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Até agora, temos utilizado o termo conhecimento supondo que ele é percebido de modo não problemático. No entanto, o nosso objetivo de analisar a evolução do conhecimento de conteúdo, processual e de contexto dos alunos exige que vejamos mais de perto os seus significados. Por outro lado, veremos que investigação em áreas diferentes confluem em algumas hipóteses relevantes relacionadas com o processo de ensino-aprendizagem. Por fim, iremos posicionar-nos epistemologicamente como professor-investigador, assunto que será reforçado quando abordarmos as nossas opções metodológicas no capítulo 3.

2.6.1 Uso do constructo conhecimento em educação

Vários autores têm procedido a uma análise do uso e significado da palavra ‘conhecimento’ em educação (Alexander & Judy, 1988; Alexander, Schallert, & Hare, 1991; Jong & Ferguson-Hessler, 1996). Aqui, vamos focar-nos na análise desenvolvida por Patricia Alexander, Schallert e Hare (1991). Como salientam:

Do uso indiferenciado de um constructo genérico denominado conhecimento em meados

do conhecimento) em várias áreas disciplinares. Estes ‘aspetos’ são simples frases, por vezes ligeiríssimas abstrações das afirmações dos alunos, que traduzem um conhecimento de conteúdo ou processual ou mesmo estratégico do aluno quando confrontado com determinada tarefa de ensino-aprendizagem. “Um corpo em repouso não exerce força” ou “Não existe força a não ser que exista movimento” são exemplos de aspetos do conhecimento sobre força. As facetas do conhecimento são mais específicas do conhecimento e portanto menos fundamentais que os p-prims.

55 dos anos setenta para uma crescente proliferação de termos fracamente especificados nos anos oitenta, os investigadores têm, pensamos, progredido para um ponto onde podem e devem começar a ser mais concretos e precisos no seu uso. (p. 316)

Neste sentido, e sem qualquer pretensão de normalizar o uso dos termos, mas sim de construir um quadro concetual de modo a permitir uma clarificação dos termos a partir do efetivo uso do termo ‘conhecimento’ na literatura em cognição e literacia, Alexander et al. (1991) começam por alertar que o quadro concetual emergente destacará inevitavelmente uma perspetiva estática, contrária à dinâmica que emergirá do conjunto, e avançam os seguintes pressupostos:

- Centram-se numa perspetiva individual do conhecimento, pois o interesse das autoras “reside em formas de conhecimento atribuídas a um aluno e na interface desse sistema de conhecimento com o mundo no qual o indivíduo funciona.” [sublinhado nosso] (id., p. 322);

- Preocuparam-se com as formas ou tipos24 de conhecimento, não com a sua ativação;

- Defendem que as formas do conhecimento são fluidas e dinâmicas. Como adiantam, “não apenas estas formas variam entre indivíduos, mas variam no interior dos próprios indivíduos, como consequência da pessoa, tarefa ou contexto.” (id., ibid.);

- Todas as formas de conhecimento são interativas: a presença, ou ativação de uma forma de conhecimento pode influenciar direta ou indiretamente qualquer outra;

- Cada uma das formas de conhecimento (conhecimento de conteúdo, conhecimento linguístico ou outro) pode conter todos os tipos de conhecimento: conhecimento declarativo, conhecimento processual e conhecimento condicional. Ou seja, como referem Alexander et al. (1991), quando sabemos alguma coisa sob alguma forma (conteúdo, linguístico, etc.), “podemos conhecer não apenas informação factual sobre [o que sabemos] (conhecimento declarativo), mas também como usar esse conhecimento em certos processos ou rotinas (conhecimento processual) (…), ou conhecer quando e onde esse conhecimento será aplicável (conhecimento condicional) ” (p. 323), adiantando que “estes três tipos de conhecimento são distintos; a aquisição de conhecimento em uma forma, não garante automática e imediatamente conhecimento nas outras formas [pois] é certamente possível saber ‘o quê’ de uma coisa, sem conhecer o ‘como’ ou o ‘quando’.” (ibid.)

A Figura 4 mostra o quadro organizador do constructo ‘conhecimento’ segundo Alexander et al. (1991). Os conhecimentos concetual e metacognitivo interagem entre si e numa situação ou tarefa particular, são ativados e usados. Estes conhecimentos interagem também com o conhecimento tácito, não consciente. O conhecimento

56 sociocultural é parte deste conhecimento tácito e orienta (em geral implicitamente) toda a experiência social do indivíduo.

A fluidez existe também entre tipos de conhecimento. Ainda que o conhecimento tácito permaneça em geral um conhecimento não consciente, sob determinadas circunstâncias, ou para tarefas específicas, pode tornar-se explicito e vice-versa.

O conhecimento concetual contém várias formas de conhecimento. É ao conhecimento disciplinar, que é definido (id., ibid.) como um subconjunto mais formal do conhecimento de domínio e que corresponde, e.g. ao conhecimento de uma disciplina académica, que nos referiremos aquando da discussão dos resultados sobre a evolução do conhecimento dos alunos.

Outras construções (e.g., Jong & Ferguson-Hessler, 1996) evidenciando a dinâmica do conhecimento individual, a fluidez entre os diversos planos constitutivos do conhecimento, a variação das formas de conhecimento com o contexto, tarefa e individuo, a importância da interação social e o papel central do discurso e da palavra no conhecimento concetual, são consistentes com este e outros estudos vindos da filosofia da ciência, da psicologia e da educação em ciências.

Olga Pombo (2000) começa o seu texto intitulado ‘comunicação e construção do conhecimento’ com uma citação do filósofo alemão do fim do século XVIII e início do século XIX,Schleiermacher:

O princípio primeiro de todo o esforço voltado para o conhecimento é o da comunicação e, dada a impossibilidade de produzir seja o que for, ainda que só para nós próprios, sem linguagem, a própria natureza formulou de forma inequívoca esse princípio. Por isso se terão que constituir, a partir do puro impulso de conhecimento, todas as relações necessárias para a realização funcional do conhecimento bem assim como diversas formas de comunicação e interação entre as várias atividades.

57 Conhecimento e comunicação estão assim intimamente ligados; “a comunicação é constitutiva do processo de construção do conhecimento” (id., ibid.). Alem do mais, se a escola surge com a ciência (Pombo, 2011), é porque as novas formas de utilização da linguagem que surgem na Grécia Antiga, “permitem constituir um discurso partilhável.”

Fritz Kubli (2005), analisando algumas implicações educacionais dos trabalhos de Bakhtin e Vygotsky, afirma que “ensinar é uma interação com a atividade mental do aluno, e a arena deste esforço para influenciar o estudante é o sistema partilhado de linguagem.” (p. 508) John Dewey e Vygotsky partilham uma visão semelhante da função

Construção Conhecimento Concetual Conhecimento Metacognitivo Conhecimento tácito Conhecimento sociocultural

Conhecimento Concetual

Conhecimento de conteúdo Conhecimento disciplinar Conhecimento discursivo

Conhecimento estrutura textual Conhecimento sintático

Conhecimento retórico Conhecimento

da palavra

Figura 4. O constructo “conhecimento” (em cima), e “conhecimento concetual”. Adaptado de Alexander et al. (1991)

58 da linguagem (Garrison, 1995; Sutinen, 2007). Numa outra linha, David Hammer (1995, p. 394) salienta a orientação para o conteúdo prevalecente no ensino inicial de física, ao mesmo tempo que é hoje aceite que existem “outros aspetos do conhecimento e raciocínio do estudante para além das suas conceções dos fenómenos físicos, tais como o entendimento deles mesmos e do seu lugar na sociedade, da escola, da física e de aulas de física.” Hammer (ibid.) defende assim que as crenças epistemológicas dos alunos devem ser objeto de trabalho de modo a que do ensino resulte melhores aprendizagens, para o que desenvolveu um quadro concetual para caraterizar “crenças tácitas sobre conhecimento e aprendizagem” (id., ibid.) dos alunos.

O construtivismo social que resulta destas posições, e que adotamos como posição epistemológica enquanto professor-investigador leva-nos a considerar o papel central da comunicação – logo da interação e do diálogo – na promoção de melhores aprendizagens. O conhecimento do aluno é assumido como uma estrutura complexa de planos implícitos, explícitos e de grande fluidez entre e dentro desses planos.

Vamos agora ver que o conhecimento disciplinar do professor não é dado a priori mas deve ser trabalhado, sendo transformado num conhecimento a ensinar. A este processo Chevallard chama de transposição didática (Chevallard & Joshua, 1991). Como dizem Chevallard e Johsua (ibid.):

Conhecimento de conteúdo que tenha sido designado como saber a ensinar, sofre uma série de mudanças adaptativas que o tornarão capaz de tomar lugar entre os objetos de aprendizagem. O ‘trabalho’ que de um objeto de saber a ensinar faz um objeto de ensino é chamado de transposição didática. [sublinhado no original] (p. 39)

A relação didática (Figura 5) estabelece-se entre três polos, nenhum dos quais não problemático.

Figura 5. Relação didática.

O conhecimento, expresso num dos vértices da relação didática, já foi objeto de uma transposição didática externa trabalhada a nível nacional e expressa nos

Professor

Conhecimento

59 programas e currículos (Chevallard & Joshua, 1991, pp. 23–25). Ainda assim, o professor detém uma larga margem de trabalho sobre esse conhecimento. É o trabalho realizado sobre esse conhecimento (ou a ausência de dele) que levam Tseilin e Galili (2006) a descrever do seguinte modo o ensino tradicional de física (remetemos também para a nossa discussão anterior sobre o prevalente caráter transmissivo do ensino em ciências):

A situação numa aula de ciência por vezes assemelha-se a uma sociedade primitiva, praticando um sistema de signos em lugar de conceitos; o curriculum de ciência torna- se fixo e sagrado. Desvios ao conjunto tradicional de tópicos disciplinares (…) são raros. O comum ensino em física, por exemplo, concentra-se no treino de problemas padrão, numa ordem fixa, sem compreensão concetual. (p. 411)

Chevallard (1991) é acompanhado por Piet Lijnse (1995, 2004) e Méheut e Psillos (2004) em considerar o conhecimento problemático25. Se lermos o ataque de

Lijnse (1995) à instrução tradicional em ciência parecemos estar a reconstruir a nossa citação anterior de Tseilin e Galili (ibid.):

Olhando mais de perto o ‘tradicional’ curriculum de ciência, podemos afirmar que em geral os conceitos ensinados são os conceitos básicos da ciência. A sequência na qual são ensinados reflete a sua estrutura ‘lógica’ de base. As situações nas quais estes conceitos são para ser aplicados são as usuais situações paradigmáticas ideais. (p. 190) Para contrariar este estado de coisas Lijnse (1995), ainda que defenda, e bem, que os curricula Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) introduziram contextos reais na aplicação de conceitos em lugar das situações ideais, também refere que estes curricula mantiveram a estrutura concetual e as sequências de ensino-aprendizagem imutáveis, pelo que, afirma, “uma mudança mais radical é necessária”. Nomeadamente, os professores devem-se envolver com os alunos num processo de ensino bottom-up, guiando os alunos numa atividade de ‘cientificização’ do seu mundo, “em lugar de tentarem transferir conhecimento científico como um produto acabado” (Lijnse, 1995, p. 160).

De acordo com Lijnse (1995), isto pode ser conseguido desenhando cuidadosamente tarefas de ensino com base numa investigação dos conhecimentos prévios dos alunos e do seu desenvolvimento em relação com o conjunto dessas tarefas. Isto implica assim um desenho cíclico de ensino e investigação, ou, como refere

25 Referimos aqui que não consideramos as abordagens referidas equivalentes entre si. De facto

são de algum modo diferentes nos métodos, motivações e estruturas. No entanto a sua consideração de conjunto fornece elementos teóricos de reforço mutuo. Ver também Duschl (2011).

60 Lijnse, o desenho de um processo deste tipo é necessariamente um processo empírico de “investigação e desenvolvimento” intimamente ligados, que chamou de development research.

Méheut e Psillos (2004, p. 521) integra o contributo de Piet Lijnse na linha de investigação em sequências de ensino aprendizagem (TLS26). Nestas, também o

conteúdo científico é considerado problemático sendo “trabalhado pelos investigadores de tal modo que origine representações inovadoras de conceitos científicos e suas relações, de acordo com os objetivos da instrução tal como percebida pelo investigador.” Assim, vamos adotar uma postura eclética e apenas dizer que estes quadros teóricos que consideram o conhecimento como um vértice da relação didática tão problemático como os outros, são seguidos no nosso trabalho.

26 O acrónimo TLS para sequências de ensino-aprendizagem, ou teaching-learning sequences,

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Capítulo 3

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Metodologia

No presente capítulo pretendemos enunciar, descrever e justificar vários aspetos referentes à opção metodológica do nosso estudo, a investigação-ação em educação. Pretendemos ainda mostrar a sua operacionalização nos diferentes momentos do estudo. A escolha da investigação-ação em educação resultou da necessidade de responder ao problema de investigação e questões de investigação:

Como a introdução da História e Filosofia das Ciências (HFC) nas práticas de ensino na formação inicial em ciência de educadores e professores do 1º e 2º Ciclo do Ensino Básico contribui para um ensino da ciência humanizado?

1. De que modo a HFC modificou a nossa posição teórica relativa ao ensino- aprendizagem e compromissos ontológicos e epistemológicos enquanto professor-investigador?

2. Quais os processos utilizados na transformação das práticas de ensino em direção a um ensino das ciências com HFC?

3. Qual o impacte das alterações das práticas de ensino em direção a um ensino das ciências com HFC nos conhecimentos concetuais, processuais e de contexto dos alunos?

As questões de investigação enfatizam a nossa centralidade como participante no estudo, bem como os processos de transformação desenvolvidos. Sendo a investigação-ação uma “forma de investigação autorreflexiva, desenvolvida por participantes em situações sociais, de modo a melhorar a racionalidade e justiça das suas próprias práticas, a sua compreensão dessas práticas e as situações nas quais as práticas são desenvolvidas” (Carr & Kemmis, 1986, p. 162) constituiu-se como a escolha metodológica adequada ao estudo.

A investigação-ação em educação levou-nos a trabalhar as relações, já conceptualizadas na literatura, entre investigação-ação pessoal, profissional e política bem como as relações entre a teoria e a prática, o que nos levou a uma rejeição do dualismo teoria-ação: por um lado procurámos ao longo do trabalho, conhecer e transformar a nossa prática, o que nos levou à descoberta das teorias que a informavam; por outro lado o trabalho de investigação contribuiu, dentro dos seus limites, para a teoria que informa o uso da HFC no ensino, de um modo geral, e no ensino da ótica em particular.

A operacionalização da investigação-ação em educação neste estudo foi realizada pela integração, num todo coerente, de um conjunto de oito pontos

64 orientadores adaptados da literatura, levando a que não adotássemos uma definição simples e direta para a metodologia, mas a concebêssemos como uma relação intrincada de aspetos não suscetíveis de ser isolados. Após uma breve abordagem à investigação-ação como metodologia com história na investigação em educação, conceptualizámos o ensino como processo social e colaborativo. Para o efeito, a função central da linguagem como constructo social partilhado, assumiu, na nossa argumentação, um relevo particular.

Apresentamos o desenho da investigação e realizamos uma abordagem à narrativa neste estudo. A narrativa não foi uma metodologia que adicionámos à investigação-ação em educação, mas um método de investigação que no presente trabalho foi integrante da investigação-ação em educação.

Antes de tratarmos das questões da validade e questões éticas e como foram tratadas na investigação, desenvolveremos a abordagem de Jim Minstrell e dos “aspetos do conhecimento” dos alunos (facets of knowledge), que este funda no modelo de mudança conceptual de diSessa (2008) e que utilizamos para analisar dados de um questionário.