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2. AS INTERSECÇÕES ENTRE A HISTÓRIA GERAL E OS

2.3. Aspectos de contiguidade, ou, a mescla entre “pessoas” e

Se anteriormente estava focando na produção de um discurso sobre a origem da surdez pautada na presença de “energias negativas” dentro da comunidade, ou em função de uma pessoa “fazer o mal” e seus descendentes sofrerem as consequências desses atos, abaixo irei expor outra explicação nativa que diz respeito à vinculação entre o território, as pessoas e a surdez.

Comecei a pensar sobre isso através de uma história narrada pela esposa de um dos mudos de Várzea Queimada. Chica, assim como as demais esposas de mudos, foi morar em Várzea Queimada depois de casar com Marcos. Ela conta que não sabia “falar com mudo” antes de ir morar em Várzea Queimada, e que nem sabia como seria seu casamento com um deles. Mas, que com o tempo de casamento e com a

convivência intensa com Marcos, ela aprendeu “a lidar com mudo” e a fazer cena.

Em um dos inúmeros dias que fui visitar Marcos, Chica e seus filhos43, ela me conta de uma antiga história que circula pela Várzea Queimada. Diz ela: “dizem por aí que mudo pega. Onde tem um mudo tem mais”. Para argumentar em prol de sua história, ela conta o caso de uma mulher de Patos do Piauí (cidade vizinha), que foi casar em Várzea Queimada e que teve do casamento, uma filha muda.

A história é mais ou menos assim: no dia do casamento em Várzea Queimada, a aliança dos noivos caiu no chão. Vendo o acontecido, uma muda da comunidade prontamente junta à aliança e a devolve para a noiva. Segundo Chica, esse foi o motivo de o casal ter gerado uma filha muda. Não se sabe, ao certo, quem é esse casal ou quem é essa menina. Conta-se apenas a história como um fato. “Onde tem um mudo tem outro mudo” é uma frase que ouvi inúmeras vezes em Várzea Queimada.

A pequena história contada por Chica auxilia em duas vias a presente reflexão: insere a o ditado “onde tem um mudo tem mais mudo”; e com isso apresenta questão da transmissão da surdez através do convívio; e faz a relação entre a surdez, o local e os outros mudos.

Quando Chica fala da mulher que deixou cair sua aliança em Várzea Queimada, ela fala, primeiramente, de um lugar específico onde o casal estava para que aquilo acontecesse. Foi a Várzea Queimada o local escolhido para a realização do matrimônio. Foi no chão de Várzea Queimada que caiu a aliança. Para completar, do chão da terra da comunidade, a aliança foi pega por uma muda. Contiguidade da terra ou dos mudos? Parece haver uma dupla relação nessa “criação” de um mito sobre a surdez.

Chica pontua a questão da possibilidade de passar o “não falar” de um para o outro (ou do território). Se, como vimos anteriormente, é no território que estão os feitiços que podem provocar coisas negativas, é também dele que pode ter surgido o filho mudo do casal que realizou o

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Marcos e Chica possuem um filho biológico e uma menina adotada recentemente. A menina foi “pega pra criar” da namorada do irmão de Chica, já que ambos não estavam casados e nenhum dos dois queria a menina. Chica e Marcos tomaram conta da mulher grávida nos últimos meses de gravidez, a levaram para o hospital e ela permaneceu na casa deles até mais ou menos quinze dias após o parto. Com isso, o casal teve direito de ficar com a criança. Chica possui outro filho, fruto de um relacionamento quando ainda não era casada com Marcos. Com o casamento e a mudança de localidade, Chica deixa o seu primeiro filho com os pais.

matrimônio em Várzea Queimada. Porém, o fato se complexifica quando Chica salienta que “foi uma muda” quem juntou a aliança.

Esses discursos apontam para o complexo relacional que vincula as pessoas (e acima de tudo os mudos) ao território de Várzea Queimada. Vinculando pessoas e territórios, vincula-se a uma história comum, a expectativas e, de certa forma, experiências similares. Insere as características repassadas de geração a geração, fala de processos sociais ocorridos ali e que, por ser dali e estar ali, pode ser “contaminado”. A energia espalhada pelos ares de Várzea Queimada, condensadas em uma história particular apontada no passado e construída incessantemente pelas gerações do presente, se corporifica e, estando no ar, no território e nas pessoas, é passível de ser transmitida. E a surdez aponta como um dos elementos passíveis de serem transmitidos pelo território ou pelas pessoas.

Mais elementos corroboram com a argumentação da transmissão das coisas em Várzea Queimada: não é permitido (ou não é aconselhado) que uma pessoa, por exemplo, sente em uma cadeira ou banco recém-ocupado por outra. Quando alguém específico fez uso, esse deixou uma “quentura” que precisa ser esfriada antes do próximo utilizar o mesmo móvel. É necessário evitar o contato com essa quentura, que pode ser sentida pela cadeira, evitando a transmissão de coisas não desejadas.

Quanto ao passar algo pela quentura da cadeira, não há nada específico ou nomeado. Apenas é evitado. Seguindo a lógica de interpretação que estou utilizando, isso se vincula com a ideia da possibilidade de circulação de coisas entre as pessoas no território. A aliança que caiu no chão e foi juntada por uma muda, pode provocar o nascimento de um filho “mudo” do casal. Sentar em uma cadeira que foi recém-utilizada por alguém, pode transmitir algo da primeira para a segunda pessoa.

Além disso, temos a expressão “onde tem um mudo, tem vários”. As pessoas da comunidade se referiam a isso para falar da presença, em grupo, dos mudos (e do seu fazer cena). Outro uso é dado em função de que se nasce um mudo em algum lugar (ou em alguma família), é certo (de acordo com a teoria nativa) que outros irão nascer. “Um mudo precisa de outro mudo, não fica sozinho, pode contar, se nascer um mudo, nasce outro logo em seguida”, fala corriqueira na comunidade.

Angela me conta que logo depois de ter nascido Cassio (primeiro filho mudo, mas segundo filho de seu casamento), ela não pensou duas vezes e “ligou” (se referindo a fazer processo de laqueadura de trompas). Ela me dizia “eu não sou besta, fiquei com medo de ter outro

mudo, pra que eu vou mentir? Eu sei que onde tem um mudo têm outros mudo, eu sabia que eu ia ter outro mudo depois de Cassio, eu que não ia correr o risco”.

E a fala de Angela não é diferente de outros relatos na localidade que vinculam a ideia de que se há um mudo há outro ou, a possibilidade de transmitir coisas de uma pessoa para a outra. Angela nos aponta para o fato de a mesma não querer ter outro filho (e optar por um método de controle) por esse poder, de alguma forma, nascer mudo. Porém, o fato de onde tem um mudo tem outro mudo também é apontado de outros sentidos.

Tales me dizia que essa fala era de seu pai, o falecido Seu Godofredo (esposo de Dona Catarina): “meu pai sempre dizia que é assim. Ele disse isso quando conheceu o mudo lá de cima, lá da Maria Preta. Disse que pode contar que se tem um tem outros. E isso foi quando nasceu minha primeira irmã muda. Ele sabia que eles iam ter outros filhos mudo porque mudo não pode ficar sozinho, precisa de outro mudo”. Vez por outra, as histórias sobre um mudo não poder ficar sozinho nos remete ao “fazer cena”. Outras vezes, elas ligam para o fato de que as pessoas não podem e não devem ficar sozinhas em Várzea Queimada.

Não apenas um mudo não pode ficar sozinho, mas também as pessoas não podem ter apenas um filho (devem ter, sempre, no mínimo dois), não podem ter de apenas um sexo (devem ter, sempre, pelo menos um homem e uma mulher), não podem ficar sozinhos em casa (devem estar, sempre, pelo menos duas pessoas em casa). É nesse pensamento “complementar” entre as coisas que a proposta de que um mudo não ficar sozinho e que “onde tem um mudo tem mais mudos” faz sentido. Se houver um mudo, é necessário outro mudo.