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Média anual de fluxos de pacientes para Tratamento Fora de Domicílio (TFD) de Vitória da Conquista,

4.2 Estratégias do setor privado de saúde para a geração de fluxos

Diferentemente do setor estatal, o setor privado de saúde estimula a formação constante de fluxos. Essa prática expressa o controle do sistema privado em relação aos fluxos, porém numa lógica inversa à do Estado. Quer, portanto, fortalecer e fomentar os fluxos. Para o setor privado, não interessa a origem do paciente, o funcionamento ou a morfologia da rede, interessa a quantidade de pacientes a ser atendida. Como afirma Aciole (2006):

Privado significa, pois, estar excluído, desprovido do aparelho de Estado.

Ora, fora do aparelho de Estado está o mercado, e privado vai ganhar associação a mercado. No sentido oposto, público se reforça como sinônimo de estatal, atributo que se refere ao funcionamento regulamentado e de acordo com competências, de um aparelho munido do monopólio da utilização legítima da força, ao mesmo tempo que provido e legitimado pela representatividade que assume para regular a vida coletiva e cotidiana. (ACIOLE, 2006, p. 62).

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O texto de Moreira (2006), ao tratar das redes, afirma que elas possuem “força conceitual” suficiente para superar as dificuldades implícitas nos conceitos de região. Tal proposição coloca o posicionamento desse autor em evidente desacordo com as afirmações também aqui realçadas da obra de Milton Santos. O que parece fundamental é que ambos advogam a importância de construir na empiria das redes uma condição mais ampla e efetiva para a compreensão da geograficidade do mundo. De resto, considera-se que as divergências entre esses autores não fazem parte do escopo desta tese e, portanto, não será transformada em tema para discussão.

O setor privado vende consultas, exames laboratoriais, exames com a utilização de aparelhagem de alta tecnologia, vagas em emergências, em hospitais, em UTIs, além de vários

outros procedimentos. Para a iniciativa privada, a doença – sua cura e sua prevenção – é o que

movimenta o mercado. Um pequeno trecho da fábula “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon, exemplifica como esse mercado é profícuo.

Ser médico era travar uma batalha ininterrupta. De um lado a doença, sempre a entrar no corpo das pessoas; do outro a saúde, sempre querendo ir embora. E depois, havia mil espécies de doenças e uma única saúde. A doença usava todo tipo de máscara para que não a pudessem reconhecer: um verdadeiro carnaval. Era preciso desmascará-la, desanimá-la, pô-la para fora, e ao mesmo tempo atrair a saúde, segurá-la, impedi-la de fugir. (DRUON, 2003, p. 57).

Uma única saúde e milhares de doenças. Milhões de pessoas que precisam da saúde, um “sem-número” de doenças. Essa é uma cifra de muitos dígitos... Um mercado pulsante. Como já foi analisado (com base na regionalização da saúde estabelecida no PDR), Vitória da Conquista oficialmente polariza aproximadamente 1.800.000 habitantes. Para o SUS, este é o número a ser contabilizado. Para o setor privado, a população polarizada por Vitória da Conquista pode ser maior, pois não existem fluxos preestabelecidos. A geração de fluxos depende dos serviços oferecidos e da possibilidade de a população consumir esses serviços.

Em Vitória da Conquista, o setor de saúde é um mercado promissor, com grandes oportunidades de negócios, conforme relata um médico entrevistado:

Quando eu estava em São Paulo [...] as oportunidades eram muitas para não sair de São Paulo [...]. Mas minha idéia sempre era mesmo a de voltar para Conquista. Saí de São Paulo onde eu trabalhava em grandes hospitais [...] e chegando aqui [na Bahia, há seis anos], também estive em Luís Eduardo Magalhães, estive em Barreiras onde tive propostas para trabalhar, mas queria vir para cá... Chegando aqui em Conquista eu vi assim uma coisa fantástica: a medicina em Conquista estava sucateada. Os centros de imagem, que é minha parte, totalmente defasados. [...] Eu vi aquilo ali como uma grande oportunidade de negócios. [...] Cheguei aqui e era uma roça cheia de tocos. Tinha algumas ilhazinhas [...] que funcionavam, mas com aparelhos já envelhecidos. [...] Eu entrei em todas essas unidades. Eu comecei a trabalhar tanto no setor público como no setor privado. O setor público era aquela parte de você poder desenvolver um trabalho e no setor privado, de poder investir. (Entrevistado 5, 2009).

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Capítulo 4 - O sistema de saúde em Vitória da Conquista: um “campo de batalha”

Apesar de ter a chance de se estabelecer numa cidade como São Paulo, ou mesmo em outras cidades do interior da Bahia, por motivos pessoais e, principalmente, por enxergar um mercado carente de investimentos em Vitória da Conquista, o profissional optou por se fixar na cidade. Para viabilizar e dinamizar o mercado, passou a investir em equipamentos para diagnóstico por imagem, individualmente ou em grupo. Segundo o entrevistado, “Quando eu cheguei em Conquista os pacientes saíam para ir para Itabuna para realizar procedimentos. Uma coisa absurda! [...] O dinheiro tem de ficar aqui em Conquista, o profissional tem de

ficar aqui [...]. Conquista é capital dessa região inteira!” (Entrevistado 5, 2009).

O entendimento do que é absurdo, nas palavras do médico, não é a falta do procedimento, que impede o paciente de tratar a sua doença, mas a vazão da renda para outra cidade, opinião que reforça a saúde como um mercado lucrativo. A ideia é manter o paciente na cidade para aumentar as possibilidades de ganho de capital. A opinião não está fundamentada na oferta de acesso equânime aos serviços de saúde e reforça a relação de tensão entre as categorias cidadania e mercado no sistema de saúde.

A tática é dotar a cidade com equipamentos de alta tecnologia para realização de exames de média e alta complexidades com o fito de manter o paciente de Vitória da Conquista em Vitória da Conquista, além de exercer uma força centrípeta em relação aos pacientes de cidades circunvizinhas.

O médico entravistado tomou a iniciativa de realizar um diagnóstico do fluxo de pacientes para a realização de exames e detectou que, quando se tratava de procedimentos de alta complexidade, invariavelmente, pela simples falta do aparelho necessário, os pacientes eram encaminhados para outra cidade. O médico narra:

Aí eu peguei e detectei o que faltava em Conquista. Por exemplo, pacientes saíam daqui para fazer ressonância de alto campo em Salvador, daí nós compramos o aparelho de alto campo. Em seguida, percebemos que pacientes saíam daqui para fazer biópsias mamárias guiadas por mamografia [...], em Salvador. Compramos o equipamento para que o paciente fique aqui. [...] Alguns investimentos são feitos individualmente, e outros são feitos em parcerias. (Entrevistado 5, 2009).

A instalação de equipamentos de alta tecnologia para diagnóstico por imagem fortalece fixos e estimula os fluxos. Com a instalação de equipamentos em clínicas e hospitais em Vitória da Conquista para a realização de exames de ultrassonografia, tomografia, ressonância magnética, por exemplo, pacientes do município e também de municípios do seu

entorno que, antes, precisavam se deslocar, principalmente para Salvador, passaram a realizar os exames em Vitória da Conquista. Existe, assim, um reforço do nó da rede. Uma rede que ao mesmo tempo inclui e exclui. Aqueles que têm dinheiro para pagar os exames ou pagar um plano de saúde que os financie estão incluídos. Já aqueles que não têm essa condição, mesmo havendo o equipamento instalado na cidade, estão excluídos. Relatos de entrevistados expõem a dificuldade do acesso que, às vezes, gera a impossibilidade de realização de exames com a utilização de aparelhos sofisticados por meio do SUS.

Para marcar uma ressonância magnética, pelo SUS, esperei um ano e sete meses, e o exame foi marcado para Salvador. (Depoimento de usuário do SUS, morador do Bairro Brasil, 2009).

Precisava fazer o exame de ultrassonografia com urgência. Pelo SUS, demora muito. Preferi pagar a taxa de R$ 70,00 e fazer logo. (Depoimento de usuário do SUS, morador do Bairro Zabelê, 2009).

Precisei de um exame de mama. O médico pediu o exame de mamografia e levei para o posto para marcar. Aí sumiu. Tem mais ou menos três anos. Fez o pedido e foi perdido. Tem exame que é mais fácil. (Depoimento de usuária do SUS, moradora do Loteamento Jardim Valéria, 2009).

A carência de exames de alta complexidade é também exposta pela secretária de Saúde, que narra:

A gente tem apenas 330 tomografias por mês para a região toda. A gente tem de garantir uma cota de tomografia para urgência e emergência porque tem de dar a retaguarda e dividir o restante para as eletivas. Muitas vezes acontece, pelo conjunto de 75 municípios, você ter uma tomografia por mês [para cada município], às vezes não tem condição de fazer duas [...]. Para um município de 75.000, 80.000 habitantes, você ofertar duas tomografias mês é nada, mas é o que tem garantido na rede. A tentativa é de ampliar a oferta, credenciando novos serviços de tomografia. (Entrevista com Suzana Ribeiro, 2008).

Grupos privados que investem na instalação de equipamentos de alta tecnologia têm também como objetivo prestar serviço ao SUS. Segundo entrevistados, o SUS paga um pouco menos, mas é um dinheiro certo, apesar de atrasar o pagamento, às vezes, em até três meses. Com os pacientes do SUS, a máquina não fica ociosa. Com a carência de investimentos do

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Capítulo 4 - O sistema de saúde em Vitória da Conquista: um “campo de batalha”

setor estatal em equipamentos de alta tecnologia, o espaço fica aberto aos investidores privados, que incrementam os seus ganhos vendendo o serviço para o próprio Estado. Esse processo fortalece cada vez mais a mercantilização da saúde/doença.

Tal comércio não se restringe aos serviços de utilização de aparelhos de alta tecnologia. Como foi apresentado no segundo capítulo, das unidades de saúde do município de Vitória da Conquista, 76% pertencem à iniciativa privada, e parte dessas unidades tem contrato/convênio com o SUS, como pode ser verificado na Tabela 10.

Tabela 10 – Unidades de saúde privadas contratadas/conveniadas ao SUS no município de Vitória da

Conquista, setembro, 2008

Tipo de Unidade Com contrato Sem Contrato Total

Total 26 242 269

Clinica especializada/ambulatório de especialidade 10 57 67

Consultório isolado 1 156 157

Farmácia 0 1 1

Hospital especializado 3 2 5

Hospital geral 5 0 5

Policlínica 0 13 13

Unidade de apoio diagnose e terapia (Sadt Isolado) 7 13 20

Sem informação - - 01

Fontes: <http://cnes.datasus.gov.br/Mod_Ind_Contratos.asp?VEstado=29&VMun=293330&VEsfera=04> Acesso em: 15 set. 2008.

Trabalho de Campo, setembro, 2008.

Nota: Não consta no site CNES a informação sobre Hospital Geral. No entanto, observou-se, no trabalho de campo, que os cinco hospitais gerais privados existentes na cidade prestam serviços ao SUS.

Para detalhar essa questão, ressaltam-se as unidades de saúde que dispõem de leitos cirúrgicos. Dessas, 80% são da esfera administrativa privada e, nessas unidades, estão 72% dos leitos cirúrgicos de Vitória da Conquista. Dos leitos, 27,7% se destinam a cirurgia geral, 17,2% a ginecologia, 16% a nefrologia/urologia, 10,6% a ortopedia e traumatologia. O restante das especialidades cirúrgicas divide os outros 28,5% dos leitos. Como pode ser verificado na Tabela 11, do total dos leitos cirúrgicos, 63% são do SUS.

Tabela 11 – Leitos cirúrgicos em Vitória da Conquista, por especialidade e esfera de administração, 2008.

Leitos Cirúrgicos Total de leitos % de leitos SUS % Particulares % Bucomaxilofacial 12 4,7 7 58% 5 42% Cirurgia geral 71 27,7 60 85% 11 15% Gastroenterologia 20 7,8 9 45% 11 55% Ginecologia 44 17,2 40 91% 4 9% Nefrologia/urologia 41 16,0 15 37% 26 63% Neurocirurgia 8 3,1 1 13% 7 88% Oftalmologia 13 5,1 6 46% 7 54% Oncologia 1 0,4 0 0% 1 100% Ortopedia/traumatologia 27 10,6 16 59% 11 41% Otorrinolaringologia 7 2,7 2 29% 5 71% Plástica 5 2,0 3 60% 2 40% Toráxica 7 2,7 2 29% 5 71% TOTAL 256 100 161 63% 95 37%

Fonte: Disponível em:

< http://cnes.datasus.gov.br/Mod_Ind_Tipo_Leito.asp?VEstado=29&VMun=293330> Acesso em: 02 out. 2008.

Nota: Dados organizados pela autora

Apesar de 63% dos leitos serem do SUS, eles não estão disponíveis somente em unidades de saúde da administração estatal. Desses, 56% são comprados da iniciativa privada. Alguns hospitais chegam a vender 100% de seus leitos cirúrgicos ao SUS – como a Unimec, por exemplo – enquanto outros não disponibilizam nenhum – como o Samur, o Instituto Brandão de Reabilitação (IBR) e o Andro. A Clínica Santa Clara vende ao SUS 68% de leitos; o São Vicente, 87%; o São Geraldo, 28%; e a Ortoclínica, 75%. O Gráfico 4 representa essa relação.

Mais uma vez fica evidente a relação de dependência do SUS para com os investimentos realizados pela iniciativa privada. A atuação do Estado e da iniciativa privada, numa relação dialética, desvenda a lógica do capital no serviço de saúde.

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Capítulo 4 - O sistema de saúde em Vitória da Conquista: um “campo de batalha”

Gráfico 4 – Leitos cirúrgicos particulares de Vitória da Conquista –

quantidade vendida ao SUS, por unidade de saúde, 2008

Fonte: Disponível em:

<http://cnes.datasus.gov.br/Mod_Ind_Tipo_Leito.asp?VEstado=29&VMun=293330> Acesso em: 02 out. 2008.

Este mercado não se processa sem conflitos. Muitas vezes, apesar do procedimento já ser oferecido na cidade, grupos concorrentes preferem encaminhar o paciente para outra cidade. “As unidades hospitalares dentro de Conquista acabam concorrendo entre si, criando ilhas de isolamento. Se forma um grupo aqui e se isola, se forma outro grupo ali e se isola e

competem entre si. Eles não cooperam, eles competem.” (Entrevistado 5, 2009). Segundo o

entrevistado, esse é um entrave ao fortalecimento dos fluxos para os equipamentos instalados na cidade. Isso ocorre também quando o investidor privado busca se credenciar junto ao SUS.

Apesar dessa situação, um aparelho de ressonância magnética, por exemplo, que necessita de um investimento de, aproximadamente, três milhões de reais, paga-se em mais ou menos 25 meses, com o fluxo atual de utilização. Hoje existem três aparelhos de ressonância magnética instalados em Vitória da Conquista, todos funcionando com capacidade máxima. Esta é uma demanda de muitos municípios, segundo um dos entrevistados “Se fosse para pensar só em Conquista, nós teríamos um aparelho hoje, e ele estaria ocioso. A grande maioria dos pacientes é de fora.” (Entrevistado 5, 2009). O Mapa 33 ilustra o fluxo de pacientes para realização de exame num aparelho de ressonância magnética.

75 28 100 87 68 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Ortoclínica Hospital São Geraldo

Unimec Hospital São Vicente de Paulo Clínica Cirúrgica Santa Clara % Unidades de Saúde

Fonte: IBR e Trabalho de Campo

Elaboradora: Ana Emília de Quadros Ferraz Organizador: Junívio da Silva Pimentel

Brasil 0 37 74 111 km

MG

BA

46° 45° 44° 43° 42° 41° 40° 39° W 12° 13° 14° 15° 16° S 01 exame 02 exames 03 até 05 exames 06 até 13 exames 18 até 26 exames Números

Fluxo de pacientes para realização de exame de Ressonância Magnética