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Do período anterior à concretização da vila: o predomínio dos

1. HISTÓRIAS GERAIS SOBRE A FORMAÇÃO DA VILA

1.2. Do período anterior à concretização da vila: o predomínio dos

Com a história contada acima surge, no decorrer do tempo, a vila e a sua organização socioespacial. Sobre um território de todos, espaços imensos separando uma casa da outra e formando um grande conglomerado de parentes, surge uma “vila”, separada das roças, unindo todos em torno de um polo central. “Aqui são todos meus parentes, eu fico feliz por morar perto da minha família, e os meus filhos têmque

ficar feliz por isso também”, me dizia Jorge (filho de Manoel Barbosa) sobre a fundação da vila, momento posterior ao falecimento de seu pai.

É importante lembrar o sistema de casamento dos descendentes da família Barbosa antes do falecimento de nosso protagonista. Os filhos e filhas de Manoel Barbosa casaram-se, na grande maioria, com os filhos e filhas de sua irmã, Mara. Quatro casais foram formados desse tipo de união. Além disso, outros arranjos entre primos (filhos dos irmãos e irmãs de Manoel Barbosa) foram feitos, como é possível visualizar no gráfico em anexo (Anexo II).

De acordo com a genealogia, temos uma grande quantidade de casamentos entre os filhos de Manoel Barbosa e Mara e alguns casos envolvendo os demais irmãos de Manoel Barbosa. Manuel Barbosa e Mara casaram quatro filhos: Gorete com Patrício; Jorge com Isaura; Leona com Emiliano e Dona Augusta com Julião. Além disso, Manoel Barbosa casa sua filha Ticiana com o filho de Candido (seu irmão), Beto, bem como Janira (sua filha do primeiro casamento) com o filho de seu irmão Noel, Valente. Noel, ainda, casa seu filho André com Cristina, filha de Mara. E Candido ainda tem um filho, Osvaldo, casado com uma filha de Nicanor, Lorena.

Os casamentos entre primos estabelecidos na família dos Barbosas ficam mais ou menos assim:

Pais – Geração 01 Manoel

Barbosa

Mara Noel Candido Nicanor

Filhos (Geração 2) Gorete Patrício Jorge Isaura Leona Emiliano Dona Augusta Julião Janira Valente Ticiana Beto Cristina André Osvaldo Lorena

Tabela 01: casamento entre filhos de Manoel Barbosa e seus irmãos

Os casamentos entre os conhecidos, como relatado também anteriormente, fazem parte do sistema das formas preferenciais que diz respeito à junção entre o reconhecimento da história e da familiaridade

com o futuro cônjuge com a manutenção da posse e da propriedade da terra. O sistema apresentado acima é importante porque, junto com outros casamentos engendrados com os “moradores” do território de Manoel Barbosa, auxiliam na confecção do mapa atual da vila.

Em se tratando da vila propriamente dita, ela surge como um projeto político de Jorge. Ele me conta que, logo após o falecimento de seu pai, seus irmãos decidiram “mandar o povo que morava aqui nas terras dele irem embora”. Como dito anteriormente, Manoel Barbosa também é visto como um homem bondoso. Porém, após sua morte, os filhos decidiram pela retirada dos moradores das propriedades do pai.

Nesta época, todos os irmãos de Jorge, incluindo ele mesmo, já estavam casados, mas continuavam plantando em terras comunais, cada um com seu pedaço. Além das terras de roça, as terras de morada, o chão da casa, auxiliavam na divisão geoespacial da localidade.

Conversava com Jorge em uma tarde de abril de 2010. Ele me dizia que antes eles plantavam todos juntos, que não havia divisão, mesmo depois da morte de seu pai, Manoel Barbosa. Mas que em determinado momento deu-se início a uma série de brigas entre os filhos, e com isso, as terras foram divididas. Disse que ele ficou com a parte que é agora a vila.

Parece que existiu, pelo que contam, um processo duplo de divisão das terras: um, localizado na baixada, onde hoje é a vila. Outro, na chapada, onde se dá a plantação das roças. Na vila, a divisão se deu mais ou menos a deixar espaços para Jorge onde hoje está a maior parte das casas (o centro da vila). Ele diz que, diferente dos lugares das casas de morada de seus irmãos e irmãs, o lugar em que ele teve acesso era apenas pedregulho e ele não sabia exatamente o que fazer.

E foi assim que, em 1974, quando políticos de Jaicós assumem um papel importante, Jorge doou um terreno para a construção da escola da localidade. O início do que se chama de “vila” hoje na Várzea Queimada foi construída em torno da edificação da escola. Anteriormente, a comunidade estava organizada em torno de pequenos sítios de núcleos familiares que, juntos e vinculados por relações de parentesco e compadrio, formavam um grande conglomerado de casas.

O foco, por assim dizer, antes da criação de uma “vila”, estava centrado nas relações de parentesco e de compadrio. Dona Augusta é uma das que me conta que existia, antes da vila, uma relação de camaradagem e compadrio entre seu pai e o pai de seu esposo (Manoel Barbosa e Eduardo), seja pela profissão que os unia (eram ambos vaqueiros “dos bons”), seja pelos vínculos políticos que tinham (eram representantes de duas visões políticas diferentes), seja ainda pelas

relações parentais e de compadrio que mantinham (casaram vários filhos e mantinham, com os demais, relações de compadrio).

O que passa é que, se antes a organização se dava em torno de pequenos núcleos de familiares, depois de 1974 o panorama começou a se transformar. Com a morte de Manoel Barbosa, os filhos herdam as terras, dividindo-as. De uma plantação coletiva, vistoriada e chefiada pelo pai, passam-se a pequenas roças, sob o domínio do novo chefe-pai da família nuclear. Geralmente, com a morte do pai, a roça coletiva de família se dilui e se estabelece um novo modelo de troca entre-parentes, que diz respeito aos espaços coletivos e a troca de trabalho.

E é nesse momento histórico, na transição entre o modelo de casas-sítios para o modelo comunidade que os mudos da localidade começam a nascer. A primeira geração de mudos nasce dos filhos dos casamentos entre os filhos de Manoel Barbosa e dos irmãos.

Por esse motivo me parece relevante todo o processo de produção da vila e da pontuação desse movimento histórico em que os mudos apareceram nas genealogias familiares e na história da vila. Também, como veremos, terá toda uma articulação entre a história geral da vila e as narrativas sobre a origem da surdez na localidade.

Além disso, outra filha de Manoel Barbosa (Dona Erica) pontua a construção da igreja de São Sebastião, no centro da comunidade. São Sebastião em homenagem a Manoel Barbosa que era devoto do Santo, talvez pela história, talvez por ter nascido no mesmo dia em que se comemora o dia de São Sebastião (6 de janeiro). A igreja era comandada por Jorge. Os filhos de Manoel Barbosa, seja Dona Augusta, Dona Erica ou Jorge lamentam o fato do pai ter morrido sem ao menos ter conhecido a igreja: ambos afirmam que o mesmo ficaria muito orgulhoso dos filhos pelo movimento de construção de um lugar específico para reza, visto que antes as celebrações eram feitas na casa do próprio patriarca, e pela possibilidade de agregar devotos para o seu Santo de devoção.

A igreja pontua mais um momento importante no processo de fundação da localidade. Um espaço máster de celebração de um dos desejos de Manoel Barbosa de ver todos envolvidos com os rituais católicos. Ele mesmo, em seus períodos ativos, realizava celebrações em sua casa, visto o seu domínio do mundo dos livros e do mundo das artes invisíveis.

Nesse segundo movimento, com a presença dos filhos mudos, netos de Manoel Barbosa, posso pontuar três fatos nodais que auxiliaram na construção da vila e que se demonstram extremamente importantes para a argumentação da presente tese: (i) a divisão das

terras e o início da produção das famílias nucleares baseadas nos filhos da geração de Manoel Barbosa; (ii) a construção da escola e o papel da leitura e escrita iniciando a vigorar pela localidade; (iii) a construção da igreja de São Sebastião, polo aglutinador dos rituais católicos na localidade.

Sem Manoel Barbosa, com os novos casais divididos em famílias nucleares, a vila começa o seu desenho. Como um projeto político de Jorge, a vila, enquanto uma estrutura de vivência e de expansão para além das famílias nucleares, começa a ser desenhada com os pontos apresentados acima. Além de disparar, enquanto momentos desruptivos da história e pontuados nas narrativas, a divisão dos terrenos, a construção da escola e da igreja, apontam também para fatos importantes no próprio processo de construção de certas formas de se identificar os mudos e a cena.