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2. IDEOLOGIA DA SEMELHANÇA

2.1. Os núcleos familiares e as famílias

A ideologia de que “somos todos parentes” vincula pessoas e lugares, histórias e memórias, experiências e práticas. Expõe um senso geral de pertencimento que guia algumas relações sociais, especialmente quando surge um contraponto com outros que não são parentes. A ideologia dos parentes direciona alguns processos de identificação internas que provocam leituras da realidade social nela pautadas.

Porém, a ideologia é refinada com o processo de conhecimento e reconhecimento do que vem a ser família, ou quem são os membros que compõem determinada família. Dizendo de outra forma: a ideologia do “somos parentes” é tornada complexa com as segmentações que a ideia de família provoca. Cabe salientar que não há, em voga no vilarejo, a definição de núcleo familiar: o que existe é a categorização de família como polifônica que engloba diferentes perspectivas, dependendo de

como o termo é utilizado no dia a dia. Aqui, farei algumas considerações sobre as duas formas como ela é referida, ora para representar um núcleo maior de pertencimento, ora para designar moradores de uma casa.

Mesmo com a definição de que todos são parentes, os habitantes de Várzea Queimada realizam algumas designações específicas para se referir à família. Família é aquele núcleo de pessoas mais próximas, aquelas pessoas com quem o cotidiano é dividido de forma mais enfática, aqueles para quem se “presta satisfação”.

Certo dia, estávamos sentados em frente à casa de um dos moradores quando começa uma movimentação em frente à escola do vilarejo. O responsável pelo tumulto era um menino de 18 anos que de acordo com alguns estava “louco”. Ele queria entrar embriagado na escola e ameaçava agredir algumas professoras por não permitirem sua entrada. Ele se debatia e, mesmo impedido de cruzar o portão pelo vigia, tentava pular o muro. A comunidade toda estava ao seu redor, sem saber o que fazer. Quando começaram alguns indicativos de resolução do problema: “chama a família dele, vai lá chamar a mãe ou o tio dele, alguém tem que fazer alguma coisa”, diziam alguns. Imediatamente o tio foi chamado e, com o seu aval, o menino foi contido com pequenas cordas na carroceria de um caminhão.

De acordo com os comunitários, não era indicado ninguém tomar alguma atitude, pois apenas “a família” poderia fazer algo. No caso, o tio pôde aprovar a ação que resultou na solução do problema. Na ausência da mãe (já que o pai do menino era falecido), apenas outro membro da família poderia decidir sobre os procedimentos a tomar, não cabendo à comunidade julgamentos.

Família é também o núcleo com os quais se comemora alguns rituais católicos, como o Natal, o final de ano, a Páscoa ou a Quarta- feira de Cinzas. Esses rituais são extremamente importantes e marcam tanto o calendário da comunidade quanto as formas de organização. Os membros da família são assim definidos quando da divisão em dois polos diferentes de participação de refeições nesses dias, sendo um deles na casa do grupo familiar da mulher e outro na casa do grupo familiar do homem. Explico melhor: Carla, certo dia, me falava que seus familiares eram divididos em dois grupos: os que estavam na casa de seus avós maternos e os que estavam na casa de seus avós paternos nas datas ritualísticas. Nessa definição, percebemos a vinculação de um número maior de indivíduos, que transcende a casa de morada. Podemos pensar, assim, na ideia de núcleos familiares.

Geralmente, o casal aglutinador das refeições nessas datas são os mais velhos da comunidade, a família nuclear dos patriarcas. Dessa forma, os filhos, netos e agregados (esposos, esposas ou namorados) vão para casa dos mais velhos. É papel da mulher matriarca a coordenação da feitura dos alimentos. Todas as demais apenas a auxiliam na cozinha32.

A presença de determinadas famílias (que formam o núcleo familiar) nos rituais está, ao mesmo tempo, vinculada a dois processos igualmente válidos, que os definem enquanto pertencentes àquele grupo: um deles é a questão da descendência consanguínea (indivíduos na árvore genealógica) e do sobrenome; a outra é o compartilhamento da experiência coletiva familiar por meio de características comuns aos seus membros. Ambos estão vinculados entre si, porém, assumem importâncias diferentes na vivência dos comunitários.

Quando falamos em consanguinidade e sobrenome, falamos da presença de ancestrais comuns, abaixo do patriarca da vila, na genealogia. Falamos, especificamente, da segunda geração de habitantes (desbravadores) de Várzea Queimada, que figuram como ancestrais comuns dos comunitários para serem definidos enquanto núcleo familiar. É a partir deles que serão categorizadas as demais pessoas por meio da descendência e do sobrenome. E são eles que aglutinam a família nos rituais citados acima.

A segunda geração dos desbravadores de Várzea Queimada são os que hoje estão com idade mais avançada na vila. Descendentes diretos dos primeiros a chegar na comunidade (vide a árvore genealógica em anexo – Anexo II), eles são os que aglutinam, ao seu redor, as demais famílias. Os núcleos centrados nos patriarcas da segunda geração de desbravadores foram construídos como uma estratégia adotada logo no início da colonização da vila (como veremos no capítulo três), com o casamento entre primos. São esses casamentos que geraram os casais que hoje são os mais velhos e que aglomeram os demais nos rituais e nas denominações de núcleos familiares.

Esse processo apontado a partir da segunda geração é importante visto que são eles que aparecem como ponto zero, ou aglutinador dos demais. É a partir deles também que várias outras definições vão se

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Porém, cabe sempre lembrar, que a cozinha é propriedade da dona da casa, ou seja, as demais mulheres apenas “cumprem ordem” da soberana daquela residência, sendo, no final das contas, dela a responsabilidade pelo cardápio e pela gostosura da refeição.

construir. Como veremos no decorrer da argumentação, eles são ponto chave para pensarmos em termos de competência com a cena.

Com exceção de Dona Cristina e Seu André, todos os demais da segunda geração (importantes para esta tese pela presença de descendentes diretos na vila) ainda residem em Várzea Queimada. Mesmo morando em São Paulo, Dona Cristina e Seu André continuam passando os dias de rituais importantes na comunidade. Seu André, inclusive, está construindo uma nova casa em Várzea Queimada, almejando se mudar para o vilarejo tanto antes quanto for possível. Certo dia ele me disse, referindo-se a seu sonhado retorno para a comunidade: “eu estou construindo uma casinha aqui, quero voltar pra minha terra o quanto antes. Quero morrer aqui, em Várzea Queimada. Se eu morrer em São Bernardo, quem vai fazer minha vigília? 33”. Ele me dizia isso preocupado com sua morte e sua pouca rede de reciprocidade na cidade grande.

E essa questão da segunda geração dos habitantes aponta também para o processo de nomeação, muito similar a outras localidades nordestinas. Como apontado por Costa (1985), o sistema de nomeação no nordeste (tendo como caso etnográfico o Piauí) indica, primeiro, a família com a qual a pessoa está vinculada. José de Pedro designa que José é filho de Pedro. Entre tantos Josés, esse do qual o falante está se referindo (nesse caso hipotético), é um específico que, na estrutura de parentesco, é filho de Pedro.

A preposição “de” no processo de nomeação indica um pertencimento para além da mera individualidade. Em Várzea Queimada, as nomeações individuais assumem, mais ou menos, a mesma estrutura. Fulano é de Cicrano pontua um determinado indivíduo dentro da estrutura de parentesco o que, além de simplesmente nomear,

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Vigília é o nome dado pelos habitantes da Várzea Queimada para o ritual realizado pouco antes da morte “biológica” de alguns de seus habitantes. Tive a oportunidade de participar da vigília de S. Donato. Esse senhor estava adoentado, tendo sido ‘desenganado’, tanto pelos médicos da cidade, quanto pelos comunitários. Visto a sua profunda situação de enfermidade, foi dado início a vigília. A cama onde seu Donato estava deitado foi posta no centro da sala da casa e inúmeras cadeiras dispersas ao redor. As pessoas da comunidade, literalmente, vigiavam S. Donato dia e noite. Todas as horas, inclusive de madrugada, pelo menos duas pessoas acompanhavam o enfermo, o vigiando. Isso aconteceu por mais de um mês quando S. Donato faleceu, por volta das 23h. Diria que a vigília é o processo de aguardar pelo falecimento ou, em outras palavras, é a despedida da comunidade para o ente pertencente da coletividade.

significa dar uma série de características que são próprias da parcela a qual o indivíduo faz parte no grande mapa genealógico da localidade.

Todas as pessoas da localidade são referidas em relação ao seu pai ou à mãe marcando, assim, o núcleo familiar ao qual pertencem. Julião de Eduardo é o marido de Dona Augusta, filho de Eduardo, marido da irmã (Mara) de Manoel Barbosa. Assim se formam os demais nomes. Os homens levam como segundo nome, quando registrados em cartório, o nome do pai. As mulheres, na mesma lógica, levam o nome da mãe. Getúlio José é o nome do filho de José com Maria. Alexsandra Maria é o nome da filha de José e Maria.

Esse sistema de concretização dos núcleos familiares a partir da descendência perpetua o pertencimento no nome próprio: mesmo depois de casados, o homem e a mulher continuarão levando o nome dos pais. Mesmo constituindo outra família eles serão lembrados pelos seus nomes do outro núcleo familiar ao qual pertencem, o de seus pais. Mais do que apenas um sistema de nomeação que refina o pertencimento, o sistema de nomeação pode ser visto como uma concretização quase que perpétua dos núcleos familiares originais.

O outro aspecto que vincula os indivíduos em torno de um núcleo familiar é a relação que eles estabelecem entre si a partir de experiências, histórias ou características “de família”. As histórias de família marcam tanto os indivíduos que, inclusive, “mau hálito” pode ser lido enquanto um indicativo familiar. Ângela fez essa relação um tanto quanto inesperada quando Cassio, usando a cena, falava que Juliana estava com mau hálito. Dizia Ângela que o mau hálito era uma característica de toda a família de Juliana, desde os pais dela.

O sistema de nomeação e a ancestralidade comum pontuam também histórias similares pautadas em uma “experiência de família”. Em vários momentos tive a oportunidade de ver as coisas serem designadas para um indivíduo a partir de uma história de família. “O Fulano é assim porque o aconteceu determinada coisa com o pai dele” é uma frase que explica ações dos filhos ou até mesmo netos. E não apenas atitudes tomadas pelos ascendentes de determinada pessoa, mas também trejeitos e formas particulares de movimentar corpo podem servir como indicativo de avaliação de determinada pessoa.

Um dos núcleos familiares marcados por trejeitos é o de Patrício. Falecido à época da minha estada em campo, esse senhor foi conhecido pela forma característica como parava para descansar após longas caminhadas: mão encostada no quadril, braço formando um triângulo com o corpo. De acordo com os comunitários, todos os pertencentes a

seu núcleo familiar possuem esse mesmo hábito observado desde seus filhos até seus netos e os ainda pequenos bisnetos.

Vejamos, agora, o caso de Igor. A paternidade do menino sempre foi questionada pelos habitantes de Várzea Queimada, inclusive pela sua mãe que colocou três possíveis pais na lista. Em um passeio pela comunidade, em que Igor estava junto, o menino começa a correr e, pela corrida dele, avaliações foram feitas pelos meus companheiros de caminhada: diziam que a forma como ele corria era muito semelhante a forma como um dos possíveis pais corria. Isso poderia indicar paternidade.

Assim com o mau hálito que assola Juliana e a liga a sua família e a forma peculiar de Patrício que é seguida por todos de seu núcleo, o correr de Igor denuncia seu possível pai. A ascendência marca o lugar onde os rituais serão realizados e compõem o quadro de onde parte as definições a partir de características físicas, formas de movimentos corporais, experiências vividas na história e o pertencimento.

É no núcleo familiar que, de alguma forma, se reproduz os padrões da sociedade geral, porém, com particularidades experienciais ou pessoais (que, no caso, viram “de família”). Nos núcleos familiares se concretizam os “tipos sociais” que são vistos pela comunidade. Assim, cada núcleo possui representantes de cada marcador importante em Várzea Queimada.

Uma das comunitárias me contava sobre seu sobrinho que morava em São Paulo. Ele havia visitado a comunidade após muitos anos. Disse que ele estava casado com outro homem na capital. Aproveitou a oportunidade para comentar de outros membros de sua família que são homossexuais. Disse ela “o povo aqui fica perguntando se eu não tenho vergonha de dizer que tem três boiolas na minha família, e eu digo que não, em cada família tem de tudo, ladrão, assassino, drogado, boiola, de tudo”.

Ao mesmo tempo em que os núcleos familiares têm experiências que os particularizam e possibilitam leituras pautadas em continuidades entre aqueles considerados membros, elas também congregam os tipos sociais característicos de Várzea Queimada. Como aponta a fala apresentada acima, cada família tem seu ladrão, assassino, ou outra denominação. Ou seja, também na configuração de cada núcleo familiar existe certa similaridade34.

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Como nos aponta Villela (2009), referindo-se ao sertão de Pernambuco, as pessoas são reflexos de percepções que outras fazem delas. E, como prossegue na argumentação do autor, isso se associa, principalmente, com a genealogia,

O que é interessante, entretanto, é que não são todas as famílias em Várzea Queimada que “tem” os seus mudos. Como veremos adiante, esse fato é importante quando pensamos em termos da presença e da circulação dos mudos no território da comunidade, e, consequentemente, na circulação da cena e das competências em torno dela.

E, sem dúvida, as famílias demarcam e são demarcadas por espaços dentro da vila. Em um “território de parentesco” (WOORTMANN, 1994) que é a Várzea Queimada, as famílias e os núcleos familiares ocupam lugares específicos, tanto na vila quanto nos territórios do roçado. A vila é organizada de acordo com espaços de família que, como veremos no decorrer da tese, foram construídos de acordo com uma história de ocupação e divisão territorial no decorrer dos anos.

Vejamos como a vila se organiza de acordo com os núcleos familiares e as famílias.

2.2. Os núcleos familiares, as famílias e a organização