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INTRODUÇÃO: MOTIVAÇÕES PARA ESTUDAR GEOGRAFIA

5 SUJEITOS DA CONEXIDADE E DA FLUIDEZ DA REDE DE

1.1 Apontamentos para a construção do conceito de rede

O termo rede pode ter o significado de tecido de malhas largas para apanhar peixes ou aves; tela de arame; conjunto de estradas, de vias férreas, de linhas telegráficas, de canos de água ou de gás etc., que se encontram uns nos outros; entrelaçamento de nervos ou de fibras; tecido grosso, suspenso pelas duas extremidades a ganchos pregados em pontas elevadas, para nele dormir ou embalar. Como sinônimos, têm-se circuito, fiação, contextura, organização, trama etc. Esta variedade de significados atesta a intensa polissemia do vocábulo, o que o torna multifacetado. Porém, muito mais do que um termo que designa objetos ou uma relação entre objetos, o conceito de rede tem uma história que o torna ainda mais complexo.

Ao fazer um resgate da origem do termo, Dias (2005) ressalta a associação histórica entre rede e organismo, uma vez que a metáfora do cérebro-rede atravessa os séculos e é recorrentemente reativada. Atualmente, com o avanço das técnicas de transferência de informações, em especial com a invenção e difusão do uso do computador e da Internet, é muito comum a analogia entre a estrutura reticular e o funcionamento do cérebro, em que rede é apresentada como um organismo. Santana (2006), por exemplo, escreve:

As redes inteligentes são vistas a partir de novas analogias com o cérebro humano, visto que o computador surge com a intenção de ser uma máquina de pensamento mais rápido e mais razoável que o ser humano [...].

Esta rede-cérebro também pode ser vista em um âmbito planetário. Esta idéia pode ser analisada através do desenvolvimento da Internet e do aumento dos debates sobre as infovias ou superestradas da informação e seus desdobramentos em previsões dos especialistas em futurologia. (SANTANA, 2006, p. 40-41).

No entanto, apesar de o termo ainda se apresentar associado a uma representação de organismo, já a partir da segunda metade do século XVIII ganhou novas dimensões de entendimento por parte de engenheiros cartógrafos, que usaram representações geométricas do território e passaram a empregar

[...] o termo no sentido moderno de rede de comunicação e representam o território como um plano de linhas imaginárias ordenadas em rede, para matematizá-lo e construir o mapa. [...] Desde então, a rede não é mais somente observada sobre o corpo humano – como malha ou tecido –, no seu interior. Ela pode ser objetivada como matriz técnica – infra-estrutura rodoviária, estrada de ferro, telegrafia, modificando a relação com o espaço e com o tempo. Se até aquele momento a história da rede esteve ligada a uma referência ao organismo, a seguir ela estará também ligada a uma referência técnica. (DIAS, 2005, p. 15).

Segundo a autora (1995a e 2005), já como conceito-chave relacionado à organização

territorial, aparece no pensamento de Saint-Simon (1760–1825),que introduziu a propriedade

da conexidade à sua noção – mesmo que ainda associada a uma analogia organismo-rede – uma vez que “[...] o projeto compartilhado pela escola de Saint-Simon objetivava o estabelecimento de um sistema geral de comunicações”. (DIAS, 1995a, p. 145). Isto posto:

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[...] o corpo humano se solidifica e morre quando a circulação é suspensa. Graças a essa analogia de organismo-rede, Saint-Simon dispôs de uma ferramenta de análise para conceber uma ciência política e formular um “projeto de melhoria geral do território da França”, que consistiria em traçar sobre o seu corpo, ou seja, sobre seu território (organismo), as redes observadas sobre o corpo humano para assegurar a circulação de todos os fluxos, enriquecendo o país e levando à melhoria das condições de vida, incluindo as classes mais pobres da população. (DIAS, 2005, p. 16).

Nos últimos anos, novos significados e possibilidades de aanálise teórica foram incorporados ao conceito de rede. Mas como apontam Dupuy e Offner (2005),

Le réseau mérite donc d‟être sauvé. En laissant de côté le sac à métaphores et le paradigme universel, il sera moins lourd à porter et plus facile à manier: comme objet de recherche, comme grille d‟observation, comme boîte à outils. Les chantiers de l‟accumulation scientifique et de l‟innovation méthodologique sont à poursuivre. (DUPUY e OFFNER, 2005, p. 45).2

Por ser um termo polissêmico e de uso corrente, a complexidade para o seu entendimento se torna desafiadora, principalmente quando se pretende refletir sobre a sua utilização no âmbito da ciência geográfica. Busca-se pensar para além de um termo, ambiciona-se analisar o conceito e esquadrinhar a sua importância para o conhecimento geográfico na contemporaneidade.

Para empreender esse propósito, pode-se apropriar da pista oferecida por Moreira (2006), para quem o estudo pautado nas redes possibilita à geografia o olhar sobre o espaço móvel e integrado. Ao analisar a contemporaneidade do conceito de rede, o autor enfatiza:

Neste início de século, uma realidade nova, apoiada não mais nas formas antigas de relações do homem com o espaço e a natureza, mas nas que exprimem os conteúdos novos do mundo globalizado, traz consigo uma enorme renovação nas formas de organização geográfica da sociedade. Diante dessa nova realidade, conceitos velhos aparecem sob forma nova e conceitos novos aparecem renovando conceitos velhos. A rede global é a forma nova do espaço. E a fluidez – indicativa do efeito das reestruturações sobre as fronteiras – a sua principal característica. (MOREIRA, 2006, p. 157).

2

“A rede merece ser salva. Deixando de lado o saco de metáforas e o paradigma universal, será menos pesado para levar e mais fácil para manipular: como objeto de investigação, como grelha de observação, como caixa de instrumentos. Os estaleiros da acumulação científica e a inovação metodológica devem prosseguir-se.” (DUPUY e OFFNER, 2005, p. 45, tradução nossa)

Na geografia, “O termo rede não é recente, tampouco a preocupação em compreender seus efeitos sobre a organização do território.” (DIAS, 1995a, p.143). Segundo Parrochia (1993, p.5) “Le mot “réseau” [...] est une variante (avec um autre suffixe) de l‟ancien français

réseuil. [...] Il designe primitivement un ensemble de lignes entrelacées.”3 Como essas linhas se entrelaçam? Como analisar os rebatimentos no território dessas linhas entrelaçadas? Parrochia apresenta outro ponto fundamental para essa análise:

Par analogie avec l‟image d‟origine, on appelle “nœuds” du réseau toute intersection de ces lignes. Les lignes sont considérées, le plus souvent, comme des chemins d‟accès à certains sites où des voies de communication le long desquelles circulent, selon les cas, des elements vivants ou matériels (biens, denrées, matières premières), des sources d‟énergie (eau, gaz, électricité), des informations. (PARROCHIA, 1993, p. 5).4

Os nós são os pontos de interseção das linhas. Sem eles, as linhas não se entrelaçariam e não existiria uma rede. Mas esse processo aparentemente simples está repleto de complexidades.

Para Santos (2004), existem duas grandes matrizes na base dos estudos de redes: uma que considera apenas o aspecto material das redes e se fundamenta nas análises das redes técnicas, e outra que também leva em conta o dado social, as chamadas redes sociais.

Com o desenvolvimento e o estabelecimento de sistemas técnicos cada vez mais complexos, o estudo das redes técnicas é superestimado e, por isso, é reforçada a ideia sansimonista de que a rede técnica possibilita por si mesma o desenvolvimento do território. Como argumenta Dias (2005), esse debate é caracterizado por um viés determinista, em que se multiplicam representações e discursos sobre a rede técnica, apontada como sujeito capaz de estruturar territórios e criar condições sociais inéditas.

O conceito de rede associado ao estudo de elementos técnicos é bastante difundido. “A rede técnica é objeto de muitas representações, freqüentemente marcadas por discursos prospectivos, segundo o pressuposto de causalidade linear entre o desenvolvimento técnico e as mudanças sociais e espaciais.” (DIAS, 2005, p. 12). Apesar de compreender a importância

3

“A palavra „rede‟ [...] é uma variante (com outro sufixo) do antigo francês réseuil. [...] Designa originalmente um conjunto de linhas entrelaçadas.” (PARROCHIA, 1993, p. 5, tradução nossa).

4

“Por analogia com a imagem de origem, chamamos “nós” de rede toda intersecção dessas linhas. As linhas são consideradas, na maioria das vezes, como os caminhos de acesso a certos locais ou vias de comunicação ao longo das quais circulam, segundo o caso, os elementos vivos ou materiais (bens, artigos, matérias-primas), fontes de energia (água, gás, eletricidade), informações.” (PARROCHIA, 1993, p. 5, tradução nossa).

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dos estudos que privilegiam a análise de redes técnicas, compartilha-se com a preocupação esboçada por Dias (2005), ao questionar a possibilidade de construir um conceito de rede contextualizado no campo do conhecimento geográfico, sem estar associado ao determinismo tecnológico. Com o objetivo de ir além nesta questão, retoma-se a segunda matriz enunciada por Santos (2004): a dos estudos que, além de considerar o aspecto técnico das redes, a sua

realidade material, considera também o seu dado social, pois, com relação ao estudo das

redes,

Melhor seria afirmar, acompanhando Berry & Praskasa (1968, p. 21), que “a rede do espaço é uma série de redes interdependentes e superpostas, onde mudanças numa afetam as demais”. Mas é indispensável precisar que as redes são também humanas, formadas, inseparavelmente, de objetos e ações. (SANTOS, 2004, p. 98).

No estudo de redes, os aspectos técnicos e sociais não devem ser considerados separadamente, mas de modo conjunto, consubstanciado, de forma a possibilitar o entendimento da complexidade do espaço móvel e integrado. O técnico é um aspecto do social. Reforçando esta tese, Dias (2005) conclui que

A rede, como qualquer outra invenção humana, é uma construção social. Indivíduos, grupos, instituições ou firmas desenvolvem estratégias de toda ordem (políticas, sociais, econômicas e territoriais) e se organizam em rede. A rede não constitui o sujeito da ação, mas expressa ou define a escala das ações sociais. As escalas não são dadas a priori, porque são construídas nos processos. Como os processos são conflituosos, as escalas são ao mesmo tempo objeto e arena de conflitos. (DIAS, 2005, p. 23).

Na busca por dissipar as ambiguidades acerca da noção de rede, Santos (2004, p. 277) assinala que, apesar de algumas se materializarem mais visivelmente, “As redes são virtuais e ao mesmo tempo são reais.” O autor considera ainda:

A geografia deve trabalhar com uma noção de espaço que nele veja uma forma-conteúdo e considere os sistemas técnicos como uma união entre tempo e matéria, entre estabilidade e história. Desse modo, superaremos as dualidades que estão, também, direta ou indiretamente, as matrizes da maior parte das ambigüidades do discurso e do método da geografia. (SANTOS, 2004, p. 279).

Concorda-se com Santos (2004, p. 262) por alertar que “[...] a rede é também social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a freqüentam”. Assim, a rede é uma realidade concreta, material e, ao mesmo tempo, abstrata, imbuída de relações sociais. Uma realidade não pode ser analisada sem que se leve em consideração a outra. Mostrando a imbricação das redes com a sociedade, Santana (2006) faz a seguinte ponderação:

Para estudar as redes é preciso entender como elas são inseridas na sociedade, ou melhor, como elas também são sociedade, seu papel econômico e social e como as pessoas têm acesso a essas redes, [...] No dia- a-dia não é costume pensar nas redes, na sua constituição, sua forma, sua fisionomia e sua estrutura. As pessoas apenas usam as redes, e usando, as constroem e as reconstroem. (SANTANA, 2006, p. 33).

O conceito de rede tem propriedade multifária. Quando utilizado em análises geográficas, ele é imbricado de elementos, tais como conexidade, fixos, nós, sistemas de objetos, fluxos, linhas, sistemas de ações, fluidez, horizontalidade, verticalidade, entre outros. Esses elementos consubstanciados dão suporte ao próprio conceito, e a sua análise permite perscrutar a cidade para além da própria cidade. A cidade se expressa como uma realidade geográfica numa articulação de diferenças, pois os processos não se realizam da mesma forma em todos os lugares. Como ressalta Parrochia (1993):

[...] En fait, les matériaux hétérogènes intéressent aussi la théorie des réseaux dans son aspect dynamique. En effet, un réseau, nous l‟avons dit, est un ensemble d‟objets interconectés et réunis par leurs échanges de matière ou d‟information. Par conséquent, considéré dans le temps, le nombre des connexions peut augmenter ou diminuer, et la configuration changer. Il est donc important d‟avoir des modèles de compréhension de ces transformations. (PARROCHIA , 1993, p. 31).5

Contemporaneamente, a geografia se depara com o desafio de compreender rede como construção e reconstrução no cotidiano, no plano da vida, da existência humana e entendê-la

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“[...] De fato, os materiais heterogêneos interessam também à teoria das redes no seu aspecto dinâmico. Com efeito, uma rede, como dissemos, é um conjunto de objetos interconectados e reunidos pelas suas trocas de matéria ou de informações. Por conseguinte, considerado no tempo, o número de conexões pode aumentar ou diminuir, e a configuração alterar. Assim é importante ter modelos de compreensão destas transformações.” (PARROCHIA, 1993, p. 31, tradução nossa).

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como uma fusão de aspectos técnicos e sociais. Nessa perspectiva, Santos (2004) propõe que as redes sejam examinadas segundo um enfoque genético – como um processo – e segundo um enfoque atual – como um dado da realidade hodierna.

Esses dois enfoques não são estanques. Seria impossível enfrentar de modo separado essas duas tarefas analíticas. O importante, mesmo, é unir esses dois esforços, já que cada fase do processo pode também ser vista como uma situação; e cada situação pode ser vista como um corte num movimento que é desigual, segundo levemos em conta este ou aquele elemento. (SANTOS, 2004, p. 263-264).

Assim, a compreensão da dinâmica que envolve uma rede nos remete à análise do processo de fazer, desfazer e refazer o espaço com base em relações sociais que se materializam historicamente. O exame diacrônico e sincrônico do sistema de saúde de Vitória da Conquista é um rico exercício de trabalho com o conceito de rede e de seus desdobramentos para análise da cidade e da região que se requalificam.

Santos (2004) reforça a importância do conceito de rede para o estudo contemporâneo da geografia quando, no livro A natureza do espaço, parece conclamar: Por uma geografia de redes! Este chamamento para que os estudos geográficos considerem a rede como um conceito central se baseia no entendimento de que a geografia deve analisar a relação entre sistemas de objetos e sistemas de ações que se estabelece nas redes. Os sistemas de objetos (os fixos) e os sistemas de ações (os fluxos) são, nas palavras de Parrochia (1993), os nós e as linhas que dialeticamente compõem a rede, considerando toda a complexidade que dinamiza o processo. A rede que o setor de saúde constrói em Vitória da Conquista é um exemplo que possibilita essa intrincada análise.