• Nenhum resultado encontrado

Aproximação da ciência aos cidadãos: do modelo de comunicação ao modelo de

Capítulo 2. – Condições Sociais, saberes e práticas das ciências nas sociedades contemporâneas:

2.2. Aproximação da ciência aos cidadãos: do modelo de comunicação ao modelo de

Apesar de os objetos científicos e tecnológicos fazerem hoje parte do quotidiano dos individuos, o entendimento e as representações que estes fazem da ciência são ambivalentes. A ciência tanto pode ser entendida como um meio para melhorar o bem- estar dos cidadãos, como pode ser temida e indesejada pelos efeitos que provoca, ou poderá eventualmente causar, ou ainda ser percebida como fonte de incertezas, suscitando diversos tipos de resistências. Ulrich Bech (1992) tem vindo a argumentar que a fé na ciência e no progresso acabou por gerar um certo mal-estar social. A ciência tornou-se fonte de incerteza e daí a necessidade de as instituições encetarem esforços para assegurar a sua credibilidade. A par desta perspetiva, há uma outra versão que enfatiza um tipo diferente de expetativas dos cidadãos face à ciência. Quer dizer, os cidadãos esperam, igualmente, que a ciência produza resultados que conduzam ao crescimento económico e gere prosperidade nas sociedades. Com base na relação entre ciência e indústria, é suposto que se produza a inovação (Nowotny, 2011, p.22). Simultaneamente, e com os riscos associados aos avanços científicos, desenvolve-se uma maior exigência social no controlo e regulação da ciência. As controvérsias em torno da poluição ambiental, informação e privacidade com os computadores, os alimentos geneticamente manipulados e a clonagem bem como a pesquisa com células estaminais levaram a necessidade de rever a autoridade científica e aumentaram a exigência de participação pública na governação da ciência (European Comission, 2009b, p.19).

O relatório da Comissão Europeia - Global Governance of Science- dá conta que das mundanças no entendimento da ciência por parte dos cidadãos, registadas no período que se seguiu à guerra fria. Como consta naquele relatório, observava-se, por esta altura, um certo distanciamento dos cidadãos em relação aos cientistas e, mais preocupante ainda, um elevado nível de iliteracia científica que dificultava, quer a legitamação da ciência, quer a legitamação de algumas opções políticas. Estas atitudes exigiram, da parte do poder político, medidas que interviessem sobre o que se veio a designar como entendimento público da ciência (European Comission, 2009b, p.26).

O relatório seminal da Royal Academy of Londres tornou-se uma referência na abordagem da questão do entendimento público da ciência. Muitas das iniciativas europeias, que se tomaram posteriormente, inspiraram-se no referido relatório. Naquele relatório, o entendimento da ciência por parte de todos os cidadãos foi considerado como uma exigência social permente: “More than ever, people need some understanding of science, whether they are involved in decision-making at a national or local level, in managing industrial companies, in skilled or semi-skilled employment, in voting as private citizens or in making a wide range of personal decisions” (Royal Society , 1985,p. 5). O conhecimento científico foi considerado essencial, tanto para a vida pública, como para a vida privada dos cidadãos:

Personal decisions, for example about diet, smoking, vaccination, screening programs or safety in the home and at work, should all be helped by some understanding of the underlying science. Greater familiarity with the nature and the findings of science will also help the individual to resist pseudo-scientific information. An uninformed public is very vulnerable to misleading ideas on, for example, diet or alternative medicine. An enhanced ability to sift the plausible from the implausible should be one of the benefits from better public understanding of science (Royal Society, 1985, p. 10).

Neste relatório, mais concretamente no capítulo dedicado à comunidade científica, insiste-se na necessidade de os cientistas assumirem de um modo responsável o problema do entendimento público da ciência. As afirmações destacadas no relatório são bem ilustrativas desta posição: “our most direct and urgent message is for the scientists-learn to communicate with the public, bewilling to do so, indeed consider it your duty to do so” (…) It is clearly a part of each scientist's professional responsibility to promote the public understanding of science” (Royal Society, 1985, p. 24).

Colocando uma ênfase clara na educação, desde os primeiros anos de escolarização, o relatório sugere diversas estratégias para a promoção do entendimento público da ciência e muitas delas foram ensaiadas nas universidades europeias. O relatório, tal como refere Bauer, estimulou a pesquisa social desta problemática e a disponibilização de recursos com o objetivo de fazer com que a ciência pudesse atingir audiências mais

amplas (Bauer, 2011, p.18). Na sequência deste relatório, e de acordo ainda com Bauer, as universidades europeias reconheceram a necessidade de se promover a comunicação da ciência e assumiram a tarefa de formação nesta área, tanto para os cientistas, como para profissionais da comunicação social. O espaço negociado para a divulgação da ciência nos meios de comunicação social, os museus da ciência e a abertura desta às escolas e às famílias foram alguns dos caminhos considerados para o envolvimento dos cidadãos no diálogo entre ciência e sociedade (Bauer, 2011, p18).

No entanto, a ideia de participação dos cidadãos na governação da ciência não se restringe apenas ao processo de comunicação. É, muitas vezes, neste sentido que surge a crítica ao modelo de entendimento público da ciência. Embora se tenha tornado comum, pelo menos na Europa, falar-se de envolvimento público na ciência, algumas das iniciativas tomadas neste âmbito foram objeto de uma reflexão crítica, sobretudo, no que diz respeito à efetividade e modos de participação dos cidadãos na ciência. O próprio modelo de entendimento público da ciência também foi revisto criticamente. Várias questões têm sido levantadas. Uma delas relaciona-se com os domínios onde a participação do público é considerada legítima. Irwin refere que os governos e outras instituições ligadas à ciência estabeleceram, convencionalmente, áreas onde a participação pública é expetável, designadamente as que estão relacionadas com questões de ética e valores. No entanto, há domínios, muito concretamente os domínios especificamente associados ao conhecimento especializado da ciência, onde o envolvimento dos cidadãos continua a ser subvalorizado, ou não é sequer reconhecido (Irwin, 2008, p.597). Também a dificuldade do público em participar nos processos de decisão que dizem respeito à ciência tem levado à reivindicação de maior democratização neste processo (Irwin, 2008; European Comission, 2009b).

Há, no entanto, que reconhecer que foram dados passos muitos significativos no aprofundamento da relação entre o público e a ciência. As próprias atitudes no interior da comunidade científica também se transformaram. Assim, e segundo Bauer, a preocupação dos cientistas deixa de ser apenas a de educar o público para a ciência, são feitos esforços com o intuito de alcançar a motivação do público para se envolver no diálogo entre a ciência e os cidadãos (Bauer, 2011, p. 18). Não obstante, como o autor não deixa de

notar, a literacia dos cidadãos não promove, automaticamente, nem um maior interesse, nem atitudes mais favoráveis sobre a ciência. Podem surgir, e surgem de facto, expetativas negativas sobre a ciência em cidadãos com níveis mais elevados de literacia. Na realidade, as ameaças percebidas da progressão de um certo tipo de conhecimento; a perceção da irrelevância de alguma ciência, ou o facto de a ciência não produzir, em tempo útil, as mudanças desejadas são fatores que, muitas vezes, contribuem para algumas das atitudes menos favoráveis em relação à ciência (Bauer, 2011, p.19). De algum modo, esta é uma posição partilhada por Latour (2011) quando adverte que as atitudes públicas de resistência à ciência não devem ser, imediatamente, associadas à descredibilização dos cientistas ou a uma “irracionalidade generalizada”. O autor explica que o crescimento exponencial da ciência levou a que, de algum modo, todos nos tornassemos participantes, voluntários ou não, de grandes experimentações, que ocorrem à escala planetária, e cujos protocolos, na maioria dos casos, não existem. Nessa medida, nem sempre as verdades científicas se conseguem impor por si só, pois os cidadãos já entraram no laboratório para discutir essas verdades (Latour, 2011, p.20). A ideia de comunicação da ciência cede assim lugar ao reconhecimento da participação dos cidadãos na ciência.

A ideia de participação dos cidadãos na ciência é também reconhecida por Nowotny (2011, p.22) que refere o seu contributo para a ciência enquanto utilizadores das tecnologias e das biotecnologias médicas – muitas vezes enquanto pacientes, dadores, grupos de risco, etc. - que se tornaram indispensáveis no processo de construção do conhecimento científico. Este envolvimento implicou uma maior consciência e reivindicação dos seus direitos dos cidadãos na interação com a ciência que, aliados a um maior acesso de informação, proporcionada pelos mais recentes meios de comunicação e informação, esperam agora ser ouvidos nas decisões que dizem respeito à ciência. De acordo com Bucchi, os novos meios de acesso à ciência, designadamente, os media digitais disponibilizam um conjunto vasto de informação aos cidadãos, incluindo a informação sobre as controversias científicas (Bucchi, 2011, p. 12).

Tudo leva a crer que estas mudanças tenham tido um impacto significativo na forma como os cientistas encaram, hoje, o papel da ciência e a sua interação com os cidadãos.

Como refere Bucchi, os cientistas encontram-se cada vez mais motivados e são, inclusivamente, encorajados para se envolverem nas atividades de comunicação da ciência (2011, p.11). Nowotny observa, a este propósito, que a comunidade científica teve também de aprender que envolver os cidadãos na ciência é muito mais do que fornecer informação, pelo que designar alguém para fazer a mediação – enquanto relações públicas de uma organização científica – não consegue ter igual impacto ao envolvimento pessoal dos cientistas (2011, p.22). Várias iniciativas foram impulsionadas com o objetivo de promover a participação efetiva dos cidadãos na ciência.

O termo de ciência cidadã, que ganhou uma maior popularidade com a obra de Alan Irwin, Citizen Science: A Study of People, Expertise and Sustainable Development, publicada em 1999, remete para a valorização dos conhecimentos, decorrentes da experiência e das práticas das populações, pela ciência. A expressão é utilizada de formas diferentes, mas a ideia está claramente relacionada com o impacto da ciência e da tecnologia no quotidiano das sociedades. Krishna (2014) associa o termo ao “conhecimento e análises da ciência e da tecnologia e das suas relações com a sociedade defendidas pelos grupos da sociedade civil, Organizações Não Governamentais (ONG), grupos ambientais, e movimentos de cidadãos”. (Krishna, 2014, p. 149). Tendo em conta esta perspetiva, parece-nos claro que estamos perante uma ideia de aproximação dos cidadãos à ciência de acordo com um modelo mais participativo e não apenas comunicacional.

No entanto, há, ainda, múltiplos obstáculos a superar (Bucchi, 2011). Um deles relaciona-se com as caraterísticas da cultura organizacional das instituições científicas, como diz o autor: “a culture of public engagement still seems to be lacking among most research institutions in Europe” (Bucchi, 2011, p.12). Por seu lado, como observa ainda Bucchi, não basta dizer que se faz comunicação pública da ciência. É necessário assegurar a qualidade dessa mesma comunicação. É necessário que a comunicação da ciência seja justa para todas as partes envolvidas o que, no sentido proposto pelo autor, significa que ela deve ser aberta à crítica e objeto de autoreflexividade. De acordo com o autor, estas são duas das condições para que a ciência se possa tornar parte da cultura contemporânea. Além disso, como o autor reconhece, a transparência e os esforços para problematizar o

próprio processo de comunicação são duas das estratégias a adotar para evitar a desconfiança do público relativamente à ciência (Bucchi, 2011, p.15). Interessa, igualmente, reconhecer que os esforços realizados no sentido de promover uma maior sensibilização e envolvimento dos cidadãos na ciência tendem a favorecer uma postura crítica entre os cidadãos, não apenas acerca da ciência, mas também sobre as diferentes questões do social. Parece, pois, ser inegável que, a este nível, a ciência assume uma função crucial na transformação social das sociedades contemporâneas.

Em Portugal, foram desenvolvidas diferentes iniciativas com o objetivo de promover uma maior participação dos cidadãos à ciência. O Programa Ciência Viva é, talvez, uma das iniciativas mais relevantes a este nível. Proposto pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1996, o programa tinha como objetivo aproximar a ciência dos cidadãos. Embora tenha envolvido, privilegiadamente, os alunos das escolas, contou também com com a participação das instituições científicas, empresas e autarquias. De acordo com Pereira et al. (2007) este programa tinha como intuito “romper a tendente dicotomização entre, por um lado, instituições e equipas de investigação envolvidas na produção e aplicação dos conhecimentos científicos e, por outro, instituições escolares, tradicionalmente incumbidas do ensino e difusão desses mesmos conhecimentos”. (Pereira et al, 2007, p.72)

Uma outra iniciativa de grande destaque foi as “Oficinas da Ciência”. Trata-se, nas palavras de Irina Castro, Rita Serra, Daniel Neves e João Arriscado Nunes de “espaços institucionais que prestam apoio à elaboração e execução de projetos de investigação científica de cariz mais colaborativo e participativo e têm em conta as preocupações da sociedade” (2013, p.2). Este modelo ensaiado aproxima-se das Science Shops que emergiram, inicialmente, na Holanda e cujo objetivo era fazer assessoria técnica a cidadãos e organizações não lucrativas. Este trabalho era realizado por pequenas organizações que desenvolviam pesquisas em resposta às necessidades dos cidadãos ou de organizações com poucos recursos (Sismondo, 2008, p. 19). Sendo um modelo que apresentou algum sucesso, no entanto, e de acordo com a análise dos autores portugueses, os esforços para a participação nem sempre se traduziram no envolvimento efetivo da população no sistema da ciência. Os autores identificam alguns fatores que ajudam a

explicar esta dificuldade. Para Castro e os seus colegas (2013) estas iniciativas, que se manifestaram de um modo pontual em Portugal, aproximam-se dos modelos de transmissão de conhecimento de cima para baixo, assemelhando-se a processos de consultoria técnica. Isto resulta, segundo os autores, da ausência de uma tradição de participação da comunidade académica em relação à sociedade civil, e mais concretamente na fase de produção do conhecimento (Castro et al., 2013). É nossa intenção explorar melhor esta questão na análise dedicada às políticas públicas para a ciência, tendo em conta as perspetivas dos próprios cientistas/académicos.

Capítulo 3. – Investigação científica e políticas públicas para a ciência: relações