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A grande maioria das habilidades desenvolvidas pelos indivíduos em seu cotidiano é atingida com relativa facilidade. Pessoas aprendem a jogar xadrez, a digitar, a dirigir um carro, a nadar, a jogar golfe em algumas semanas ou meses. No entanto, o desenvolvimento de habilidades de alto nível leva muito tempo, o que é corroborado por estudos em diferentes domínios (SOSNIAK, 2006). Segundo Feltovich, Prietula e Ericsson (2006), a expertise é um processo de longo prazo, resultado de ricas experiências no mundo e de prática intensiva. Por exemplo, pianistas concertistas reconhecidos internacionalmente trabalharam

aproximadamente 17 anos de sua primeira lição formal até seu reconhecimento internacional. Para nadadores olímpicos, cerca de 15 anos são percorridos entre o período em que começaram a nadar e o tempo em que conseguem uma vaga em uma equipe olímpica (SOSNIAK, 2006).

Apesar das indicações de pesquisadores acerca da relevância do tempo para pessoas atingirem um nível de excelência (ERICSSON, 2006b; GALVÃO, 2000, 2003, 2007b; SONIAK, 1990, 2006), o número completo de anos transcorridos para a aquisição de conhecimento e de habilidades de alto nível e a forma pela qual o tempo é distribuído nas atividades diárias dos experts são ainda questões imprecisas (SOSNIAK, 2006). Nesse sentido, vários métodos de pesquisa têm sido usados para investigar e, consequentemente, descrever os caminhos da performance, como métodos historiográficos (SIMONTON, 2006), entrevistas retrospectivas (SOSNIAK, 2006) e estudos de diários de práticas (DEAKIN; CÔTÉ; HARVEY, 2006). Os estudos empreendidos com esses métodos indicaram que, para melhorar a performance, é necessária a dedicação intensiva a atividades práticas, as quais permitem ao indivíduo trabalhar para aprimorar aspectos específicos com ajuda de professores, com oportunidades de reflexão, de exploração de alternativas, de resolução de problemas, assim como oportunidades para repetição e de feedback informativo (FELTOVICH; PRIETULA; ERICSSON, 2006).

O centro da relevância da prática reside nas evidências de que a performance expert é adquirida gradualmente e que o progresso efetivo requer a oportunidade de o sujeito encontrar satisfatório treinamento de tarefas, as quais o executante pode dominar sequencialmente. A prática deliberada oportuniza atividades ao executante que são, inicialmente, distantes de uma real performance segura, no entanto podem ser dominadas com horas de dedicação concentrada em aspectos críticos e podem ser gradualmente refinadas (ERICSSON, 2006b).

Estudos empíricos sugerem que a aprendizagem expert envolve uma mudança gradual na responsabilidade pelo processo de aprendizagem, que é inicialmente baseada em apoio externo, tornando-se progressivamente mais internalizada e, finalmente, autorregulada à medida em que a performance se aprimora (ERICSSON, 2006b; ERICSSON; TESCH- RÖMER; KRAMPE, 1990; GALVÃO, 2000, 2003; SOSNIAK, 1990). O processo de aprendizagem do expert pode ser pensado, então, em três fases interativas: apoio externo, transição e autorregulação.

O apoio externo diz respeito a uma estrutura ambiental na forma de mãe, pai, parente próximo e professores, que oferecem não somente os suportes materiais, como também exercem pressão para que uma rotina de estudos seja mantida (GALVÃO, 2003). Trata-se,

pois, de uma rede social de apoio, encarregada de valorizar os esforços específicos do novato, assim como os esforços empreendidos por ele no sentido de atingir a excelência (SOSNIAK, 1990).

Em investigações sobre os antecedentes de indivíduos que se sobressaíram por suas produções intelectuais e/ou criativas, destacam-se as características do ambiente onde viveram seus primeiros anos de vida e os traços de personalidade aí cultivados. Tem se observado, nas trajetórias de vidas de experts, um número representativo de pais que encorajaram a exploração intelectual, que demonstraram aprovação pelo desempenho do filho, que apoiavam interesses específicos da criança e que respondiam e estimulavam perguntas (ALENCAR; GALVÃO, 2007). Esses pais, pensando no futuro promissor dos filhos, despendem consideráveis somas de dinheiro com professores e equipamentos e dedicam boa parte de tempo escoltando suas crianças para treinamentos e competições. Em alguns casos, os novatos e seus familiares mudam-se para ficarem perto do professor escolhido ou obter facilidades de treinamento (ERICSSON, 2006b).

Para atingir altos níveis de performance, a capacidade do professor é de grande importância. Tem sido um ponto de concordância em estudos baseados em entrevistas retrospectivas e em outras investigações que pessoas que demonstraram excepcional realização, quase sempre, tiveram a experiência de estudar com grandes mestres; isto é, professores que eram considerados de renomada reputação no domínio e que eram reconhecidos por preparar novatos para atingirem níveis de excelência (ERICSSON; RÖMER; KRAMPE, 1990; SOSNIAK, 2006).

O período de transição é caracterizado por aprendizagem e por ensino com maior focalização na aquisição de conhecimento e no desenvolvimento de habilidades específicas. Esse período de aprendizagem é marcado por considerável atenção nos detalhes. A habilidade técnica, as regras e o vocabulário próprios da área são objetivados sistematicamente por professores e por estudantes. Os professores encorajam e estimulam explicitamente os estudantes a participarem de recitais, competições, clubes de matemática, feiras de ciências e outros. A participação nessas atividades favorece que os estudantes tenham senso de realização e oferecem meios para que os professores planejem as instruções subsequentes. De várias maneiras, os professores oferecem ricos contextos aos estudantes, envolvendo-os na área por períodos de tempo cada vez maiores (SOSNIAK, 1990).

Na terceira fase, a natureza do ensino e da aprendizagem muda significantemente. O vínculo entre professor e estudante desloca-se da instrução para a dedicação compartilhada à área de estudo. Com a ajuda de professores experts e de pares igualmente engajados em

alcançar a excelência, o indivíduo começa a identificar e desenvolver seus próprios interesses, a resolver seus problemas e a trabalhar para atingir seus objetivos (SOSNIAK, 1990). Nesta fase, a fase da autorregulação, o aprendiz exerce razoável controle sobre seu ambiente de aprendizagem e sobre os processos de organização do material a ser aprendido (GALVÃO, 2003).

A autorregulação consiste no autodesenvolvimento de pensamentos, sentimentos e ações que são estrategicamente planejadas e adaptadas para o alcance de objetivos pessoais (ZIMMERMAN, 2006). Trata-se de um processo que envolve a habilidade de negociar, de testar e de interrogar uma representação de modo a permitir que a aprendizagem de fato ocorra e que progrida para novos níveis (GALVÃO, 2003). Nesse sentido, diferentes estratégias são utilizadas, tais como: organização e transformação de informações, sequência de aprendizagem, busca de informações, ensaio e prática e estratégias de auxílio à memória (GALVÃO, 2003; GALVÃO; GALVÃO, 2006).

De acordo com Bandura (1991), a autorregulação opera através de três subfunções principais, que precisam ser desenvolvidas e mobilizadas, a saber: auto-observação, autojulgamento e autorreação. A auto-observação consiste na adequada atenção ao próprio desempenho, nas condições sob as quais ele ocorre e nos efeitos que ele produz. No processo de autorregulação, a auto-observação provê a informação necessária para estabelecer objetivos realísticos e para avaliar o progresso em direção a eles. O autojulgamento refere-se à avaliação do próprio desempenho, comparando-o à realização de um modelo de referência, o qual pode ser oferecido por pessoas influentes em seu meio social ou por algum tipo de mídia impressa ou digital. A autorreação, por sua vez, provê o mecanismo pelo qual o curso da ação é regulado. Inclui a auto-observação e autojulgamento que auxiliam na determinação da ação específica a ser tomada, baseando-se em conhecimentos anteriores acerca da eficácia potencial da ação pretendida. Habilidades de autorregulação determinam, em parte, como indivíduos podem mobilizar esforços e recursos eficientemente para atingir objetivos.

Estudantes bem sucedidos monitoram e regulam a auto-observação, o autojulgamento e a autorreação de maneira estrategicamente coordenada e adaptativa. Esses três elementos oscilam durante o curso da aprendizagem e da performance, sendo monitorados e avaliados por meio do uso de feedback (ZIMMERMAN, 2006). Entende-se, portanto, que, além da autorregulação, o autofeedback e o feedback externo são aspectos importantes na aprendizagem expert. O autofeedback envolve a capacidade de monitorar aspectos específicos do aprendizado, considerando parâmetros referenciais estáveis internamente, enquanto que o

professores e outras pessoas competentes no domínio. O feedback externo, dentre outras funções, proporciona o aprendizado de técnicas efetivas de estudo deliberado, que abrangem o monitoramento do estudo individual, aperfeiçoando e planejando de situações que possibilitem a autoanálise e o alcance de níveis mais elevados de desempenho por conta própria (GALVÃO, 2003).

A aprendizagem autorregulada requer um processo cíclico, em que o estudante monitora a efetividade de seus métodos ou estratégias de aprendizagem e reage ao feedback em uma variedade de formas, variando a autopercepção para evidente mudança de comportamento como, por exemplo, alterar o uso de estratégias de aprendizagem. Estudantes autorregulados são distinguidos por sua responsabilidade para feedback relativo à efetividade de sua aprendizagem, por sua autopercepção de realização acadêmica e pelo uso sistemático de estratégias metacognitivas, comportamentais e motivacionais (ZIMMERMAN, 1990).

Outra característica importante do aprendizado expert diz respeito ao intenso envolvimento no trabalho realizado, o que tem sido observado tanto entre cientistas como entre escultores, pintores, escritores e compositores (ALENCAR; GALVÃO, 2007). Produzir explicações consistentes sobre o que leva um indivíduo a sustentar a motivação e o esforço por longos períodos de tempo tem desafiado estudiosos, pois entender como algumas pessoas conseguem perseverar, administrando sucessos e falhas, pode ser essencial para o desenvolvimento de habilidades de nível expert (FELTOVICH; PRIETULA; ERICSSON, 2006).

Geralmente, os psicólogos utilizam o termo motivação para fazer referência ao movimento que leva o indivíduo a se dedicar intensamente à produção de um trabalho, fazendo com que seu pensamento gire em torno do problema a ser resolvido, levando-o a dispensar uma grande quantidade de tempo e de esforço em sua realização (ALENCAR; GALVÃO, 2007). No entanto, a motivação é um construto que envolve diferentes variáveis, de forma que, até o momento, não há um consenso quanto a sua definição. Todavia, observa- se, em grande parte das definições de motivação, a ênfase dada à escolha de uma ação e ao esforço e à persistência para sua concretização (RAVANELLO, 2008). Segundo Alencar e Fleith (2003, p. 24), os fatores motivacionais referem-se “a um impulso para a realização, que está intrinsecamente ligado a um desejo de descoberta e de dar ordem ao caos, sendo a mola mestra que leva o indivíduo a se dedicar e a se envolver profundamente no trabalho com prazer e satisfação”.

De acordo com Deci et al (1991), a motivação pode ser dividida em formas extrínsecas e formas intrínsecas. Os comportamentos intrinsecamente motivados acontecem por livre

vontade e interesse do indivíduo; isto é, há um contentamento inerente ao sujeito para se envolver numa determinada atividade devido à satisfação pela tarefa em si. Por outro lado, os comportamentos extrinsecamente motivados são instrumentais em sua natureza. Eles são executados pela satisfação ou interesse, pois o indivíduo assim regulado se envolve na atividade para obter determinado resultado que não faz parte da atividade em si (DECI et al., 1991; RAVANELLO, 2008).

O conceito de motivação intrínseca também foi trabalhado por Csikszentmihalyi (1997). Conforme o autor, a qualidade da experiência dos indivíduos numa dada atividade é os que os mantêm motivados. Esta experiência ótima foi denominada por ele de flow. Os sujeitos vivenciam a experiência do fluir quando são absorvidos de tal modo pela atividade que a noção do tempo torna-se distorcida, as distrações são excluídas da consciência e a autoconsciência desaparece. O indivíduo torna-se totalmente envolvido na atividade, a qual se torna recompensadora por si própria.

Nessa perspectiva, Lacorte e Galvão (2007) destacam que a Teoria do Flow oferece indícios explicativos sobre os motivos que levam indivíduos a sustentar durante muitos anos a prática deliberada de estudo. Em outras palavras, tais indivíduos gostam do que fazem, a ponto de adiar gratificações e prazeres para se dedicarem à atividade ou ao campo de estudo. Esse movimento representa a instância necessária ao estudo deliberado, capaz de sustentar um indivíduo por longo prazo em um domínio a ponto de se tornar um expert.

Observa-se, assim, que a aprendizagem expert envolve um processo motivacional complexo. Investigação desenvolvida por Sosniak (1990) indica que a motivação para o estudo individual nos primeiros anos da atividade musical era predominantemente extrínseca, fundamentada no apoio parental e de professores que instruíam sobre aspectos do conteúdo e duração do estudo. Em estudo comparativo desenvolvido por Ericsson, Tesch-Römer e Krampe (1990) há, também, a indicação de que o ambiente e as primeiras atividades nos domínios do xadrez, dos esportes e da música são controlados pelos pais, especialmente, porque as primeiras experiências ocorrem enquanto os aprendizes ainda são muito jovens. A média de idade para começar a prática entre a elite de cada um dos referidos domínios é de sete anos. No entanto, o estudo reforça a ideia de que não há relação consistente entre idade inicial e performance final, apenas reforça a noção de que começar cedo representa uma vantagem no aumento da quantidade de prática continuada para manter altos níveis de

performance.

Dessa forma, tal como o nível de performance reflete o efeito acumulado da prática de longo prazo, os fatores que sustentam o nível de prática por um extensivo período de tempo

refletem um estilo de vida e a preparação que é gradualmente adquirida. Assim que o indivíduo integra a prática em sua vida com gradual incremento em duração e intensidade, adaptações psicológicas ocorrem facilmente e a prática tornar-se habitual, sem a necessidade de incentivos explícitos (ERICSSON; TESCH-RÖMER; KRAMPE, 1990).

Percebe-se, desse modo, que a forma da motivação muda durante o tempo em relação à atividade e à experiência, pois o indivíduo começa a assumir uma maior responsabilidade e controle pelos seus hábitos de estudo. Isso leva, gradualmente, a formas mais intrínsecas de motivação, ainda que o apoio parental se revele ocasionalmente nas recomendações sobre a necessidade de continuar praticando (GALVÃO, 2007b; SOSNIAK, 1990, 200). Estudo de Sloboda (1990) revelou que, para o desenvolvimento de altos níveis da habilidade musical, é necessário que o indivíduo goste de música e queira engajar-se no seu estudo por si próprio, pois somente assim a prática tornar-se-á perfeita. Nessa perspectiva, destaca-se a importância da motivação intrínseca no sustento e no desenvolvimento do envolvimento com o domínio da música.

Portanto, a aquisição e a manutenção da expertise envolvem a inclusão de um repertório de estratégias de aprendizado, em que o aprendiz parte de uma situação de relativa dependência do ambiente externo e vai se tornando cada vez mais envolvido pessoalmente na busca da excelência; isto é, torna-se gradualmente mais confiante na sua própria capacidade de automonitoramento. Logo que o aprendiz torna-se expert, a situação de aprendizado independente assume um papel ainda mais crucial, demandando o desenvolvimento de outras estratégias de aprendizagem continuada (GALVÃO, 2003).