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2. AS INTERSECÇÕES ENTRE A HISTÓRIA GERAL E OS

2.1. O caso de Lurdes

Conheci Lurdes “sem querer”, quando voltava de um encontro de jovens na “igreja de cima”, a de São João Batista, em um sábado à noite. Havia descoberto, também por acaso, o encontro e passei algumas horas na igreja, acompanhando a movimentação que, antes de ser apenas religiosa, se transformava em um ponto de encontro de jovens em busca de relacionamento (prática cotidiana na comunidade). Voltava, caminhando pela rua da Malva, escura, quando meus amigos param para

conversar com Lurdes e sua prima, que estavam sentadas no lado de fora da casa, vendo o movimento e “jogando conversa fora”.

Lurdes, diferente das outras meninas e meninos adolescentes de Várzea Queimada, não havia ido ao encontro de jovens. Disse-me que não gostava de ir naquela igreja (a de São João Batista) e que achava que aqueles encontros não iriam se estender por muito tempo. Disse que preferia rezar em casa e que não gostava daquele tipo de movimentação. Cassio me disse, quando deixávamos a casa de Lurdes com o nosso caminhar, fazendo cena próxima de meu rosto e corpo, visto a escuridão da rua, que gostava muito de Lurdes e que, vez por outra, ia ate a casa dela para conversar. Disse, ainda, que a menina é uma falante competente da cena local.

Ainda sem saber direito quem era Lurdes, mesmo fazendo algumas referências em função da localização de sua casa (ela mora em frente à casa de Osvaldo), perguntei mais sobre Lurdes a Cassio. Ele me conta que Lurdes é filha de um irmão de Bianca, ou seja, prima de Carla, Marcia e Priscila (núcleo familiar A).

As histórias de Lurdes ecoam pela comunidade e são contadas por quase todas as pessoas. Mais de uma vez escutei sobre a possessão do corpo de Lurdes por espíritos. Por vezes, essa história é contada sem nenhum impedimento, cheia de detalhes. Outras vezes, é contada de forma mais tímida, com algumas reticências e algumas dúvidas. A agente comunitária de saúde da comunidade me contou a história. Adolescentes, adultos, mudos ou falantes conhecem e compartilham certo saber sobre a possessão do corpo de Lurdes, suas causas e suas consequências. Com Lurdes, mesmo, nunca conversei sobre o assunto. Mas descreverei um pouco mais do que me foi contado, oralmente ou na cena.

Contam que Lurdes foi possuída três vezes, por três espíritos diferentes. As três possessões ocorrem mais ou menos da mesma forma: a menina começa a contorcer seu corpo, ficando muito agitada; logo em seguida, fica muito violenta, mudando totalmente as feições do rosto; o terceiro momento é quando começa a falar, geralmente com uma voz diferente da costumeiramente usada. Dizem que quando isso aconteceu ninguém conseguiu segurar Lurdes, sua força aumenta por demais, sendo, segundo os moradores, impossível tamanha força para uma jovem da idade e do porte físico de Lurdes. Após a audiência perceber as características apresentadas acima, o diagnóstico de possessão por espíritos é realizado, e todo um movimento de contenção das agitações do corpo da pessoa possuída é feito pela comunidade. Geralmente

homens, fortes, são recrutados para auxiliar na contenção do corpo possuído pelo espírito.

Paralelo à contenção, são chamados rezadores especializados nesse tipo de “trabalho”, para “tirar o espírito” do corpo. No caso de Lurdes, foram chamados Bartolomeu e Seu Julião, reconhecidos na comunidade como pessoas que têm poder para realizar tal ação. Após rezas, água benta e pedaços de alho espalhados pelo corpo, o espírito sai do corpo do possuído.

Nos casos de possessão na localidade, e no caso de Lurdes, geralmente o espírito se identifica. Ele não pronuncia, necessariamente, o seu nome. Mas dá indícios de quem pode ser, através de sua fala, sua fisionomia no corpo do possuído, de seus “assuntos”38. A comunidade identifica qual é o possessor, por meio de um repertório de “possíveis espíritos” (que é elaborado a partir de uma série de ações feitas pelas pessoas em vida que as “candidata” como possíveis espíritos possessores), bem como a partir de relações entre a pessoa em vida (que seria o possível espírito), e refletindo sobre o que o espírito está falando no corpo do “possuído”.

As três possessões do corpo de Lurdes, contadas aos quatro ventos pela comunidade, foram feitas por três espíritos diferentes. Um deles, o espírito do bisavô paterno de Lurdes, Candido (ver no diagrama de parentesco, Anexo II), que vem a ser irmão de Manoel Barbosa (como visto, este último, uma grande referência nas histórias da localidade). Esse espírito falou sobre a presença de um livro na comunidade, o livro de São Cipriano. Não disse com quem poderia estar o livro ou o que estavam dele fazendo. Falou apenas que esse livro precisava ser encontrado e destruído.

O segundo, o espírito de um jovem senhor que se suicidou por enforcamento na comunidade. De uma família não muito próxima das principais famílias relatadas nesta tese, ele possui vínculo de parentesco a partir de alguns membros da família (a esposa do irmão do “espírito” é filha de Dona Verônica, sobrinha de Manoel Barbosa). Este falou que deveria ser construído um espaço de oração no interior da comunidade.

Já o terceiro, e o mais forte, foi um espírito de um mudo, que não se comunicava oralmente, utilizava apenas a cena. Dizem os habitantes

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Em uma das possessões que presenciei, o espírito falava vez por outra com a plateia que acompanhava e auxiliava a pessoa possuída. Para uma das mulheres que auxiliava colocando alho em torno do corpo possuído, o espírito a chamou de ‘tia’. E esse pronome deu a chave interpretativa de quem seria o espírito lá presente.

de Várzea Queimada que ele fazia cena “igualzinha a dos mudos” da localidade. Não disse nada que virasse “pedagógico” ou não impôs nenhuma tarefa para os parentes. Também não há indicativos de quem teria sido esse espírito em vida, como é apontado para sobre possíveis passagens terrenas dos outros espíritos. Apenas apareceu e demonstrou sua força.

Com orações e rezas, muita água benta e alho, os espíritos vão embora, deixando o corpo do possuído mais uma vez sob o domínio do próprio indivíduo (e do corpo social). Os espíritos “respeitam a palavra de Deus” e se ausentam, provocando certo alívio para todos que estão no entorno no momento. O último espírito, o “mudo”, foi o mais difícil. Era um espírito muito forte e precisou de muita reza sobre o corpo possuído. O espírito “não respeitava a palavra e as escrituras, não respeita a palavra da autoridade de Deus e esse precisou de mais pessoas para rezar”, dizem alguns se referindo ao espírito (do) mudo que possui o corpo de Lurdes.

Não há dúvida sobre a possessão do corpo de Lurdes por esses espíritos. As histórias são propagadas aos quatro ventos e podem ser conhecidas por qualquer um, seja oralmente ou na cena. Até mesmo a agente comunitária de saúde conta sobre o caso, dizendo que foi visitar a menina em um dos momentos de possessão (quando era o espírito mudo), pois pensava que poderia ser alguma coisa relacionada com a ingestão de bebida alcoólica. Porém, ela também afirma que todos na comunidade dizem se tratar de possessões.

As causas que levaram o corpo de Lurdes ser possuído por espíritos são, por vezes, também relatadas. Diferente da história em si, as causas assumem certo ar de mistério, não sendo proclamada aos quatro ventos. Algumas vezes, as causas são dadas. Quando conversava com Carla, Juliana e Priscila sobre o caso de Lurdes, elas me deram uma lista de possíveis causas para a possessão da jovem. Não foi apenas uma vez que a conversa com as meninas caiu na história de Lurdes. Em vários momentos adentramos no assunto e, mais de uma vez, elas me contavam a história, na cena, cheia de detalhes.

As meninas disseram que isso aconteceu porque: 1) pelo fato de Lurdes ser “galinha” e manter relações sexuais com vários homens; 2) por Lurdes ter namorado e transado com seu primo, filho da irmã de seu pai. As meninas falavam que as mulheres não podiam ficar beijando “todo mundo”, que elas deveriam beijar apenas um homem. Que depois que isso aconteceu, Lurdes deixou de beijar muitas pessoas, bem como não têm mais relação com seu parente.

Enquanto contavam, vez por outra, Carla e Juliana “se benziam” (fazendo o sinal da cruz), dizendo que o acontecimento havia sido muito feio e que elas tinham medo de isso acontecer com elas. Também, enquanto falavam, elas lembravam do relacionamento entre Juliana e Luis, dizendo que isso poderia ter acontecido com Juliana (visto a semelhança de possíveis causas da possessão do corpo de Lurdes, já que Luis é filho de Dona Augusta, logo, primo de Juliana), mas que não aconteceu porque os demais a proibiram de continuar a história com o parente.

As histórias da possessão do corpo de Lurdes apontam os caminhos que serão aqui traçados. A partir das “revelações” dos espíritos feitas a partir da possessão e a partir das causas apontadas por ser o corpo de Lurdes o que foi possuído, estabelecerei algumas reflexões histórico-sócio-culturais. Sabemos, de muito tempo, que narrativas são pedagógicas (BENJAMIN, 1993; PEREIRA, 2008) e que servem como forma de explicação do mundo (GEERTZ, 1989; LANGDON, 1993; 2001). Que elas não estão ancoradas em “certo” ou “errado”, ou “verdadeiro” ou “falso” (LATOUR, 1994; PIAULT, 2001), mas sim, dão suporte, a partir de uma “teoria nativa” das formas de ver, compreender e explicar as relações sociais, as coisas positivas e os infortúnios cotidianos.

Sabemos, ainda, que antes de reproduzirem verdades, todas as histórias que nos são contadas somente o são porque fazem sentido para os seus narradores e a plateia. São retratos de um passado, narrado a partir de uma experiência e de um objetivo da atualidade. É um passado reinventado sob a perspectiva e os desejos do presente, ou projetos para e sobre o futuro. Nunca um passado de forma pura e/ou linear, retrato fidedigno de tempos de outrora. Mas um passado que serve de modelo de mundo e de modelo para o mundo, serve como reflexões para o presente e, serve ainda, como cardápio para as vivências futuras.

Como nos aponta Stewart (1991), os discursos são produtivos e eles não reproduzem fatos reais, quadraturas de um mundo existente, mas sim, criam esse mundo possível. Pode-se perceber, por meio da atenção nos momentos criativos e emergentes dos discursos, a vida sociocultural de quem está falando. Basta, de alguma forma, nos determos aos momentos emergentes de significados.

E essa constituição de mundos possíveis, através das narrativas, nos aponta para o jogo intertextual dos próprios discursos. Podemos pensar no que Bakhtin (1997) nos fala sobre a vivência dialógica das histórias, por exemplo. De como o autor nos aponta para o fato de que uma história nunca está sozinha, mas está sim em contato e em interação

com uma cadeia de outras histórias. Se não histórias, as coisas contadas exigem, pelo menos, que quem escute saiba do que se está falando, ou seja, exige um nível mútuo de compreensão, um nível mínimo de diálogo. O não conhecimento do que se está falando pode provocar o que Stewart (1991) nomeia de “interrupção” em que, fazendo uso de outro arcabouço conceitual, os falantes não interagem de igual para igual.

O que cabe reter aqui são a vivência e a criatividade das narrativas para as ações cotidianas. As histórias contadas, seja sobre o passado ou sobre eventos contemporâneos ao momento da narração, são sempre histórias dotadas de outras histórias, de inúmeros significados. Assim, os espíritos no corpo de Lurdes nos falam de coisas muito importantes para o cotidiano local. Os espíritos, junto com o corpo de Lurdes, contam para a comunidade coisas sobre a própria comunidade. A comunidade, a partir de um cardápio de explicações, dá a chave interpretativa para os acontecimentos. Uma mescla que coloca em voga diferentes formas de ver, viver e compreender. Aciona uma série de discursos, colocando par a par (ou lado a lado) diferentes explicações que se relacionam com aspectos mais amplos do complexo sócio- histórico-cultural da comunidade. São, por si, discursos intertextuais que, postos em uso, expressam teorias adjacentes. São essas teorias adjacentes e o processo histórico de conformação desses discursos em plausíveis que interessam nesse momento.

Utilizarei, como fio condutor para essa empreitada, a ideia de um “mito de origem” da surdez, ou seja, as formas através das quais são dadas explicações para a presença dos mudos na localidade. A ideia de pensar um mito de origem, ou melhor, a importância do estudo dos modos nativos de explanação da surdez está presente em vários dos estudos sobre as chamadas “línguas de sinais indígenas ou rurais” (NONAKA, 2007; KISCH, 2004; GROCE, 1985; MARSAJA, 2008), bem como em outros estudos sobre “deficiência”, “desabilidade” ou “surdez” (GROCE, 2002; NICOLAISEN, 1995; DEVLIEGER, 1995; SACHS, 1995; INGSTAD, 2007; entre outros).

Além disso, podemos relacionar a ideia de pensar as narrativas sobre um mito de origem sobre a surdez na perspectiva de “gênero” narrativo. Aqui, quando me refiro a gênero, pontuo as formas específicas através das quais as diferentes sociedades constroem formas diferentes de narrar os eventos acontecidos, com diferentes ênfases ou ‘background’.

Bauman e Briggs (1990) anunciam a importância de gênero de fala para a compreensão da vida social. Como gênero de fala, os autores

se referem às organizações convencionais amplamente flexíveis, de meios e estruturas formais que constituem padrões de referência para a prática comunicativa (BAUMAN e BRIGGS, 1996, p. 85). Sugerem, ainda, que esses são muito mais que estruturas autocontidas de traços formais, pois uma mudança de gênero evoca funções comunicativas contrastantes, estruturas de participação e modos de interpretação (BAUMAN e BRIGGS, 1990).

Com uma perspectiva semelhante sobre gênero de fala, William Hanks (2008) acrescenta que gêneros do discurso são resultantes de atos historicamente específicos, como dimensões constitutivas através dos quais a ação é possível. O autor aponta que os gêneros de fala, maleáveis e mutáveis, apresentam aos falantes as dimensões constitutivas da ação. Trabalhando com um conjunto de textos produzidos na primeira sociedade colonial Maia, no México, o autor demonstra como, sob a influência espanhola, da igreja, ou até mesmo das mudanças políticas da sociedade em questão, esses textos oscilam no decorrer do tempo entre um gênero e outro, constituindo, inclusive, novos gêneros de fala. E o autor argumenta que "vistos a partir da

perspectiva da prática, os gêneros são parte da naturalização de experiência social" (HANKS, 2008, p. 114) e que, desta forma,

auxiliam na constituição de "verdades" sobre o ser e o fazer social. Já Hymes (1989) salienta que os gêneros de fala fazem parte, de alguma forma, da estrutura estilística, mas não podem ser tratados em separado. O autor argumenta que eles não são em si mesmo gênero, nem evento e nem mesmo espetáculo. Os gêneros apenas ocorrem no interior de algum evento ou em relação entre eventos. Dessa forma, o autor propõe que performance diz respeito a esta relação entre os gêneros, que envolve a aceitação, a responsabilidade de executar, de buscar a aceitação e de ser avaliado. Também é neste sentido que há a possibilidade criativa na linguagem, já que a mesma trabalha com a possibilidade de flexibilização das estruturas formais, através das falas em uso39.

A possibilidade criativa se dá, segundo Hymes (1989), pelo fato de a fala trabalhar com duas dimensões: enquanto um modo de expressão de significados, e como um denotador de estilos diferenciados

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De repente seja por este motivo que é levado em consideração, em inúmeros estudos da etnografia da fala, a análise das alternâncias dos códigos linguísticos e dos estilos de fala como formas características de denotar identidades ou de construir relações de proximidade e/ou distância entre os sujeitos falantes. Ver entre outros, Gumperz (1972); Alim (2005); Bailey (2005).

que correspondem tanto a condições de uma estrutura estilística quanto de seu uso e sua performance.

Assim, de certa forma, defino as diferentes explanações sobre a origem da surdez na Várzea Queimada como um “gênero” em que são postos em jogo diferentes matrizes para dar conta do fenômeno. Não apenas uma forma específica de contar, recheada de elipses e frases como “não sei” ou “eles dizem”, mas também uma forma de pôr em prática diferentes discursos que falam sobre uma “mesma coisa”. Os moradores da Várzea Queimada constroem suas explanações sobre a surdez com base em diferentes matrizes e fazem isso de forma sucessiva, não apontando um único caminho, mas dando diferentes versões possíveis para a explanação do fato, o construindo de forma processual. É na fissura entre as diferentes explanações que nascem as práticas com relação à surdez e aos surdos da localidade. As explanações sobre a origem da surdez auxiliam, de alguma forma, a construir as formas de sociabilidade na localidade.

Além disso, como apontado por Turner (1981), as narrativas são construídas com base em um processo separado do cotidiano. Em outras palavras, com base em certas “experiências” (TURNER, 2005) que transcendem a banalidade cotidiana. Contamos o que foge da linearidade. Ou melhor, utilizamos como elementos para construir nosso processo narrativo aqueles fatos, atos, coisas ou acontecimentos que demonstram não “o mesmo”, mas algo que se sobressai sobre o mesmo. Isso não quer dizer que contamos apenas mudanças, mas contamos, acima de tudo, processos que foram significativos. São esses elementos os significativos para o processo de contar. E isso não é diferente nas explanações da população de Várzea Queimada sobre a surdez. Marcam, além de momentos ímpares na história do local (que dentro do grande mosaico cotidiano é contado e pode ser vivido), fatos importantes no processo histórico local ou nacional. Continuo a explanação por partes.

Isso se torna particularmente importante para a argumentação dessa tese por, no mínimo, três motivos: primeiro porque a explanação nativa da surdez nos fornece elementos importantes para refletirmos sobre a cultura e a sociabilidade local, questões fundamentais aqui; segundo, por apresentar certos contextos e intersecções entre a historia do local, os vários discursos que estão presentes na comunidade e as formas como todos se articulam e formam certa “linearidade” de possibilidades explicativas, dando assim um panorama geral sobre a “intertextualidade” (BAUMAN e BRIGGS, 1990) do cotidiano da localidade, bem como o caráter emergente e criativo da própria ideia de identificação, comunidade e cultura (TEDLOCK e MANNHEIM, 1995;

BAUMAN, 2004; LANGDON, 2007; HYMES, 2005; entre outros); terceiro, por nos possibilitar, como apontado por Groce (2002), uma das três regras que nos dão os limites e as possibilidades para entender a forma como a surdez (ou outras deficiências) é vista na comunidade.

Groce (2002) auxilia, ainda, apontando que as formas através das quais a cultura local explica a deficiência auxiliam na identificação de como a cultura em questão trata os indivíduos considerados “desabilitados”. Ou seja, o emaranhado composto pela sucessão de fatos e discursos refletidos a partir da história, as diferentes significações atribuídas nesse percurso e o processo que compõem o cotidiano local, são importantes para a reflexão.

As relações que traçarei aqui serão para expor as formas através das quais foi se construindo uma diferenciação entre indivíduos mudos e falantes ao longo dos anos, passando por diferentes explanações da origem da surdez. Essas explanações nos apontam os caminhos históricos que a comunidade traçou, intertextualizando fatos da cultura local com transformações municipais, estaduais ou federais. As formas nativas da explanação da surdez auxiliam não apenas na categorização de uma explanação cultural/nativa sobre o porquê de aqueles indivíduos não ouvem. Mas, acima de tudo, como que aqueles indivíduos que “não falam” foram sendo construídos enquanto diferentes ao longo dos anos.

Não penso, aqui, apenas em questões de identidade ou de reconhecimento, mas enquanto elementos da ordem cultural que foi transformando em “mudo” determinadas pessoas, caracterizando-os. Ainda, como essa construção desses enquanto diferentes faz parte (e fez uso) do arcabouço vivencial e cultural da população em questão.