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2. OS SERVIÇOS DO ESTADO NA COMUNIDADE

2.2. O aposento “dos velhos”

Outra questão que parece ter influência na sociabilidade local é o “aposento dos velhos”. Este diz respeito a aposentadoria rural, direito adquirido e usufruído pelos moradores de Várzea Queimada acima de 60 anos por terem trabalhado na (e com a) terra durante toda a vida.

O “aposento” dá direito ao trabalhador um valor mensal de um salário mínimo. Para ter o benefício, os moradores da comunidade pagam, todo mês, a contribuição do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaicós que, quando do tempo de iniciar o processo de aposentadoria, auxilia na organização da documentação necessária para tal procedimento.

Esse benefício transforma “os velhos” em “novos ricos” na comunidade. Com o valor que recebem mensalmente, conseguem adquirir inúmeros produtos nas vendas locais, comprar terra e cabeças meio do desenvolvimento de atividades que estimulem a convivência social, a participação cidadã e uma formação geral para o mundo do trabalho. O público- alvo constitui-se, em sua maioria, de jovens cujas famílias são beneficiárias do Bolsa Família, estendendo-se também aos jovens em situação de risco pessoal e social, encaminhados pelos serviços de Proteção Social Especial do Suas ou pelos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.”

de gado, bem como realizar visitas periódicas a parentes em outras cidades da região ou do país (como São Paulo, por exemplo). Além disso, assumem importância fundamental na organização financeira da família, pois contribuem também com a compra da feira dos filhos, netos, e outros parentes.

Isso é salutar, inclusive, na nomeação das ruas da comunidade. Como posto na introdução, existe, na comunidade, a rua dos marajás. Nesta rua estão as melhores casas da vila, e lá residem, quase que na totalidade, os aposentados. São considerados “marajás” por ganharem dinheiro (considerado muito) sem trabalhar e poderem usufruir dos benefícios que este lhes traz.

A obtenção do aposento fez com que os habitantes de Várzea Queimada, aos poucos, fossem legalizando a propriedade de suas terras com a divisão das mesmas entre os filhos. Segundo os comunitários, para receber o aposento é necessário comprovar terras no nome do produtor rural (ou no nome do cônjuge), o que faz com que os mais velhos, aos poucos, estejam dividindo as terras para os filhos para os mesmos também conseguirem o aposento.

A aposentadoria rural insere, ainda mais, as transações financeiras na comunidade. Com o dinheiro da aposentadoria rural, os velhos conseguem pagar por pequenos trabalhos, como o conserto de cercas, o plantio das roças, a construção de casas. O dinheiro entrando na comunidade sob a forma de aposento faz também com que algumas relações que antes estavam pautadas no parentesco e na reciprocidade, comecem a ser remuneradas.

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O desafio desse capítulo foi apresentar algumas formas de sociabilidade que auxiliam esta tese a pensar Várzea Queimada enquanto uma comunidade de prática. Comunidade de prática vista aqui enquanto grupo de pessoas que compartilham formas de fazer comum. Isso não passa apenas pela produção de coisas em si, mas pela organização e sistematização da rotina e das formas de produção dessa, que perpassa todos os habitantes e os ligam, de alguma forma, a um senso comum.

Os elementos de sociabilidade em Várzea Queimada apresentados acima nos permitem pensar em termos de similaridade entre os indivíduos que transcende individualidade, os ligando em uma coletividade construída pelos modos de fazer. Não são, dessa forma,

elementos expressos e passíveis de uma leitura a priori sem realizar uma reflexão com base nas práticas, não individualmente, mas em coletividade.

Dialogo, assim, com a ideia de cultura, tão expressa pelos autores contemporâneos. Mas cultura vista aqui não apenas como consequência de uma tradição, mas, acima de tudo, com um misto de práticas que refletem e são refletidas pela organização social. Cultura sob o ponto de vista de uma integração das práticas em torno de objetivos comuns, que foram construídos ao longo dos anos e que sofrem influências dos mais diferentes meios.

Comunidade de prática, assim, aparece como um ponto aglutinador das relações entre as esferas do “tradicional”, apreendido e reaprendido a todos os momentos pelo dia a dia local e os processos sociais mais amplos, que reinventam as próprias práticas. É assim, no cotidiano e para o cotidiano, que os modelos explicativos de mundo são postos na berlinda, inventando ou seguindo determinados padrões.

Não quero com isso dizer que essas questões servem pura e simplesmente como um contexto que explicaria determinadas ações. Ao contrário, estou dizendo que as ações, por si só, constroem os padrões contextuais, que são postos em prática nas narrativas sobre o local, sobre seus habitantes e sobre sua história. As ações, enquanto promotoras do senso de pertença que constroem as identificações, e não o contrário.

Os rituais diários, seja de tomar café, da bênção, da procura pelo casamento, da obtenção de alimentos, são importantes para a produção da comunidade de prática. São eles que dão o tom do que os habitantes fazem e, além disso, fazem dos habitantes o que eles são.

Como veremos no decorrer desta tese, as práticas são acionadas, a todos os momentos, para justificar outras ações, bem como para construir as cenas na linguagem gesto-visual. São esses elementos que auxiliam os habitantes de Várzea Queimada na construção dos padrões interpretativos da “cena dos mudos”.

As formas de sociabilidade apresentadas aqui são comuns aos habitantes da comunidade fonte das reflexões da tese. Bastante difundidos na localidade, essas práticas caracterizam a comunidade de acordo com suas práticas. Não há, por assim dizer, exclusão de indivíduos ou de coletividades quanto falamos de práticas: são elas que transformam as pessoas lá residentes em uma “comunidade de prática”. Parece repetitivo, porém, o que quero salientar, é a circularidade da produção que começa e termina com as práticas que constroem os indivíduos e que as constroem. Comunidade de prática seria, assim, a centrifugação de práticas no interior da vila.

Porém, temos outros desdobramentos das identificações que perpassam outras formas de organização social e que também são importantes na produção da cena e na construção dos mudos. O primeiro capítulo nos apresentou certas similaridades entre todos. O desafio do próximo é refinar como essas práticas são organizadas a partir de outras ideologias, como a de que “somos todos parentes”.

CAPÍTULO DOIS.

“AQUI NÓS SOMOS TODOS PARENTES” PARENTESCO E ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL

O movimento no capítulo anterior foi o de lançar alguns elementos que são importantes na sociabilidade de Várzea Queimada. Falei de práticas que são comuns aos habitantes e que, no decorrer da pesquisa empírica e a partir das histórias contadas, se demonstraram essenciais para a argumentação de que, acima de tudo, Várzea Queimada é uma comunidade de prática.

Quando argumentei em relação à comunidade de prática, estava enfocando em processos que são disparados em virtude de os habitantes da comunidade compartilharem formas de fazer. Evidentemente, esses atos são realizados por indivíduos dispostos em coletividade que estão situados em um espaço sociológico e que respondem, em maior ou menor grau, a outros processos de semelhança e diferença.

Esse capítulo se propõe a refinar a definição de comunidade de prática, colocando em perspectiva a ideologia de parente que circunda os habitantes de Várzea Queimada. A proposta de trabalhar com essa ideologia é nos auxiliar no processo de construção da argumentação central da tese, qual seja, de que há uma relação intrínseca entre a cena, os falantes e as formas de sociabilidade local, sendo todo esse arcabouço posto em prática para a contextualização das cenas.

Iniciarei com a descrição de um ritual coletivo, ao mesmo tempo baseado nos núcleos familiares, para argumentar em relação às formas de pensar os parentes que circulam por Várzea Queimada. O ritual diz respeito às festas realizadas na comunidade para a comemoração do final do ano, 31 de dezembro, que se torna exemplar para pensarmos no processo de segmentação da comunidade em relação ao que esse capítulo se propõe: a discussão sobre a hierarquização das identificações nas ideias de “aqui nós somos todos parentes”, de núcleo familiar e de