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A literatura em educação identifica várias possibilidades de uso da HFC na educação em ciência. Filomena Amador (2010, pp. 11–12), por exemplo, num processo de sistematização, refere aquilo que denomina de “quatro possíveis vias de utilização de HC em processos de desenho curricular”. Em particular refere o “nível mais direto da prática docente” onde caberia:

i) Construir materiais e estratégias didáticas, suportados no conhecimento da evolução sincrónica e diacrónica de teorias e da influência que nesta evolução podem desempenhar os fatores sociais (…) ii) Organizar e desenhar currículos científicos. (…) iii) Ajudar a identificar conceções alternativas, presentes nos alunos, que podem ser pontos de ancoragem para novas aprendizagens ou obstáculos à aprendizagem. (p. 11) No entanto, segundo Amador (ibid.), este nível depende, ou está fundado em uma outra possível via de utilização de HFC no ensino, a saber, o nível da fundamentação epistemológica:

i) Identificar as principais operações mentais necessárias para a construção do conhecimento em determinadas domínios, isto é, o tipo de explicações científicas usadas, a sua caracterização e exemplificação. ii) Reconhecer e interpretar processos de evolução teórica no decurso da história, tipificando e exemplificando diversas situações. iii) Permitir contextualizar a produção do conhecimento científico e deste modo não só humanizá-lo, como também chamar a atenção para os inúmeros aspetos socioeconómicos, políticos, religiosos, etc., que influenciam a prática científica. iv)

93 Diferenciar explicações científicas (ciência) de explicações não científicas (pseudociência). (Sublinhado nosso) (p. 11)

Surge aqui a ideia de humanização do conhecimento científico como resultado de uma contextualização da sua produção. Foi no entanto no trabalho de Wang e Marsh (2002), com o qual contatámos no início do curso de formação avançada integrante do presente trabalho, que encontrámos a fonte para o nosso trabalho investigativo: “O que significa humanizar a ciência? Este estudo reflete a visão que humanizar não é ‘torná- la engraçada’ mas antes fazê-la [mostrá-la como?] um empreendimento humano”, afirmam Wang e Marsh (2002, p. 182) nas conclusões.

A escolha do artigo para a realização do trabalho de recensão foi nossa, pelo que aqui, no próprio processo de seleção, encontramos uma vontade de desenvolver um processo investigativo usando a HFC. Mais: mostra que na altura já reconhecíamos a Science & Education como recurso. Recordemos o título na sua formulação original: Science Instruction with a Humanistic Twist: Teachers' Perception and Practice in Using the History of Science in Their Classrooms. Esta vontade, que ecoou com a leitura crítica deste trabalho foi, quase em simultâneo, alimentada tanto pela possibilidade como pela necessidade da sua realização.

De facto, começámos de imediato a tomar contato com os trabalhos publicados na Science & Education, onde o artigo de Wang e Marsh (2002) havia sido publicado; com a organização International History, Pilosophy and Science Teaching Group [IHPST] – que nos facilitou o desenvolvimento do sentimento de pertença a uma comunidade ‒ e com o projeto, então em desenvolvimento, History and Philosophy in Science Teaching [HIPST] com o qual travámos conhecimento sensivelmente na mesma altura através do artigo de Dietmar Höttecke, Henke e Riess (2012) que aparece primeiro online em dezembro de 2010.

O projeto HIPST tinha como objetivos gerais (IHPST, 2014):

Aumentar a inclusão da história e filosofia da ciência na educação em ciência em benefício da literacia científica; melhorar estratégias para o desenvolvimento e implementação de materiais relevantes em cada domínio, estratégias de ensino e aprendizagem na prática educacional; reforçar a cooperação e estabelecer uma infraestrutura permanente de uma rede sustentável de todos os parceiros envolvidos no campo da literacia científica e do conhecimento público da ciência (escolas, museus, universidades.) (sublinhado no original)

Na mesma altura, a Revista de Educação no seu volume XVII de 2010 lança um número temático:

94 Dedicado totalmente à História e Filosofia das Ciências apresentando um conjunto de artigos emergentes do Projeto HIPST – História e Filosofia no Ensino da Ciência – financiado pela CE através do 7º Programa Quadro e que visava a promoção da educação científica, da compreensão pública da ciência e da relação entre ciência, tecnologia e sociedade (Editorial)

Este conjunto de fatores sublinhou em nós a possibilidade de desenvolver um trabalho investigativo no âmbito da didática das ciências com o uso da HFC.

Se a vontade e a possibilidade estavam a reforçar-se mutuamente e a abrir caminho à construção de um projeto pessoal, a necessidade de tal projeto teria de ser sustentada.

Um primeiro passo na consciencialização dessa necessidade foi enformado pelos próprios trabalhos de investigação, grupos e revistas que temos vindo a mencionar. Eles davam conta de esforços de décadas realizados por educadores, filósofos e historiadores da ciência para “humanizar a educação em ciência” (Holton, 2003a; Matthews, 1994; Sequeira & Leite, 1988). E estes esforços não nos eram estranhos. O ensino que experienciámos na formação inicial era exemplificativo do ensino que não queríamos: muito fundado na inculturação paradigmática de Thomas Kuhn (1996) com introdução de conceitos, seu uso na resolução de problemas, introdução de novos conceitos que incorporam o anterior como caso particular, novamente resolução de problemas, relação estrutural entre os conceitos (Teoria), resolução de problemas. A par deste processo existia a iniciação ao trabalho laboratorial.

Thomas Kuhn (1996) exemplifica este processo:

Se, por exemplo, o estudante da dinâmica Newtoniana alguma vez descobre o significado de termos como ‘força’, ‘espaço’ e ‘tempo’, ele consegue-o menos pelas definições por vezes úteis ainda que incompletas do seu texto [de apoio] do que por observar e participar na aplicação destes conceitos à solução de problemas. (sublinhado nosso) (p. 47)

Note-se a possibilidade, para Kuhn, de o estudante de dinâmica Newtoniana nunca vir a descobrir os significados dos referidos termos na teoria que está a aprender; está claro na passagem acima que o estudante pode resolver os problemas sem perceber os conceitos (Figura 12).

Também Paul Hewitt (1995) dava voz a este processo que ele próprio passou enquanto aluno:

Assim como nós podemos aprender a recitar poesia sem a compreender, e memorizar a tabela periódica sem nenhuma noção do que trata a química, os alunos podem aprender

95 a resolver problemas de física – não todos eles nem mesmo a maioria deles, mas os suficientes para fazerem o curso – sem a menor perceção dos conceitos subjacentes (p. 85)

Este ensino-aprendizagem, que tivemos na nossa formação inicial e que denominámos, aliás na sequência de vários autores (e.g. Sérgio, 2006), de transmissivo e descontextualizado ou de ensino tradicional, i.e., ensino da ciência na sua forma acabada, como um conjunto de conceitos, leis e teorias sem história e sem relação com a restante experiência educacional do aluno, é um processo que pode levar ao sucesso académico mas não ao aumento da literacia científica e do conhecimento sobre ciência (Hammer, 1989).

É mesmo problemático defender que este tipo de ensino pode levar a um melhor conhecimento de ciência, pois há uma ausência generalizada de reflexão epistemológica em sala de aula. De facto, hoje temos uma vasta literatura que suporta esta necessidade (Elby, 2001; Hammer & Elby, 2002; Kalman, 2009; Lising & Elby, 2005; Redish, Saul, & Steinberg, 1998).

Como refere Kalman (2009) “um problema maior na educação em ciências é levar os estudantes a mudarem a sua epistemologia sobre a aprendizagem de ciência” (p. 336), o que sob formas diversas é defendido por todos os autores acima referenciados, os quais certamente subscreveriam a afirmação de Facione (1990) segundo o qual “o coração da educação reside exatamente onde os defensores tradicionais de uma educação liberal sempre disseram que ele estava, no processo de inquiry, aprendizagem e pensamento e não na acumulação de capacidades e informações desconexas” (p. 1).

Mas se o que temos referido coloca em causa a possibilidade de aprender ciência para além de memorizar algoritmos que permitem a realização de um curso com sucesso, o ensino da ciência tem de igual modo como objetivo o ensino sobre ciência (Allchin, 2013; Cachapuz et al., 2002; S. Ferreira & Morais, 2010; Galvão, Reis, Freire, & Faria, 2011; Matthews, 1994; McComas & Olson, 2000). Ora, esta dimensão meta- científica que analisámos na nossa revisão da literatura está ausente no ensino

A Sofia recebeu um medalhão de ouro no natal. Querendo saber a massa do seu medalhão mas não tendo balança de precisão, mediu o seu volume numa proveta (0,85 cm3) e procurou

a massa volúmica do ouro numa tabela (ouro = 19,3 g/cm3). Qual é a massa do medalhão da

Sofia?

Figura 12. Típico problema paradigmático que surgiu num exame de uma UC que lecionámos em 2010/11.

96 transmissivo e descontextualizado31.

Prosseguindo um esforço de várias décadas na investigação em educação em Portugal, e que de certo modo acompanhou a própria institucionalização académica da educação em ciência e do seu campo específico da didática das ciências (Cachapuz, Paia, Gil-Pérez, Carrascosa, & Martínez-Terrades, 2001; Carvalho, 1988), um conjunto significativo de investigações tem analisado esta realidade na educação em ciência e proposto novas abordagens ao ensino-aprendizagem, com ênfase no ensino secundário e tanto em ambientes formais (Almeida, Figueiredo, & Galvão, 2012; Freire, Faria, Galvão, & Reis, 2013; Galvão, Reis, Freire, & Almeida, 2011; Galvão, Reis, Freire, & Faria, 2011; P. Reis & Galvão, 2004b) como não formais (Faria, Chagas, Machado, & Sousa, 2012; Faria, Pereira, & Chagas, 2012). Uma outra linha de investigação, paralela a esta, remete para a clarificação de conceitos usados em sala de aula, como força, massa ou energia (Coelho, 2007, 2009, 2010; Valente, 1999), ou mesmo para o fundamento de campos intradisciplinares, como a mecânica clássica (Coelho, 2012). Assim, o ensino da ciência (de ciência e sobre ciência) sofre de sérios problemas que estiveram presentes, também, na nossa formação de base. Procurámos complementar alguma insatisfação que sentíamos na altura com a leitura e o estudo autodidata de história da ciência; na altura uma HC que era uma “História das Ideias” em ciência.

Ainda que as aulas do Professor João Andrade e Silva se revelassem mais tarde fontes estimulantes de leitura e estudo, éramos então demasiado novos e estávamos demasiado enraizados no ensino tradicional, para captar todo o seu interesse. Mas eram aulas que, apesar disso, ecoavam em nós como fonte de humanidade na aprendizagem das ciências. Foi ainda no Anfiteatro Manual Valadares que o Professor João Sousa Lopes nos introduziu à longa tradição de ensino na Faculdade de Ciências de Lisboa, contextualizando a história atribulada e desafiante da Escola Politécnica. Estas referências de erudição e dissensão ressoaram com a nossa atividade cívica: as leituras de filosofia e história acompanharam o nosso percurso de vida.

Este processo de ensino-aprendizagem pelo qual passámos foi replicado na nossa própria prática pedagógica que era recente e naïve. Tirando algumas experiências anteriores sem continuidade, foi em 2008 que iniciámos de modo sistemático a prática docente.

De imediato reproduzimos o processo transmissivo e descontextualizado de ensino que era, aliás, o único que nos era familiar. A taxa de retenção era altíssima nas

31 Não no ensino transmissivo e descontextualizado em abstrato, pois pode haver tratamento

destes temas nesse tipo de ensino, mas no ensino que foi (e é) de facto exercido e que denominamos também de ensino tradicional.

97 UCs que começámos a lecionar. Também os outros colegas que lecionavam as mesmas UCs tinham taxas de reprovações igualmente altas. A nenhum de nós isso agradava, mas era, percebemos, uma imagem de marca daquelas unidades curriculares e, mais geralmente das UCs do domínio das ciências. Mas, contradição das contradições, o nível era elementar, introdutório. Como entender isto?

Na altura havia alguma perceção de que as coisas não podiam ser diferentes, a qual, aliás, era partilhada por mim: a ciência era um assunto difícil – nós quase sentíamos um orgulho em afirmar isto; era uma espécie de imagem de marca distintiva das ciências físicas ‒ os alunos, dizíamos, “vêm com uma preparação do ensino secundário a matemática que é fraca” e os resultados não poderiam ser diferentes. Mas nós esforçávamo-nos por “explicar melhor”, dávamos e disponibilizávamo-nos para tutorias mas os alunos ou não vinham ou se vinham acabavam por “aprender pouco” (memorizar pouco, diria agora). Nunca sentimos verdadeiramente que desempenhássemos um papel no assunto: estávamos ali para “dar a matéria” (Notemos aqui que a matéria que “dávamos” era a matéria recebida; não concebíamos nenhum trabalho sobre ela). E se os alunos não percebiam o sentido das relações matemáticas, dos algarismos significativos, da precisão e exatidão na medição e da própria resolução de problemas padrão de física elementar para a sua formação como educadores e professores do 1º e 2º CEB, o problema residia nos alunos pois o processo de aprendizagem de ciência era aquele.

Apenas processos administrativos, como o fim da nota mínima ou os efeitos dos processos de avaliação sobre o próprio desempenho docente vieram fazer com que parte significativa dos alunos que há anos não realizavam as UCs finalmente as realizassem com “sucesso”. Claro, como dissemos acima, sabemos agora de modo explícito e fundado o que sabíamos na altura por intuição: eles não aprenderam ciência.