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Os núcleos familiares, as famílias e a organização geográfica

2. IDEOLOGIA DA SEMELHANÇA

2.2. Os núcleos familiares, as famílias e a organização geográfica

Várzea Queimada se organiza de forma a contemplar dois espaços distintos, a vila e a roça (ou a chapada). Para chegarmos até a vila, é necessário percorrer alguns quilômetros em estrada de chão, por entre as roças dos parentes que residem, na maioria das vezes, no povoado.

A chapada é o lugar de trabalho, o lugar de plantio e cultivo de frutas e outros vegetais, bem como o espaço de cuidado dos animais. Na chapada que se dá, grosso modo, o trabalho do dia a dia da maioria dos habitantes e é de lá que vem a maior parte da alimentação. A vila, por outro lado, configura-se como o espaço de socialização e de morada, local onde os habitantes construíram suas casas e passam grande parte do seu tempo, entre rituais diários.

Ambas se organizam, chapada e vila, de acordo com os núcleos familiares. Se organizam de acordo com a segunda geração de moradores da Várzea Queimada. Na chapada, os roçados são todos próximos e a família costuma trabalhar conjuntamente no cultivo dos vegetais, mesmo que as roças sejam divididas de acordo com cada núcleo (pautado no homem).

que está diretamente vinculado com a descendência. Ou seja, as reflexões sobre o que os outros fazem de alguém está relacionado com os processos de família.

Saindo do domínio da chapada, a vila pode ser vista quase que em sua totalidade de cima dos morros. Situada em um vale e espalhada ao longo de um rio, a vila se organiza de forma a contemplar diferentes posições de casas, tendo em seu “centro” (que não é o centro geográfico, mas o centro de movimentação) a igreja, a escola e a maior parte do comércio local. Abaixo, podemos visualizar a vila vista de cima de um dos morros, imagem do ano de 2009.

Figura 5: vista geral da Várzea Queimada.

É possível visualizar no centro da fotografia a igreja de São Sebastião, pintada de amarelo e figurando soberana na paisagem “do centro” da vila. No seu oposto (parte dos fundos aparecendo na foto), a Escola Municipal Manoel Barbosa, também importante referência. Também podemos visualizar a antena de televisão, marco na história da comunidade quando construída. No entorno, as residências dos comunitários. Os pontos verdes são as carnaúbas, vegetação nativa que insiste em nascer e se manter verde mesmo na época da seca, e importante matéria prima para a produção dos artesanatos femininos (as

folhas), como para a construção das estruturas das casas dos comunitários (o caule).

A vila segue a mesma lógica e aponta mais uma subdivisão da ideia de família discutida anteriormente. As casas são organizadas no entorno da casa dos patriarcas (núcleo familiar) e, poderíamos dizer que cada casa também compõe uma família. Assim, refinamos ainda mais a forma segmentada de organização de Várzea Queimada, em que parentes são todos (que vincula território e memória), que núcleo familiar é composto por alguns que frequentam rituais específicos na casa dos patriarcas (compartilhando experiências, descendência e certas características) e que família (ou o núcleo mínimo) são aqueles que moram na mesma casa.

Vejamos como ficaria a representação visual da segmentação da ideologia de identificação na Várzea Queimada:

Figura 6: representação visual da hierarquia de identificações.

A organização da vila parece mostrar os três níveis apresentados acima de forma extremamente vinculada. Toda a comunidade, enquanto espaço territorial está unida em um domínio dos parentes, já que “aqui nós somos todos parentes” – como o englobante geral dos demais. Alguns espaços da vila são ocupados por núcleos familiares em volta de um casal ego, formado pela segunda geração na árvore genealógica de Várzea Queimada. Esses núcleos são englobados pela ideologia dos parentes e englobam as famílias. E assim englobam as casas, domínio primeiro das “famílias” ou a menor parcela dos núcleos familiares.

As casas são compostas, basicamente, por pai, mãe e filhos. Geralmente, quando um filho se casa, o novo casal constrói (ou ganha)

uma casa no entorno do núcleo familiar do homem. Como já apontado, algumas mulheres conquistam a autonomia após a maternidade e ganham uma casa para gerir com os filhos. Outras vezes, as filhas, mesmo mães, continuam a morar com os pais.

Mesmo a família tendo, em seu seio, vários “tipos sociais”, como salientado pela comunitária e expresso no item anterior, não há mudos em todas as famílias. Mesmo “os mudos” sendo considerados, de alguma forma, um tipo social diferente dos demais (por uma série de características particulares que os transformam em sujeitos liminares, como veremos no capítulo quatro), eles não são encontrados em todos os núcleos familiares. Isso se torna relevante na medida em que irá nos auxiliar na reflexão sobre a circulação dos mudos e da cena pelo território da comunidade, apontando diferenças com relação às formas como é dada a competência na cena entre os habitantes de Várzea Queimada.

Abaixo, uma ilustração apontando a localização dos núcleos familiares com mudos na comunidade:

Figura 7: representação visual da vila e organização das casas e núcleos.

O desenho segue a lógica da comunidade com as ruas, a divisão com a outra comunidade (Porteiras) e alguns pontos de referência

principais, como a escola e igreja. Trouxe, na representação, duas formas de organizar a discussão que seguem a lógica apresentada anteriormente: as casas, em que cada número expresso no desenho representa uma família; os círculos e as letras representam os núcleos familiares. Isto está posto, dessa forma e apenas com essas casas, de modo a contemplar as famílias “com mudos” para, posteriormente, pensarmos nas formas da circulação deles e da cena.

Vejamos onde estão localizadas, no decorrer da vila, as famílias “com mudos” de Várzea Queimada de acordo com as casas.

Casa (1): Márcia (muda de 26 anos) com seu esposo e sua filha. Casa (2): Caetano e Bianca, com seus filhos, sendo deles Carla (23 anos) e Priscila (17 anos) mudas, e seu neto Igor (mudo de 7 anos). Moram ainda na casa uma filha e uma neta do casal.

Casa (3): Cleiton (mudo de 45 anos), sua esposa e filhos. Casa (4): Gerson (mudo de 43 anos), sua esposa e filhos.

Casa (5): Otávio, onde reside uma muda de aproximadamente 23 anos.

Casa (6): Larissa (muda de 51 anos) e seus filhos.

Casa (7): Benito e sua esposa. Esta casa é frequentada por seu neto, Paulo, mudo de aproximadamente 20 anos, que reside em Jaicós.

Casa (8): Jorge, seus filhos e netos. Entre eles Juliana (muda de 20 anos) e Sabrina (muda de 32 anos). Também Lucas (mudo de 5 anos), filho de Sabrina.

Casa (9): Ângela e Tales com seu filho Cassio, mudo de 19 anos. Casa (10): Casa utilizada para dormir por Cláudio, mudo de 39 anos.

Casa (11): Casa de Dona Sheila “crente”. É frequentada por sua neta muda, Patrícia, de 23 anos, que mora na cidade de Itainópolis, PI.

Casa (12): Marcos, esposa e filhos. Marcos é um mudo de 29 anos.

Casa (13): Clóvis e Lorena com seus filhos, entre eles Ana, muda de aproximadamente 20 anos.

Casa (14): Vera e sua filha Liane, ambas mudas. Vera com mais de 30 anos e Liane com 5 anos.

Casa (15): Dona Catarina, filhos e netos. Essa casa é a referência para Carmem, filha muda de Dona Catarina com mais de 50 anos, que mora na cidade de Picos-PI.

Casa (16): Joel, mudo de 42 anos.

Casa (17): Raquel e filhos. Raquel é muda com mais de 40 anos. Casa (18): Lucicleide, muda de 48 anos, e filhos

Casa (19) Dina e esposo. Dina é muda de 53 anos.

Casa (20): Botelo, esposa e filhos, entre eles José, mudo de mais de 20 anos.

Casa (21): Dona Rosa, Seu Geraldo, filhos e netos. Um dos netos é Jeremias, mudo de 15 anos.

Casa (22): Dona Ticiana, filhos e netos. Entre os filhos, três mudos: Sofia (30), Indiara (32) e Tulio (28).

Como visto, as casas se organizam com base em pai, mãe e filhos ou mãe e filhos. As duas casas com apenas uma pessoa, de Cláudio e Joel, são apenas “dormitório”, pois os mesmos realizam as refeições e participam do cotidiano nas casas de seus núcleos familiares.

Essas casas estão em permanente diálogo com outras mais ou menos próximas, com quem mantêm relação de consanguinidade ou afinidade. Enfim, elas formam, com outras casas (e outras famílias), os núcleos familiares que trocam, entre si, histórias, coisas e rotina.

Vejamos, ainda de acordo com o desenho apresentado acima, como os núcleos familiares estão divididos. Privilegiei apenas aqueles com maior contato entre casas. Os demais (casas que não estão inseridas nos núcleos familiares) serão relacionadas posteriormente a esses núcleos.

Núcleo Familiar (A): está ancorado em Dona Augusta (que hoje reside em Jaicós) e S. Julião (falecido). Todos que residem nas casas de (1) a (4) são membros do núcleo familiar de Dona Augusta por consanguinidade. Além dos que hoje moram nessas casas na comunidade, posso inserir mais três mudos que atualmente residem em Jaicós (mantendo a mesma forma de organização em torno de casas e núcleos familiares) e mantêm um diálogo constante com a comunidade, visitando-os semanalmente. São eles: Valêncio, mais de 30 anos, casado e com filhos; Moisés, 27 anos, casado e com filhos; e Ederson, 22 anos. Reside também nesse núcleo Hortência com seu esposo e filhos. Abaixo, o parentesco do núcleo, com destaque em vermelho para os moradores da comunidade e azul para os mudos.

Figura 8: núcleo familiar (A): Dona Augusta e Seu Julião

Núcleo Familiar (B): esse núcleo se organiza em torno de Jorge e Dona Isaura (falecida). É composto por filhos e netos do casal. Alguns moram ainda na casa dos pais, outros ganharam uma casa própria, porém, continuam frequentando a casa principal para refeições e outros afazeres cotidianos. Abaixo, a árvore genealógica do núcleo com os moradores da comunidade em vermelho e os mudos em azul.

Figura 9: núcleo familiar (B): Jorge e Dona Isaura

Núcleo Familiar (C): centrado em Clóvis e Lorena. É composto por duas casas, (12) e (13), mas tem um forte diálogo com as demais. Está vinculado a Patrício, já falecido, mas que, de alguma forma, dá

Legenda Não residentes na Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada mudos Mudos não residentes na Várzea Queimada Cleiton Gerson

Caetano WesleyHortência Valencio Bastião Moisés Luis Ederson

Julião Dona Augusta Manoel Barbosa Maria Eduardo Mara Bianca Osvaldo Lorena

UlissesMarcia PaulinaCarla Priscila Daniela

Igor

Ivana Lauritania

Legenda

Não residentes na Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada

Moradores da Várzea Queimada mudos Juliana Sabrina Claudio Larissa Isaura Jorge

Eduardo Mara Manoel

Barbosa Maria

início ao desenvolvimento deste núcleo. Abaixo a árvore genealógica com o mesmo destaque dos demais.

Figura 10: núcleo familiar (C): Clóvis e Lorena

Núcleo Familiar (D): centrado em Dona Catarina e Seu Godofredo (falecido). É composto pelas casas de (14) a (19) que são ocupadas pelos filhos e netos de Dona Catarina. As casas assumem grande diálogo entre si, com uma considerável circulação de seus habitantes. Abaixo a representação genealógica.

Figura 11: núcleo familiar (D): Dona Catarina e Seu Godofredo

Legenda Não residentes na Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada mudos

Núcleo Familiar A Núcleo Familiar B

Clovis Lorena

Marcos Chica Ana

Seu Dionísio Dona Salviana Eduardo Maria Isaura Julião Patrício Gorete Legenda Não residentes na Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada mudos Mudos não residentes na Várzea Queimada Dina Carmem

Lucicleide Raquel Livia Vera Tales Joel Catarina Godofredo João Preto Maria Rufino Joana Liane

Dei prioridade pela definição dos quatro núcleos familiares apresentados acima por serem eles os que congregam o maior número de mudos. Além disso, servem como pontos de articulação para a sociabilidade local, especialmente no que tange aos mudos e a cena. As demais casas, que não estão situadas em nenhum desses núcleos, se ligam, por meio da consanguinidade ou da afinidade por parte dos mudos, as que estão destacadas no desenho. Vejamos.

A casa (9), de Ângela e Tales, estabelece relação direta com três núcleos familiares, seja por consanguinidade, seja por relação de afinidade. Com o núcleo (D), possui relações de consanguinidade, em virtude de Tales, e é lá que é realizada a maior parte dos rituais e dos contatos que demarcam a família. Com o núcleo (B) em virtude de seu filho, Cassio, que estabelece intenso contato com os outros mudos desse núcleo. Ângela, aliás, havia estabelecido um “possível casamento” entre Cassio e Juliana, visto que os dois tem mais ou menos a mesma idade. Porém, isso não se confirmou com o tempo. E com o núcleo (A) também em virtude de critérios de sociabilidade e, ao mesmo tempo, consanguinidade. Ao mesmo tempo em que esta família não está diretamente vinculada a nenhum dos núcleos citados, ela estabelece fortes relações com três deles, por consanguinidade, mas também por afinidade entre Cassio e os demais mudos. Vejamos o gráfico de parentesco de Ângela e Tales, com a vinculação com os núcleos.

Figura 12: relação família Angela e Tales com outros núcleos

Legenda

Não residentes na Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada Moradores da Várzea Queimada mudos

Núcleo Familiar D Núcleo Familiar A Núcleo Familiar B

Tales Angela

Cassio

Godofredo Catarina André Cristina

Eduardo Mara

Dona Augusta

Assim como nos aponta Marsaja (2008), se referindo a vila de Desa Kolok em Bali, na Indonésia, os surdos são também responsáveis por processos de sociabilidade que transcendem as vinculações previamente estabelecidas entre as famílias. Eles, a partir de suas características socialmente atribuídas, constroem processos que ligam famílias e núcleos, aumentando a sociabilidade, bem como, colocam em prática a cena (comunicação gesto-visual). Cassio, e a família ou casa (9), é um grande exemplo desse fenômeno.

As casas (5), (7) e (20) não assumem grande vinculação com as demais. Elas têm como referência outros núcleos familiares e os mudos lá presentes são vistos como “diferentes” por não serem compreendidos ou por não frequentarem os rituais coletivos. Eles não são postos no mesmo pé de igualdade com os demais e, por isso, não estabelecem intensa relação com os núcleos citados.

Jeremias, o mudo da casa (21) participa principalmente do núcleo (D), frequentando com regularidade essas casas. Jeremias também frequenta a escola e participa dos rituais de sociabilidade, principalmente, com outros núcleos, não estando totalmente vinculados.

Na casa de número (22) estão os mudos “das Porteiras”, não bem quistos pelos demais na localidade. São tidos como membros de outras famílias e não são postos na escala dos parentes. A casa (22) está inserida na comunidade de Porteiras que faz parte do município de Massapê do Piauí.

Evidentemente, existe um maior número de indivíduos que fazem parte dos núcleos familiares do que os nomeados e representados nas árvores genealógicas expressas acima. O que se torna particularmente relevante para esta tese é o fato de as famílias se organizarem em torno de egos que estão na segunda geração de desbravadores de Várzea Queimada e, de alguma forma, possuírem algum vínculo entre si. O vínculo, além de construir “formas de ser e estar” comuns, dando assim o caráter de comunidade de prática às famílias, também fortalece a circulação das pessoas por entre os núcleos.

No processo de todos os membros circularem e, como esboçado no item anterior, serem esperados nas famílias que compõem seu núcleo, os mudos possuem importância fundamental. Primeiro, pois eles ampliam o leque de possibilidades de circulação entre as famílias pelas afinidades construídas ao longo do processo de socialização. Além disso, é com os mudos e, por assim dizer, com as famílias acima apresentadas, que circula a cena em Várzea Queimada.

Como podemos perceber, os mudos e suas famílias estão espalhados por todo o território de Várzea Queimada. A posição das

casas dos mudos e de seus familiares irá influenciar também nas definições mais refinadas de competentes na cena. São as famílias apresentadas acima cruciais na construção e reprodução da cena no vilarejo.

3. CIRCULAÇÃO DOS MUDOS E CIRCULAÇÃO DA CENA: