• Nenhum resultado encontrado

Novas interrogações sociais sobre a ciência e a reatualização do debate sociológico

Capítulo 1 – A relação entre a ciência e a sociedade: condições históricas e perspetivas

1.6. Novas interrogações sociais sobre a ciência e a reatualização do debate sociológico

A maioria das perspetivas sociológicas que abordámos, até agora, orientou as suas análises com o objetivo de reforçar o caráter socialmente construído das práticas, atividades e conhecimentos científicos, enfatizando as condições sociais para o seu desenvolvimento. É, em certa medida, em torno de pressupostos, eminentemente construtivistas, que se desenvolveu a reflexão e os fundamentos sobre as interações entre a ciência e a sociedade, pelo menos desde Thomas Kuhn. Novas perspetivas na sociologia da ciência, mais focalizadas nos resultados da ciência e da tecnologia do que propriamente na natureza conhecimento científico, vão impulsionar um outro conjunto de pesquisas de onde emergem problemáticas associadas à responsabilidade da ciência, à sua imagem e ao interesse público que a ciência pode apresentar.

Quando, por volta dos anos 50 do Século passado, a ideia de ciência, até então considerada como um meio privilegiado de acesso ao bem-estar social, foi amplamente questionada, já se havia constatado um conjunto de resultados impensáveis e imprevistos decorrentes das atividades científicas e tecnológicas. A relação entre ciência, tecnologia e a sua reapropriação industrial e militar suscitavam novas preocupações. A partir dessa altura, as associações entre ciência objetividade, neutralidade e verdade instabilizam-se e várias outras consequências da aplicação da ciência e tecnologia conduzem à necessidade de se equacionar, do ponto de vista teórico, a ciência nos seus contextos de produção e a sua relação com os processos sociais. As abordagens da sociologia da ciência responderam, em certa medida, aos impulsos sociais e históricos para a reflexão, quer sobre a ciência em construção, quer em relação à ciência enquanto conjunto de saberes assim constituídos - o conhecimento enquanto produto da ciência. As abordagens mais recentes respondem a outras necessidades.

A centralidade assumida pela ciência nas sociedades abriu espaços para novas reflexões. Acusando a influência de Kuhn, e resgatando o valor da interdisciplinaridade atribuído pelo grupo de Edimburgo, diversos programas de pesquisa, usualmente classificados como programas de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), vão dedicar as suas análises às práticas científicas em estreita articulação com a relação entre a ciência

e as sociedades20. Assim, vários autores acrescentaram a este debate outras temáticas atuais e relevantes. Dominique Pestre elenca algumas das questões de pesquisa que surgem dentro destas temáticas, designadamente, a ciência enquanto tecnologia e modo de ação, como atividade performativa do mundo, as ciências e a tecnologia como promessas e ameaças; a coprodução, coinvenção e cotransformação da ciência, do social, dos indivíduos e dos territórios; as funções sociais e políticas do discurso da ciência e sobre as ciências; as representações sociais e culturais das ciências; as ciências e as tecnologias na produção artística e cultural (Pestre, 2008, p. 22). Todas essas questões indiciam a presença de um outro olhar analítico sobre o conhecimento científico e suas práticas.

No entanto, não parece possível falar-se de uma rutura entre estas perspetivas de análise e aquelas que foram mencionadas anteriormente. Como sugere Sergio Sismondo (Sismondo, 2008, p. 17) para os investigadores da ciência, entender a natureza das suas práticas, as condições de produção do trabalho científico, representa um passo fundamental para se promover a responsabilidade social da ciência. E, por exemplo, de acordo com esta análise, as perspetivas feministas sobre a ciência permitem ilustrar bem a articulação entre as diferentes focalizações na sociologia da ciência.

Assumindo uma posição construtivista, as análises feministas quiseram, desde cedo, demonstrar e denunciar as dimensões políticas da ciência. Recorde-se que, ao trazer questões metodológicas e epistemológicas essenciais à problematização do conhecimento sociológico, Sandra Harding, por exemplo, reivindica uma maior profundidade e objetividade das ciências sociais a partir da experiência e da voz da mulher (Walby, 2005, p. 372). Também, neste mesmo sentido, a aproximação crítica de Schiebinger (2000) à ciência tende a revelar o compromisso entre a compreensão teórica sobre a construção dos processos científicos e os objetivos sociais e políticos. Diz a autora:

Bringing feminism successfully into science will require difficult battles and a complex process of political and social change. Science departments cannot solve the problems themselves because the problems are deeply cultural. That does not,

20 Do ponto de vista académico, os estudos da “Ciência, Tecnologia e Sociedade” constituem-se como um

grupo diversificado de análises com objetivos progressistas e que assume a ciência e a tecnologia como instituições sociais. (Sismondo, 2008, p. 17)

however, let them off the hook. Change must occur in many areas: conceptions of knowledge and research priorities, domestic relations, attitudes in schools, university structures, classroom practices, the relationship between home life and the professions, and the relationships between different nations and cultures. (Schiebinger, 2000, p.174)

Com efeito, e como bem esclarece João Arriscado Nunes (2003), as perspetivas feministas contribuíram, de um modo particular, para desvendar algumas relações constitutivas do campo da ciência. Elas não se limitaram apenas a assegurar uma maior participação das mulheres nas atividades e carreiras científicas, mas marcaram igualmente a organização e os conteúdos da ciência e a sua reflexão ao levantar questões inerentes aos processos de construção do conhecimento científico, tais como os critérios de seleção dos temas de pesquisa; as diferenças de interpretação dos resultados da ciência; e a influência das condições/posições sociais dos sujeitos de conhecimento na reivindicação da objetividade do conhecimento científico (Nunes, 2003, pp. 66-67).

Esta relação de compromisso teórico, que olha simultaneamente para os processos e condições subjacentes à construção do conhecimento científico e para as suas consequências sociais, interessa-nos, em especial, para as análises que queremos desenvolver, pois é nossa convicção de que o maior ou menor reconhecimento das condições sociais de pesquisa pode impulsionar diferentes representações sociais sobre o papel da ciência na transformação das sociedades.

Na abordagem dos desenvolvimentos recentes dos estudos sociais da ciência, o esquema analítico, proposto por Sergio Sismondo (2008), mostra-se particularmente útil. De acordo com a sua perspetiva, é possível identificar diferentes tipos de estudos sobre a ciência, tendo em conta as suas principais finalidades. Assim, atualmente, podemos encontrar estudos com uma vertente ativista mais marcada, comprometidos com um ou vários projetos sociais sobre a ciência; estudos cujo principal objetivo continua a ser a compreensão teórica da ciência e da tecnologia, dando especial ênfase à sua dinâmica interna; e estudos que contemplam simultaneamente uma vertente de ação social e uma análise teórica sobre a ciência e a tecnologia. Estes últimos, designados pelo autor por “programa engajado” (“engaged program”) referem-se a projetos que desenvolvem temas

com um objetivo político central – colocando o interesse público no centro das suas pesquisas - ao mesmo tempo que se alicerçam nas perspetivas construtivistas sobre ciência (Sismondo, 2008, p. 20 e ss). De acordo com Sismondo, os estudos da ciência mais recentes, desenvolvidos a partir de pressupostos construtivistas, tendem, genericamente, a centrar as suas análises nas interações entre ciência, sociedade e interesses públicos (Sismondo, 2008, p. 21).

Numa abordagem complementar, queremos ainda destacar a perspetiva de Gibbons que estabelece a distinção entre modo um e o modo dois de produção do conhecimento científico (Gibbons, 2000). Para o autor, as diferenças entre estes dois modos, que são fundamentalmente definidos como dois conjuntos mais ou menos coerentes de práticas de pesquisa, refletem-se nas opções de trabalho, na identificação dos problemas de pesquisa, nas formas de organização da investigação, no modo como se faz o controlo da qualidade destas práticas, entre outros. Fazendo corresponder o modo um às práticas de pesquisa adquiridas e desenvolvidas em contexto universitário, ancoradas nos diferentes campos disciplinares; e o modo dois ao conjunto de práticas, que sucedendo ao modo anterior (ao modo um), se estabelecem segundo uma dinâmica de maior proximidade com os contextos; o que parece marcar a grande diferença entre os dois processos é efetivamente o tipo de diálogo que se desenvolve entre ciência e sociedade, sobretudo no que diz respeito às possibilidades da sociedade retroalimentar esse diálogo. Gibbons dá conta das influências desse diálogo: “This reverse communication affects scientific activities both in its forms of organization, division of labour and day-to-day practices, and deep down in its epistemological core” (Gibbons, 2000, p. 161).

Ao argumentar sobre o papel ativo da sociedade nessa interação com a ciência, Gibbons deduz algumas das suas consequências para as dinâmicas da ciência, e que se refletem numa outra forma de produzir o conhecimento científico. Trata-se de um conhecimento onde a determinação e a definição de problemas científicos é renegociada ou consensualizada, adquirindo assim uma maior robustez social. Será essa a principal consequência epistemológica deste modo de ciência “sensível ao contexto”: a produção de um conhecimento socialmente robusto, quer dizer, um conhecimento cuja validade não é apenas legitimada no espaço do laboratório, mas que integra uma dimensão importante

de credibilidade social (Gibbons, 2000, p. 161).

Retomaremos mais tarde, dado o interesse que nos merece, o conjunto de argumentos e os resultados de investigação de Gibbons e da sua equipa. Por agora, interessa-nos realçar, na sua teorização, a importância atribuída ao contexto na relação entre ciência e sociedade. A contextualização ajuda, segundo esta perspetiva, a compreender as opções e prioridades de investigação, a organização das práticas de pesquisa e a necessidade de olhar para a relação entre ciência e sociedade de modo analiticamente diferente. Para tal há que assumir que, quando equacionamos a relação entre sociedade e ciência, não encontramos fronteiras definitivas entre os dois termos. Quando existem, estas fronteiras são ténues, fluídas, favorecendo a emergência de campos de análise interdependentes. É de acordo com estes princípios teóricos, modos de organização, práticas e questões da ciência nas sociedades contemporâneas que poderemos, hoje, interrogar as perspetivas sobre o papel da ciência na transformação das sociedades.

Capítulo 2. – Condições Sociais, saberes e práticas das ciências nas sociedades