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Aqui iremos percorrer três caminhos, a saber, Literacia Científica, Natureza da Ciência e Filosofia da Ciência, que nos irão permitir desenvolver uma discussão de três aspetos fundamentais da educação em ciência. Será com o entendimento destes conceitos para o desenvolvimento dos fundamentos da educação em ciência que encontraremos o caminho para um ensino da ciência humanizado.

2.1.1 Literacia Científica

Existe uma vasta literatura sobre o conceito de literacia científica (LC) (Bybee, 1997; DeBoer, 2000; Hodson, 2008; Holbrook & Rannikmae, 2009; Hurd, 1998; Laugksch, 2000; Millar, 2008; Miller, 1983; Miller, 2001; Norris & Phillips, 2003; Reis, 2006; Roberts, 2007, 1982; Roth & Désautels, 2004; Sjøberg, 2002). O termo tem vindo a ser usado em cada vez mais países para expressar o que deve ser a educação em ciência para todos (Holbrook & Rannikmae, 2009; Hurd, 1998; Millar, 2008). Antes de

18 prosseguirmos, são no entanto necessárias algumas precisões.

Tanto Douglas Roberts (2007) como Joan Solomon (1998, 1999) salientam a existência e a similitude de dois outros conceitos comumente usados a par do conceito de literacia científica, a saber, cultura científica (culture scientifique), mais usado na europa continental (Solomon, 1998) e Public Understanding of Science (PUS) (Miller, 2001), mais comum no Reino Unido. Solomon (1998, p. 171) refere que os conceitos são similares mas subtilmente diferentes. DeBoer (2000, p. 594), após uma análise histórica do conceito de LC e suas relações com os processos de reforma em educação, defende mesmo a equivalência entre LC e PUS. Roberts (2007), por seu lado, refere que ao estudar a LC, não deve deixar de mencionar, dada a natureza internacional do seu trabalho para o Handbook, “literatura intimamente relacionada” com a LC como é o caso da que refere a cultura científica ou a PUS.

Assim, ainda que utilizamos o termo LC e o quadro conceptual desenvolvido por Bybee (1997) e que explicitaremos de seguida, pensamos não estar a excluir contributos e abordagens relevantes vindas de tradições e programas de investigação diversos como os que resultaram nos termos culture scientifique e Public Understanding of Science.

Caminhos da literacia científica

O conceito LC foi cunhado após a Segunda Grande Guerra, adquirindo proeminência nas ciências da educação essencialmente desde a década de 80 (Laugksch, 2000; P. Reis, 2006; Roberts, 2007; Rye & Rubba, 2000). Ainda que o conceito tenha mudado com o tempo, tem-se mantido como um forte objeto de investigação em educação em ciências. Como afirma Rye (2000):

A nossa preparação de cidadãos para lidar com a ciência e a tecnologia à medida que estes empreendimentos tocam as [nossas] vidas tem sido um objetivo generalizadamente aceite como objetivo de uma educação escolar em ciências desde que Benjamin Franklin e Thomas Jeferson advogaram a inclusão da ciência e tecnologia no currículo escolar. (p.197)

Ou então Reis (2006):

Progressivamente, desde o seu aparecimento nos anos 50 do século XX, o termo “literacia científica” passou a ser utilizado como sinónimo de “finalidades da educação em ciência”. A partir dos anos 80 do século XX, este slogan espalha-se por todo mundo associado ao slogan de “ciência para todos” [sublinhado no original] (p. 167)

19 Ou ainda Roberts (2007) que há mais de vinte anos atrás realizou uma análise do desenvolvimento histórico inicial do termo LC “baseado na literatura sobre educação em ciência publicada na América do Norte desde os fins de 1950 até aos inícios de 1980, no sentido de racionalizar as diversas definições“ (p. 736), concluindo que “LC foi introduzida entre os profissionais de educação em ciência como um slogan (...). Ao início, o discurso de LC era em favor de um desenho curricular para os '90% de alunos' que não são 'potenciais cientistas'” (p.736).

É-nos legítimo salientar uma evidência e realizar uma inferência. Primeiro, o conceito de LC surge como sucedâneo, ou mesmo contemporâneo, da atividade associada à presidência de Harvard por James Bryant Conant que decorreu de 1933 a 1953 – evidência. Conforme o interessante testemunho de Gerald Holton (Holton, 2003b):

[James] Conant disse mais tarde [após a II Guerra] que tinha ficado impressionado pelo facto de jovens soldados com poucos conhecimentos sobre os valores característicos de uma sociedade livre tenham sido enviados para batalhas sangrentas para a preservar. Ele decidiu, como o fizeram outros, que a principal tarefa (business) de uma escola (college) devia ser o revelar uma cidadania que seria mais educada, [também] em ciência e nos seus limites (...). (p.609) [sublinhado nosso] De acordo com o relatório sobre a educação norte americana que James Conant (1945) pediu a uma comissão que elaborasse, significativamente intitulado General Education in a Free Society e que foi publicado em 1945, o ensino introdutório de ciência incorporaria de modo sistemático história e filosofia da ciência (id., ibid.).

Assim o conceito de LC nasceu num contexto de apelo e reformas curriculares no sentido de um ensino humanizado. Suspeitamos assim, que é na raiz da formação do conceito que vamos encontrar a mais sólida e útil definição de LC (inferência), seguindo o processo de amadurecimento em que a LC deixa de ser um slogan como alguns autores a denominam (Holbrook & Rannikmae, 2009, p. 277; Reis, 2006) e passa a definição útil à educação em ciências (Millar, 2008; Roberts, 2007).

O facto apontado por vários autores (DeBoer, 2000; Laugksch, 2000) de haver uma proliferação de definições e de conceções de e sobre literacia científica, assenta, pensamos, por um lado na diversidade de formação e de objetivos dos autores que entre as décadas de 50 e 80 estudaram a LC: educadores, cientistas, investigadores da educação em ciências, sociólogos, historiadores, etc., e por outro lado, à existência de diversos caminhos de investigação sobre o conceito de LC que conduzem a definições diversas (Roberts, 2007, p. 736).

20 abordagem histórica; (b) análise de “tipos” e “níveis” de LC; (c) análise da palavra literacia; (d) uma abordagem do ponto de vista da ciência e do cientista e, por fim, (e) análise baseada em situações ou contextos onde presumivelmente aspetos da ciência são valorizados em situações do dia-a-dia.

Parece-nos, que estas diferentes categorias de análise não apenas facilitam a abordagem da literatura, conforme defende Roberts (ibid.) mas implicam necessariamente diversidade de conclusões – pelo menos numa fase inicial e prévia a tentativas de integração e sistematização.

Nos anos 70 surgiu a dimensão “ciência para todos” (Aikenhead, 1994a, p. 19,20; DeBoer, 1991, pp. 178–188; Fensham & Harlen, 1999). O crescente impacto da tecnologia e as questões sociais dela decorrente, bem como referências aos valores na educação em ciência caracterizaram a literatura sobre LC na década de 70 (DeBoer, 1991, p. 181). Assim, seguindo o nosso fio de Ariadne, foi precisamente nessa década que várias universidades e instituições tanto no Reino Unido como nos EUA, iniciam programas de reforma curricular que desenvolvem a abordagem Ciência-Tecnologia- Sociedade (CTS)5 (Layton, 1994).

Foi pois na sequência do movimento ciência para todos e dos esforços no âmbito da política educativa de responder a novos desafios, que se assistiu à proliferação dos currículos CTS. Como escreveu DeBoer (1991):

Talvez uma das maiores forças por detrás do movimento em direção a uma abordagem ciência-tecnologia-sociedade na educação em ciências nos anos 1970 e 1980 tenha sido o tremendo crescimento da consciência ambiental que teve lugar durante este período e o concomitante compromisso dos indivíduos para proteger e preservar o seu espaço de vida. Questões de conservação energética, poluição ambiental e sobrevivência do planeta eram preocupações que afetavam todos os habitantes da Terra e estavam intimamente ligadas a um vasto campo das ciências e tecnologias. (p. 182)

Vemos deste modo emergir uma relação entre os currículos CTS e o slogan LC.

Uma racionalização da LC é realizada em Roberts (2007) como resultante da tensão permanente entre duas’ Visões’, onde 'Visão' é uma definição analítica, portanto mais vasta que uma definição. Sendo que na Visão I a LC assume significado na relação com os processos e produtos da ciência, e na Visão II adquire significado na relação com situações-contexto do dia-a-dia onde a ciência ou componentes da ciência são suscetíveis de ser encontradas. Assim, se considerarmos a tensão constante entre duas fontes curriculares com origem numa ou noutra Visão, encontramos uma racionalização

21 que explica a proliferação de definições de LC.

No entanto não nos parece, ao contrário de Roberts (2007, p. 771) que seja exclusivo dos partidários da Visão II a defesa de que “todos os estudantes numa sociedade democrática – independentemente dos seus planos para o futuro – necessitam de desenvolver a LC apropriada a situações outras que não o inquérito científico (scientific inquiry).” De facto é da Visão I que, por exemplo, emerge a definição proposta por Bybee (1997) de um continuum entre ausência e presença avançada de LC num indivíduo, enquadrada num quadro concetual de quatro níveis: LC nominal, funcional, concetual e processual e, por fim o quadro mais avançado de LC multidimensional, que Roberts (2007) apresenta como consistindo:

Na compreensão das estruturas concetuais essenciais da ciência e da tecnologia assim como dos aspetos que fazem dessa compreensão uma [compreensão] mais completa, por exemplo, a história e a natureza da ciência. Além do mais, indivíduos neste nível compreendem as relações das disciplinas com o conjunto da ciência e da tecnologia e com a sociedade. (p. 741)

No quadro desta conceção de LC, todos os cidadãos se enquadram num dos quatro níveis, sendo objetivo do ensino em ciência aumentar o nível de LC tanto dos alunos que prosseguirão uma carreira científica ou relacionada com a ciência, como de todos os outros.

Assim, como proposta heurística a análise de Roberts (2007) revelou-se útil em explicar a proliferação de definições, mas em nosso entender falha ao identificar a Visão II como a visão humanista de LC: é na Visão I que a LC têm as suas raízes; é dela que surgem propostas curriculares como os Benchmarks for Science Literacy da AAAS.

Por fim, não podemos deixar de mencionar o ceticismo de Shamos (1995) relativamente à ideia de usar a LC como um modo de expressar os objetivos globais da educação em ciência. Construindo, tal como Bybee, uma escala de LC, onde o último grau é denominada de “verdadeira” LC, conclui da impossibilidade de educar todos os cidadãos norte-americanos em ciência até ao ponto de atingirem a “verdadeira” LC. Ora o uso da LC como fonte de propostas curriculares para o ensino da ciência para todos, pressupõe o entendimento de que alguns alunos (desejavelmente poucos) não ultrapassarão o primeiro nível de LC, outros (certamente muitos) atingirão o segundo e terceiro nível de LC e outros ainda (certamente poucos mas desejavelmente cada vez mais) atingirão o nível superior, que na proposta de Bybee (1997), que adotamos, corresponde ao nível multidimensional.

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Algumas conclusões para o nosso estudo

A raiz histórica tanto do conceito de literacia científica como das propostas curriculares de índole humanista são as mesmas. Este facto levou-nos a procurar seguir o fio condutor que liga as propostas iniciais, até às atuais definições e propostas curriculares.

Para efeitos do nosso estudo julgamos apropriada a proposta de Bybee (1997, pp. 118–123) de um continuum de graus de literacia científica expressos em quatro quadros conceptuais que têm as suas raízes nas primeiras propostas sobre literacia científica. Pretendemos averiguar de seguida como integramos a Natureza da Ciência (NC) na LC.

2.1.2 Natureza da ciência

A Natureza da Ciência (NC) é uma construção teórica da educação em ciências com uma conceptualização que aparece, como veremos, relativamente fragmentada. Julgamos que em grande medida esse facto se deve à natureza de fronteira da construção teórica. Elaborada na fronteira da educação em ciências, da história da ciência, da filosofia da ciência e da sociologia, tem sido advogado como um importante objetivo do ensino em ciência desde há 100 anos, sendo que mais recentemente vários documentos de reforma educativa um pouco por todo o mundo (EUA, Canada, Reino Unido, Austrália, África do Sul) reafirmaram a NC como um resultado educacional essencial (Lederman, 2007, p. 831; Matthews, 2009).

Para Lederman (2007) a “NC refere-se aos pressupostos epistemológicos que estão na base da atividade da ciência e das características do conhecimento resultante” (p. 835). Este autor lista seis “características da ciência e do conhecimento científico relacionadas com o que os alunos devem saber” (Lederman, 2007, p. 833). São elas: (a) distinção entre observação e inferência; (b) distinção entre teoria e lei; (c) envolvimento da imaginação e da criatividade na construção do conhecimento científico; (d) papel da subjetividade no conhecimento científico; (e) empreendimento humano desenvolvido num contexto cultural determinado e (f), conhecimento sujeito a revisão.

Segundo Michael Matthews (Yalaki & Cakmakci, 2010)6, Lederman teria, em

outra publicação, acrescentado uma outra caraterística, a do mito do método científico. Ora, é interessante verificarmos que Lederman (2007) fala no método científico, referido através do scientific inquiry. Mas não o refere para acrescentar mais um elemento à sua

6 Yalaki e Cakmakci (2010) realizaram uma longa entrevista por e-mail a Michael Matthews após

uma passagem deste pela Turquia. Publicada no Eurasia Journal of Mathematics, Science & Technology Education, esta entrevista serviu de fonte valiosa para este capítulo.

23 lista de seis características, mas antes para alertar para a confusão que muitas vezes surge entre a NC e o scientific inquiry (Lederman, 2007, p. 835)

A estas características Michael Matthews (Yalaki & Cakmakci, 2010) elenca outras oito (não exaustivas)7: (a) o problema da demarcação entre conhecimento

científico e não científico; (b) a questão metodológica; (c) o problema da explicação; (d) a escolha entre teorias; (e) o problema do realismo vs instrumentalismo; (f) a questão da idealização em ciência; (g) a matematização e, finalmente, (h) o papel dos valores.

Como é afirmado em Yalaki e Cakmakci (ibid.):

Dado que aos professores de ciência é requerido pelos curricula e standards contemporâneos que ensinem a NC, então a muito popular lista de Lederman é apenas o princípio do que pode ser ensinado; aos sete de Lederman [atenção a comentário já realizado por nós] podem ser adicionados quaisquer ou todas as caraterísticas acima mencionadas.(p. 300)

Michael Matthews (2012) prossegue afirmando que mais importante do que a lista de Lederman (2007) ou a sua, o que importa é qual o objetivo de ensinar NC (Yalaki & Cakmakci, 2010, p. 300). Para Matthews a resposta é clara: ter alunos interessados e envolvidos (engaged) por estes aspetos da ciência.

É pois neste sentido de construção teórica da NC como uma listagem, que referimos a aparência fragmentada da NC. No entanto, se virmos a NC como um objetivo “crítico” essencial da LC, podemos adotar a posição expressa em Yalaki et al. (2010) de definir as características da ciência que queremos que os alunos aprendam e avançar a partir daí.

Algumas conclusões para o nosso estudo

Assumimos como objetivos do ensino em ciência promover a ascensão dos alunos de níveis de LC mais baixos para os superiores. A NC é um objetivo essencial no ensino para mais LC. Os vários aspetos da NC referidos na literatura, não devem ser objeto de imposição da opinião, do ponto de vista do professor, mas objeto de determinação de posições, esclarecimento de ambiguidades, clarificação de conceitos. Depois que cada aluno e professor assuma uma posição mais elevada no patamar do conhecimento.

A construção teórica NC é resultado de trabalho filosófico e educacional. Realizado por cientistas, filósofos ou profissionais da educação em ciências, a NC é

7 Matthews (2012) argumenta sobre os problemas levantados sobre o constructo NC,

defendendo a sua substituição por caraterísticas da ciência (Features of Science). Esta substituição pode permitir falar, por exemplo do problema da demarcação. Sendo muito interessante esta proposta, a NC é no entanto uma construção teórica com grande influência, logo inércia, na educação em ciências, pelo que mantemos a denominação.

24 pensamento filosófico. Como não há progresso em filosofia, e esta continua (felizmente!) a ser realizada, vamos de seguida expor a nossa posição filosófica sobre a ciência, antes de confrontarmos a literatura existente sobre o ensino com HFC.

2.1.3 Um olhar da filosofia

Dos olhares da filosofia da ciência pretendemos iluminar uma posição epistemológica8 que sustente um ensino com HFC. Se Gerald Holton (2003a) foi

participante ativo nos primeiros esforços (pós-Sputnik) de reforma humanista do ensino da ciência, também foi um filósofo da ciência que empreendeu uma reflexão com consequências curriculares através da edição de um dos primeiros livros de texto com HFC (Holton, 2003a, 2003b).

A epistemologia de Holton (1973) preocupa-se com o papel da imaginação na construção do conhecimento científico, nomeadamente sobre o porquê da assunção de um conjunto de hipóteses iniciais e não de outras, na persistência que muitos cientistas (a um nível mais ou menos explícito, todos) mostram em prosseguir objetivos ou crenças ontológicas (a natureza é suscetível de descrição matemática) ou epistemológicas (simplicidade das leis físicas, beleza das leis físicas, etc.). Além do mais a sua filosofia da ciência resulta no estabelecimento de uma ponte entre a atividade científica e as humanidades. Como Holton (1973) afirma:

Esta descrição [do método hipotético-dedutivo] do procedimento científico não está errada; tem o seu uso (...). Mas se nós tentarmos perceber as ações e decisões de um cientista concreto (atual contributor to science), as categorias e etapas listadas acima são incompletas pois elas deixam de fora um ponto essencial: num grau maior ou menor, o processo de construção de uma teoria científica concreta requer escolhas implícitas ou explícitas (...). [sublinhado nosso] (p.48)

Estas escolhas, decisões que os cientistas tomam sobre a adoção de “certas hipóteses e critérios de pré-seleção” (p.49) não têm que ser cientificamente válidas no sentido normal do termo. E Holton (1973) prossegue

Um resultado deste reconhecimento será que a dicotomia entre o ensino científico e humanista, que é evidente e real em muitos níveis, torna-se muito menos vincado se olharmos cuidadosamente para a construção das teorias científicas. Isto torna-se evidente primeiro no espaço onde as escolhas explícitas ou implícitas se fazem sentir

8 Os autores franceses não distinguem “filosofia da ciência” de “epistemologia”, ao contrário dos

25 com mais força – na formação, teste, aceitação ou rejeição de hipóteses.

A filosofia da ciência de Gerald Holton

Ainda que Holton (1978) tome a física como terreno de eleição para o desenvolvimento da sua epistemologia (é um físico de formação), a sua filosofia da ciência não fica de modo algum comprometida com este berço original.

Gerald Holton (1973) relembra-nos que “independentemente de quais as proposições científicas tidas como 'sem significado', todas as filosofias da ciência concordam que dois tipos de proposições não são sem significado” (p. 53): as afirmações relacionadas com questões empíricas de “factos”, “que em última análise se reduzem a leituras de medidas”, e as afirmações relacionadas com o cálculo matemático, que, afirma, em última análise se resume a tautologias, no sentido que a expressão matemática de uma lei é a afirmação dessa lei numa outra linguagem. Prosseguimos, com Holton (ibid.), denominando os dois tipos de proposições de empíricas, as que resultam da observação e de analíticas, as que resultam do cálculo.

Numa analogia (e Holton avisadamente alerta-nos para não esquecermos que é uma analogia), coloquemos as proposições empíricas segundo o eixo dos xx e as analíticas num eixo, ortogonal, dos yy: O plano x-y resultante (Figura 1) é o plano onde se expressa o “discurso científico usual”. Os conceitos são representados por pontos, e as proposições são análogas a linhas com projeções nos eixos dos xx e yy.

A título ilustrativo, veja-se, o conceito de força. Por um lado tem uma dimensão empírica que pode ser obtida lendo um dinamómetro, resultando num ponto no eixo dos xx, por outro tem uma dimensão analítica, que pode ser calculada usando o cálculo vetorial, mas não a matemática das quantidades escalares, obtendo nós um ponto que colocaríamos sobre o eixo dos yy. Assim a interceção das duas coordenadas no plano dá-nos o conceito de força9.

9 Para exemplos de como as proposições, hipóteses ou leis podem ser expressas neste plano,

x

y

Figura 1. Plano onde se expressam os conceitos e proposições científicas, de acordo com Gerald Holton.

26 Este plano, a que Holton denomina de plano contingente tem sido considerado, pelo menos de forma consistente desde Copérnico, como insuficiente para entender e para fazer ciência. Copérnico afirmou que a restrição última na escolha de hipóteses não é que elas tenham de ser consistentes com a observação, mas também consistentes com certas conceções chamadas de “axiomas da física”, tais como a presunção, por exemplo, de que os movimentos dos corpos celestes devam ser circulares (Holton, 1973, p. 57). Bertrand Russel, por seu lado, refere situações em que as premissas de certas teorias não são nem empírica nem logicamente necessárias. Já Popper fala da impossibilidade de retirar da ciência tudo o que não seja estritamente verificável ou justificável. Lakatos (1988), no desenvolvimento da sua epistemologia dos programas de investigação adianta que “hoje, pode-se demonstrar facilmente que uma lei da natureza não pode ser derivada de um qualquer número finito de factos; mas continuamos a tomar conhecimento de teorias científicas comprovadas a partir de factos. Porquê esta resistência à lógica elementar?” (p. 13). Adiantando, mais à frente a sua tese:

A unidade descritiva típica das grandes realizações científicas não é uma hipótese isolada, mas antes um programa de investigação. A ciência não é simplesmente ensaio e erro, uma série de conjeturas e refutações (...). A ciência newtoniana, por exemplo, não é simplesmente um conjunto de quatro conjeturas – as três leis da mecânica e a lei da