• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – A relação entre a ciência e a sociedade: condições históricas e perspetivas

1.5. A Teoria ator-rede

Como vimos, as perspetivas microssociológicas, particularmente os estudos de laboratório, mostram a importância de, metodologicamente, se perspetivar o estudo da ciência em contexto local numa temporalidade atual. A teoria ator-rede (TAR), que surge nos meados dos anos oitenta, desenvolvida por um conjunto de teóricos liderados por Latour e Michel Callon e John Law, pode ser entendida também como uma proposta para obviar alguns dos limites apontados às abordagens anteriores.

A recusa, do ponto de vista analítico, das distinções entre sociedade/natureza, agência/estrutura, contexto/conteúdo, humano/não humano, poder/conhecimento, ciência (conhecimento) e técnica (artefacto), e fenómenos micro e macro representa um dos aspetos mais distintivos desta nova corrente e está relacionada com o pressuposto da TAR de que a ciência é um processo de engenharia heterogéneo no qual diversos elementos – textuais, sociais, concetuais e técnicos – se encontram justapostos e são traduzidos (Crawford, 2004). De acordo com a proposta de Michel Callon, traduzir significa transformar, deslocar, negociar e ajustar, expressar numa linguagem própria e estabelecer-se como porta-voz dos actantes16, das suas vontades, ditos e ações, revelando o modo como se associam entre si (Callon, 1986). E são, precisamente, essas associações que devem constituir, na perspetiva dos autores da TAR, o objeto central da análise sociológica. Neste sentido, e como observam Callon e Latour: “Sociology is only lively and productive when it examines all associations with at least the same daring as the actors who make them”17 (1981, p. 292). Os atores podem ser considerados, de acordo com esta perspetiva, qualquer elemento autocentrado que faz com que outros elementos dependam de si, traduzindo as suas intenções de acordo com a sua própria linguagem.

É de acordo com os três princípios metodológicos - designados por Michel Callon por agnosticismo, simetria e associação livre – que se devem, então, orientar as análises sociológicas, incluindo, os problemas e perspetivas sociológicas da ciência. Mais

16 A definição de actante, proposta por Latour, inclui tanto as pessoas que podem falar, como as coisas que

não falam ou, como o autor afirma, “qualquer pessoa ou qualquer coisa que seja representada.” (1999, p. 138)

concretamente, o agnosticismo, que prevê uma postura de imparcialidade de modo a não se julgar os atores nem os reduzir a uma explicação sociológica particular; o princípio de simetria que defende a utilização de um mesmo quadro conceptual para a análise dos fenómenos – sociais, técnicos e da natureza – presentes nas controvérsias científicas; e a associação livre segundo a qual o observador, em vez de categorizar previamente, deverá seguir os atores nas suas múltiplas associações, constituem as principais estratégias para a abordagem das questões societais que são entendidas, segundo a TAR, como sendo tão incertas e indefinidas quanto aquelas que dizem respeito à natureza (Callon, 1986).

Tendo em conta estas linhas de orientação teórica-metodológica, é possível compreender melhor os argumentos de Bruno Latour sobre o que deve constituir o objeto privilegiado da análise sociológica da ciência: a ciência em construção, ou nas palavras do autor, “a ciência que ainda não sabe”. (1999, p.21) É por isso necessário seguir os cientistas nas suas tentativas de fechar as caixas negras18 e de abrir outras para se ter uma visão das condições de produção dos fatos científicos (Latour, 1999, p.39).

Para enfatizar o caráter coletivo da construção dos factos, Latour recorre não só à análise da produção dos textos ou documentos científicos, mas identifica, igualmente, um conjunto de aliados e opositores – dentro do laboratório ou externos – que, constituindo uma complexa rede de atores19, podem assumir posições diferenciadas que vão desde a crítica, descrédito ou discordância ao reforço da própria investigação. Latour, observa ainda que, quando um novo aliado se introduz na rede, os artefactos e afirmações podem ser acomodados para servir novos interesses: “cientistas e engenheiros falam em nome de novos aliados que conformaram e angariaram; representantes entre outros representantes, eles acrescentam esses inesperados recursos para fazer o equilíbrio de forças propender a seu favor” (Latour, 1999, p.150). Nesta perspetiva, a tradução emerge como um conceito central no entendimento das relações de poder intrínsecas ao processo de construção científica e que estão presentes quer na definição dos atores, quer no modo como estes se

18 No sentido proposto por Callon e Latour a expressão caixa negra remete para conteúdos que já não são

reconsiderados, ao longo do processo de construção científica, que se tornaram objeto de indiferença (Callon & Latour, 1981, p. 285). Após se tornarem estabelecidos, estes conteúdos escapam ao questionamento ou às várias tentativas de desconstrução

19 É interessante sublinhar, aqui, a diversidade destes atores que, para Latour, podem ser, entre outros,

associam, quer ainda na sua permanência ou conformidade com uma dada aliança. Como explica Callon, a tradução permite entender como é que alguns adquiriram o poder de expressar e representar uma multiplicidade de atores silenciosos, provenientes do social ou da natureza, que eles mobilizaram (Callon, 1986).

Tendo presente o mecanismo de tradução e analisando os aliados e recursos em jogo numa controvérsia científica, Latour conclui então que é possível entender tudo o que diz respeito à ciência, técnica e sociedade, ou, de acordo com a designação do autor, a “tecnociência” (Latour, 1999, p. 164).

A perspetiva de Latour que privilegia, entre outras, as práticas de pesquisa enquanto meio de entendimento da ciência em relação com a sociedade justificou uma das opções metodológicas deste trabalho, designadamente, o objetivo de estudar as representações sobre o papel da ciência na transformação social em estreita relação com as perspetivas e experiências dos sujeitos envolvidos com a “ciência em construção”.

1.6. Novas interrogações sociais sobre a ciência e a reatualização do debate