introdução da HFC no currículo de uma área disciplinar, não possa mais ser vista como um acréscimo de conteúdo que procura dar mais relevância à educação em ciências ‒ entre muitos outros objetivos que podem ser aduzidos ‒, mas como uma necessidade que releva da conceção disciplinar ciência como cultura.

Devemos, no entanto, e antes de fechar esta discussão, aludir a alguns trabalhos no âmbito da filosofia da ciência que enriquecem esta visão da ciência como cultura.

38 Na construção de Karl Popper dos Três Mundos, os produtos, processos e ideias da ciência ocupam o mesmo mundo dos que, na linguagem comum, designamos como produtos culturais. “Exemplos de objetos do mundo 3 são: A Constituição Americana; ou The Tempest de Sheakespeare; ou o seu Hamlet; ou a Quinta sinfonia de Bethoven; ou a teoria da gravitação de Newton” (Popper, 1978, p. 145), sendo que estes objetos que habitam o Mundo 3 “tais como teorias jogam um papel tremendo na mudança do mundo 1” (ibid., p.164). Já para Michael Polanyi, na análise de Fischer e Mandell, (2009):

As várias tradições e convenções que influenciam e por vezes conduzem as interações sociais inerentes ao inquérito científico não são imediatamente visíveis. (...) [Polanyi] identificou um processo de conhecimento tácito (...) como um repertório de conhecimentos e crenças que perpassa 'a procura tradicional do inquérito científico', constituindo o próprio sustentáculo do qual o conhecimento objetivo adquire tanto a sua possibilidade como o seu significado.

Nestas influências não visíveis podemos vislumbrar as influências culturais pessoais e comunitárias. Também em Holton (1973), a terceira dimensão thematica possui uma forte determinação cultural.

Gerald Holton, no entanto, avança de modo mais audacioso na problematização da ciência como cultura e analisa a questão sob outro ângulo. Num seu ensaio, inicialmente escrito em 1963 e significativamente intitulado Physics and Culture: Criteria for curricula design, Holton (ibid.) afirma:

As muito discutidas clivagens no conhecimento [entre ciência e cultura] são demasiadas vezes o resultado de definições erróneas. A controvérsia entre T. S. Eliot e os seus críticos, ou, mais recentemente, entre Snow e Leavis, serve para nos lembrar o quão necessário é, para cada geração, repensar o que é 'cultura' nos seus múltiplos sentidos, o que faz a adesão de um povo a uma cultura, e que forças e mecanismos atuam na sua transformação. A esta luz o tópico importante não é até que ponto a ciência é uma atividade separada de outras, mas antes como podemos definir e transmitir a cultura de tal modo que a ciência seja vista como uma componente válida da nossa cultura (pp. 463-464)

Em José António Marina (1995) encontramos uma bela descrição dos “propósitos” da ciência. Esta, a ciência, “propõe-se esclarecer as coisas, e esclarecê- las significa deixar que se perceba a sua bela luminosidade” (p.71). Adiantando ainda: O astrónomo não deve cantar as glórias da criação, antes buscar as leis que regem o girar dos astros, mas não seria de mais que comunicasse, ao mesmo tempo que a fórmula, a exaltação que produziu nele o conhecimento da exata, límpida e precisa

39 música das esferas celestiais. (p.71)

O espanto perante uma obra de Fauré, um livro de José Cardoso Pires, ou uma pintura de Malevich não é diferente da exaltação referida por António Marina.

Por fim, Stephen Jay Gould (2004) é perentório em defender que embora o “suposto” conflito entre a ciência e a religião tenha merecido mais destaque, ele é tão antigo e profundo como aquele que contesta as interações da ciência com as artes e as humanidades (idem, p.18). Assim afirma:

Por mais logicamente sólidas e por mais sancionadas por uma longa persistência histórica [que surjam], as nossas taxonomias das disciplinas humanas surgem por razões largamente arbitrárias e contingentes de normas sociais e práticas universitárias