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4. A COMUNIDADE

4.2. A comunidade da Várzea Queimada

Entre as localidades rurais de Jaicós figura a Várzea Queimada, que é tida como uma das mais populosas do município (junto com a comunidade do Esquisito e do Croazal). Essas localidades vêm recebendo atenção privilegiada das políticas públicas do município tendo oscilado, ao longo dos anos, os focos de atenção e investimento. Diria que, no período que estive em campo, os olhares estavam voltados para a localidade da Várzea Queimada, o que provocou certo alvoroço na população e conflitos políticos com as demais comunidades, principalmente as de igual porte.

Várzea Queimada está localizada a 27Km da cidade de Jaicós, sendo desses 20Km percorridos pela BR 407 e 7 Km percorridos em trecho não asfaltado, em uma pequena estrada de areia por entre morros, cajueiros e roças.

Figura 3: placa indicativa da entrada da comunidade.

A paisagem que ilustra a viagem de Jaicós a Várzea Queimada é marcada por duas estações diferentes que, ao longo do tempo, estão mudando seus meses de chegada: o inverno e o verão, ou, a estação de chuvas e de secas, respectivamente. Na maior parte do tempo, se

caracteriza por uma vegetação seca de árvores nativas baixas ou arbustos rasteiros, interrompidos pelas folhas verdes de cajueiros “precoces” ou “grandes”, ou ainda, das palhas de carnaúba que, mesmo sem chuva, insistem em nascer.

A chuva é esperada a partir do final de dezembro e, quando chega, é muito celebrada. Traz o verde de volta às folhas das árvores e faz florescer uma vasta quantidade de árvores frutíferas, como o imbuzeiro, pitangueira, mangueira, entre outras características da região. Avisa o período de arar a terra para receber o feijão que, geralmente, é plantado em meados de fevereiro e colhido próximo da época de páscoa. A chuva anuncia mudanças na comunidade, bem como celebra outras práticas. Com a chuva, o trabalho na roça se intensifica, as frutas nascem nos pés, a água é um pouco mais acessível. Marca temporalmente a comunidade, seja pela diferença na vegetação que nasce ou que é colhida, seja na diferente rotina que os habitantes assumem após a sua chegada.

De um morro ao outro, Várzea Queimada se localiza em uma espécie de vale e, em sua lateral, se estende um rio que passa a maior parte do ano sem água. Esse rio guarda em seu subsolo resquícios do precioso líquido para o consumo das famílias nas tarefas domésticas, para a higiene pessoal e das casas. Retiradas, inicialmente, das “cacimbas”, espécies de buracos feitos no decorrer do rio para encontrar o líquido e o retirar, hoje, a água é sugada por uma bomba elétrica (instalada por projetos governamentais de tempos atrás) que, durante horas específicas do dia, espalha água pelas tubulações ainda precárias da localidade.

A água potável vem “de cima dos morros”, local em que nasce água limpa e é utilizada para a ingestão. Hoje, a maioria das vertentes está encanada mas, mesmo assim, a água não é suficiente para abastecer toda a população. Na maioria do tempo, a água nem mesmo chega até a caixa d’água do centro da vila. Distâncias enormes, de mais de quilômetros, são percorridas pelas mulheres da localidade para a obtenção de água para o consumo da família. Além disso, desde o ano 2003, a comunidade conta com caminhões pipas da “Operação Pipa” do governo federal, que disponibiliza água “potável” para os comunitários uma vez por semana (e, mais uma vez, não é suficiente para todos).

As casas são, em geral, construídas com tijolos confeccionados pelos próprios moradores, em rituais coletivos de feitura com o barro do “rio morto”, que leva noites e dias. O alicerce da casa é feito com troncos da carnaúba. Poucas coisas são compradas. A maioria delas é extraída da flora local ou confeccionadas pelos próprios moradores.

Geralmente, as casas possuem a mesma estrutura: uma antessala grande, com espaço livre para que as redes dos familiares sejam estendidas caso necessário; uma cozinha que conta com pia, mesa e fogão a lenha e, hoje em dia, com alguns produtos eletro eletrônicos (como geladeira); um quarto para o casal, geralmente os patriarcas da família; e um amplo quintal, onde se criam algumas espécies de animais (como galinhas e porcos), bem como se cultivam plantas para temperos no uso cotidiano na cozinha.

O banheiro, quando a casa possui, está localizado na área externa. Não há sistema de saneamento na localidade. Alguns moradores construíram fossas em suas casas. Outros dispensam o banheiro e realizam suas necessidades básicas na mata. Na ausência de banheiro, estruturas com troncos e galhos da carnaúba são montadas no quintal, que servem para o banho da família residente na casa. O banho é realizado, mesmo com a presença de banheiros, com baldes de água estocados quando da dispensação pelo sistema de água local, que é jogada com pequenas latas de azeite sobre a cabeça ou ombros. Poucas são as residências que possuem chuveiro, a maioria dos habitantes faz uso dessa técnica para o banho diário. Interessante que todas as casas utilizam o mesmo recipiente para jogar água: latas de azeite cortadas no topo.

Com relação à feitura dos alimentos, as mulheres fazem uso de fogões a lenha, que permanecem aquecidos durante todo o dia. Os homens da família (esposo ou filhos) são responsáveis por coletar madeira da mata para que o fogo não se apague. Os alimentos são cozidos com esse equipamento. Dois elementos são essenciais de se ter em cima do fogão: o arroz, que deve ser bem cozido e solto, “não os grudes”; e o feijão, que passa cozinhando desde cedo da manhã. O feijão é retirado da roça da família e o arroz comprado em vendas na localidade.

O feijão passa por todo o processo de plantio, colheita, limpeza e armazenamento na comunidade. Geralmente, as famílias colhem o feijão que, depois de seco, o armazenam em garrafas plásticas para o consumo durante o ano. Na época da chuva, um pouco antes da colheita do feijão “no ponto” – que coincide com a páscoa – os habitantes o retiram ainda verde para o consumo da família. O feijão, dessa forma, é muito apreciado pelos habitantes e marca também as comemorações de páscoa: é o feijão “verde” que é servido e é uma das refeições dessa época do ano.

Além desses dois importantes alimentos, geralmente, a mesa dos habitantes da Várzea Queimada conta com uma “mistura”, que nada

mais é que algum tipo de carne ou ovo. Nem sempre é possível disponibilizar carne para a alimentação da família todos os dias. Mas quando há algum tipo de mistura, esta é feita com carne de carneiro, de boi (vaca), galinha, porco ou carne de caça.

Os animais geralmente são criados pela família no quintal de casa ou em suas terras “na chapada”. Digo quintal de casa, pois é lá o reduto dos animais, mas os mesmos circulam pelas ruas da Várzea Queimada e dividem espaço com pessoas e motocicletas. Carneiros, porcos e galinhas são comuns nas ruas da comunidade, porém, mesmo estando na rua, todos sabem exatamente a que família pertence cada animal. A caça é realizada pelos homens da família. Prática que, aos poucos, vai dando lugar à criação de animais.

No que concerne ao trabalho há duas fontes de obtenção de alimentos e/ou valores financeiros: 1) por meio do trabalho na roça ou com a palha de carnaúba; 2) com a aposentadoria rural. A segunda opção é usufruída pelos “velhos” que, após certo tempo de contribuição ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaicós, conseguem a aposentadoria por idade em função de serem trabalhadores rurais. Esse é o grande montante de dinheiro que entra para a esfera da socialização da localidade e, como veremos no primeiro capítulo, o anciãos são vistos como “marajás” (e “ricos”), dando nome, inclusive, a uma rua da Várzea Queimada.

A primeira forma de geração de renda, e mais comum, é com o trabalho na terra. As famílias se organizam em torno da roça e realizam plantios sazonalmente. Diferentes períodos de tempo são resguardados para determinados tipos de vegetal. A maioria dos produtos é utilizada no consumo da própria família, como o feijão, milho e frutas como melancia, mamão, manga, entre outras. O caju, fato mais recente na localidade, é colhido em período oposto ao feijão e é responsável pela obtenção de recursos financeiros na venda da castanha para comerciantes da cidade de Jaicós que, por sua vez, revendem para outras cidades. A polpa é utilizada pelos habitantes para sucos ou para a alimentação de animais.

O trabalho com a palha de carnaúba é exclusivamente realizado pelas mulheres. Arte e técnica repassada de mãe para filha por gerações (e em toda a região), a confecção de esteiras, chapéus e vassouras a partir do trançado da palha, rende para a população feminina um ganho extra, utilizado, geralmente, para a aquisição de outros produtos, como shampoo, cremes ou roupas para a família. As mulheres vendem seus trabalhos nos dias de Feira em Jaicós para comerciantes da região, que

utilizam as esteiras e chapéus nos trabalhos do campo. Abaixo uma figura do estilo de trançado das mulheres.

Figura 4: trançado da palha da carnaúba.

O trançado com a palha se dá da seguinte forma: depois de seca a palha da carnaúba, os fios são cortados. Esses fios servirão como base para o trançado. Vários deles são colocados sobrepostos (a quantidade, bem como a espessura dos fios, varia de acordo com o tamanho do utensílio que será confeccionado), em um primeiro momento, para em seguida, seguirem o movimento dos braços das mulheres no trançado. A mão fechada, cerrada com o dedo polegar sobre os demais, segura os fios cuidadosamente, enquanto entrelaça com os outros.

A confecção de esteiras, chapéus e vassouras é tida como uma das tarefas essenciais das mulheres. A beleza na feitura da trança e o resultado no produto final são avaliados por todas as demais. Todas as mulheres (inclusive adolescentes e algumas crianças) tecem e, posteriormente, vendem na cidade. Atualmente, está ocorrendo um investimento por parte da Prefeitura Municipal de Jaicós em novos designs e produtos para o artesanato das mulheres da Várzea Queimada, o que vem provocando uma série de conflitos na localidade, principalmente em função da geracionalidade e das técnicas contidas no trançar da palha. Algumas aderiram ao movimento, porém, algumas ainda veem as propostas da prefeitura com maus olhos.

Existe, de alguma forma, uma hegemonia nas formas de fazer e de viver na Várzea Queimada, o que pode nos apontar para esta como

uma “comunidade de prática”17

. Quando voltávamos de uma feira de Jaicós, em cima do “carro”, uma senhora da comunidade me diz “aqui na Várzea Queimada ninguém chama ninguém de senhor ou de patrão. Todo mundo tem as mesmas coisas, ninguém é mais rico que ninguém”. Frase essa que soa interessante e um pouco paradigmática para essa tese, visto que irei esboçar, em linhas gerais, os descompassos e descontinuidades dessa “semelhança” produzida e vivida na Várzea Queimada, a partir de diferentes perspectivas.

Quanto à religiosidade, poderia dizer que a maioria dos habitantes da Várzea Queimada é extremamente católica. Duas são as capelas construídas na localidade: uma destinada a São Sebastião, mais antiga e localizada no centro (na rua principal); outra a São João Batista, mais recente e localizada na rua da Malva, em direção ao povoado de Porteiras. Ambas celebram rituais aos domingos à noite por “leigos” da localidade. Possuem ações como catequese, também ministradas pelos membros das comunidades religiosas. A decisão de frequentar uma ou outra capela é feita pelos moradores, porém, há alguns indicativos que isso se dá, além da posição da casa na vila, por redes de sociabilidade e afinidade que se conectam e fazem com que coletivos frequentem uma capela em detrimento da outra.

Os Festejos de São Sebastião são realizados no mês de janeiro e os de São João Batista, em junho. Ambos agregam uma grande quantidade de participantes que rezam, cantam, dançam e bebem para o santo durante, no mínimo, uma semana. A igreja de São João Batista vem tentando inovar e propôs ações como grupo de jovens ou outros encontros, não tendo obtido, durante muito tempo, grande sucesso. Vez por outra (em torno de uma vez a cada dois meses), uma das capelas é visitada pelo pároco responsável pela Igreja matriz (Nossa Senhora das Mercês de Jaicós), para a realização de uma missa e de outras ações, como visita aos idosos na localidade. Geralmente as missas são realizadas na Igreja de São Sebastião que é tida como “mais central” e que agrega mais fiéis.

Recentemente houve a fundação de uma Igreja Universal do Reino de Deus na localidade. Não há participação ativa de muitos moradores. Aliás, os frequentadores são vistos, pelos católicos, como “conservadores”, e inúmeras brincadeiras e comentários são dispensados para essas pessoas em função das roupas utilizadas e do dízimo pago mensalmente. Ao contrário das capelas da igreja católica, o pastor e sua

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O conceito de comunidade de prática é bastante importante para esta tese e será densamente discutido no próximo capítulo.

esposa residem na localidade e seus filhos frequentam as aulas na escola do vilarejo.

No que diz respeito aos serviços do estado, a localidade conta com uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) que realiza atendimentos semanais, como acompanhamento de gravidez, vacinas e procedimentos emergenciais para idosos ou crianças. Uma técnica de enfermagem da localidade é responsável por abrir e fechar a casa construída para abrigar o “posto de saúde” e, com isso, atua ativamente na resolução dos imprevistos cotidianos. Essa mesma comunitária realiza pequenos procedimentos no posto de saúde, como aplicação de injeções, vacinas ou pequenos curativos emergenciais.

Contam, ainda, com dois agentes comunitários de saúde: Seu Julião que, além de ACS, é um dos líderes da Igreja de São Sebastião; e Cassiana, estudante de serviço social e técnica de enfermagem, também residente da localidade. Ambos dividem a área geográfica da localidade em duas e cada um fica responsável por uma parcela das visitas domiciliares.

Existem na comunidade duas escolas. A mais antiga é chamada de Escola Municipal Manoel Barbosa, que oferece o ensino fundamental, e atende, além dos comunitários, alunos advindos de outras localidades. A escola conta, em seu quadro docente, com todos os professores “nascidos e criados” na Várzea Queimada. Desde o ano de 2002, existe na comunidade também uma “creche”, obra do governo do estado do Piauí, que atende crianças, projetos sociais e, agora, ensino médio. O ensino médio também é oferecido a alunos de outras localidades do entorno da localidade.

A comunidade de Várzea Queimada possui algumas ruas nomeadas:

(a) rua principal, que é onde está a capela de São Sebastião, o “comércio” (vendas que comercializam produtos de todo tipo), e a Escola Manoel Barbosa;

(b) rua dos marajás, que dá acesso à comunidade, que é conhecida com esse nome pelo fato de seus moradores serem todos aposentados, considerados os ricos da comunidade (é na rua dos marajás que está localizada a igreja evangélica);

(c) rua dos mudos (perpendicular à rua principal, no lado direito), conhecida assim, pois, antes da migração de alguns para Jaicós, moravam 11 mudos (agora moram 9) (na rua dos mudos está o posto de saúde da comunidade);

(d) rua das favelas (perpendicular à rua principal, no lado esquerdo), onde, segundo os moradores, existe uma grande quantidade de “pés de favela”, árvore com pequenos espinhos que, quando encostadas na pele, provocam uma grande coceira por bastante tempo;

(e) rua da malva, que dá continuidade a rua dos marajás e que leva para a parte mais distante da comunidade, conhecida por esse nome por ali não ter casas em um passado muito recente (onde está localizada a creche).

Moram hoje em Várzea Queimada aproximadamente 900 habitantes. Não posso precisar a quantidade exata vista a grande circulação de pessoas entre cidades como Jaicós, Matão (SP), São Paulo (SP) e outras da região Sudeste. Recentemente, cidades do sul do Brasil (como Blumenau e Joinville) entraram nesse circuito. Dizem na localidade que há “uma Várzea Queimada em São Paulo”, visto o grande número de migrantes para a capital paulista.

Contei, em minha estada na localidade, 32 mudos. É importante realizar algumas diferenciações entre esses indivíduos que se tornarão relevantes para a argumentação da presente tese. Desses, três (3) vivem na Porteiras, localidade vizinha à Várzea Queimada e não são vistos, nem pelos surdos, nem pelos ouvintes, enquanto parentes. Outros três (3) mudaram da localidade para Jaicós, porém, visitam a Várzea Queimada todos os finais de semana e são vistos como extremamente próximos dos habitantes do vilarejo (são parentes). Uma reside em Itainópolis, outra cidade vizinha, e também visita e recebe visitas dos comunitários regularmente (é parente). Um faleceu aos 16 anos, há mais ou menos 10 anos. Uma vive na cidade de Picos e, tendo deixado uma de suas filhas e seu neto na localidade vai com frequência para o vilarejo. E, finalmente, quatro deles (2 mulheres e 2 homens) são vistos como ‘mudos diferentes’ pelo fato de “não fazerem cena” como os demais mudos parentes da localidade18. Uma tabela com os mudos pode ser visualizada no Anexo I.

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Alguns apontam para o fato de esses mudos terem outros problemas associados. A agente comunitária de saúde da localidade fala que os quatro “são loucos”. Os quatro não saem de casa com frequência, nem mesmo frequentam os rituais coletivos da localidade, ficando sob o domínio e o cuidado dos pais. Caso saiam, não o fazem sozinhos, estando sempre sob a responsabilidade de alguém. Dos quatro, dois nunca vi circulando pelas ruas da Várzea Queimada. Uma delas frequentava, com a mãe, algumas celebrações na capela de São

Não posso precisar o momento, ou o ano exato, do “nascimento” da cena. Pontuo, apenas, o número de mudos e, como uma baliza histórica, o ano aproximado do nascimento do primeiro: em torno de 1950. Ou seja, podemos dizer que a cena da Várzea Queimada, se pensarmos nela enquanto forma de comunicação que se constitui a partir do nascimento do primeiro indivíduo surdo, possui em torno de 60 anos. Porém, como salientarei nos capítulos desta tese, há um processo que mescla mudos e falantes na constituição dessa linguagem que não correria o risco de pontuar o momento de nascimento, apenas, salientar o caráter relacional dessa forma de comunicação.

“Cena” é o nome dessa linguagem que faz uso da gesto- visualidade, do corpo e das expressões faciais para a produção da comunicação. Cena é a “língua de sinais” em uso. “Os mudos fazem cena”, bem como “os falantes fazem cena” entre si e com os mudos.

Não são todas as formas de comunicação gesto-visual que são encaradas, pelos habitantes da Várzea Queimada, como “cena”. Há formas específicas de construção da cena que passa pelas formas de sociabilidade local, bem como por um processo específico de contextualização que possibilita que os habitantes diferenciem e pontuem “diferentes tipos” de cena. Ou seja, há a “cena” produzida pelos comunitários e há “outros tipos de cena”, que são vistos, percebidos e contados como diferentes da “cena” usada pelos mudos e falantes na Várzea Queimada.

Outra questão importante é que essa forma de comunicação é amplamente difundida entre mudos e falantes, e oculta, pelo fato de os habitantes serem aptos a sinalizar as diferenças comunicacionais produzidas para com os surdos na grande maioria das sociedades estudadas pelos pesquisadores dos estudos da deficiência, estudos surdos ou áreas correlatas.

Além disso, os padrões de nomeação dos mudos (e não surdos ou deficientes auditivos) apontam para uma forma particular de construção de padrões de similaridade e diferença entre mudos e falantes na localidade. Essa nomeação não é simplesmente lexical, mas está bastante imbricada com a forma como a comunicação foi construída e está em voga na Várzea Queimada. O processo de socialização da Várzea Queimada, que constrói a comunidade de prática e, consequentemente, as formas de fazer e interpretar a linguagem gesto-

Sebastião. O outro circulava entre a casa dos parentes, vez por outra, mas também, com a (e sob a tutela da) mãe.

visual, faz a cena circular pelo vilarejo, classificando os mudos, as histórias e as características sobre eles.

Essas características peculiares colocam a Várzea Queimada em uma possibilidade comparativa com o que a bibliografia vem apontando como comunidades produtoras de uma forma diferenciada de relação entre surdos e ouvintes ou como lócus de nascimento de “línguas indígenas ou rurais de sinais” (como apontado na revisão bibliográfica já apresentada) que, pela natureza do objeto, se demonstram imensamente diferentes dos estudos sobre surdez ou língua de sinais nas cidades ou entre a “cultura surda”.

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Esta tese busca acompanhar os processos sociais, procurando pistas sobre os espaços em que os elementos importantes no trabalho de