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Os Estudos de Laboratório: contributos para o reconhecimento social da ciência

Capítulo 1 – A relação entre a ciência e a sociedade: condições históricas e perspetivas

1.4. Os Estudos de Laboratório: contributos para o reconhecimento social da ciência

No seguimento das abordagens de Edimburgo e do “programa forte” surge um conjunto de estudos sociológicos que abandonam as análises macrossociológicas e causais e se centram, fundamentalmente, nos processos contingentes e localizados associados à produção do trabalho científico. Impulsionadas pelas análises pioneiras de Bruno Latour e Woolgar11, e pelo desenvolvimento da etnometodologia12, estas pesquisas pretenderam estudar a dimensão social em todas as fases do desenvolvimento do processo científico. De acordo com esta perspetiva, a sociologia deveria então ocupar-se mais da ciência contemporânea e já não tanto com os estudos de caso históricos privilegiados pela Escola de Edimburgo. Os estudos de laboratório, como são comummente designados, surgiram nos finais dos anos 70 e elegeram o laboratório como o lugar privilegiado para a observação e compreensão dos processos de produção científica. Acusando a influência de Edimburgo13 , e do “programa forte” de Bloor, mas também das análises das controvérsias científicas de Collins, os estudos de laboratório representam um avanço significativo nos estudos sociais da ciência ao abrir as portas de um lugar – o laboratório - que se apresentou, durante muito tempo, como uma barreira física e epistemológica intransponível para as abordagens sociológicas da ciência (Doing, 2008, p.279).

In Laboratory Life, uma obra marcante red para estes estudos, Bruno Latour e Steve Woolgar questionam um conjunto de aspetos da prática científica e da construção do conhecimento, reafirmando que esta é uma prática social, desenvolvida por atores sociais. Para sustentar este argumento, os autores observam as múltiplas negociações presentes nos processos de investigação e na produção dos resultados da pesquisa e equacionam a influência de vários fatores, tais como o papel dos cientistas, das agências que financiam e apoiam a pesquisa, dos contextos políticos, a interferência dos instrumentos e materiais

11 In laboratory life é o primeiro estudo clássico dos designados Estudos de laboratório, produzido por

Latour e Woolgar em 1979. Neste trabalho os autores observaram, durante dois anos, as pesquisas de um grupo de investigadores do Instituto de Joka, na Califórnia, EUA.

12 Harold Garfinkel, considerado o fundador da etnometodologia, mostra as possibilidades de aplicação

desta perspetiva aos estudos da ciência ao publicar, em 1981, um artigo sobre as pesquisas realizadas por um grupo de astrofísicos, recorrendo nas suas análises aos registos das experiências.

13 Embora seja de destacar também a distância dos estudos de laboratório e, designadamente, pela perspetiva

de pesquisa e, com particular relevância para a construção do facto científico, a dimensão retórica das práticas científicas In Laboratory Life (1979),

São várias as questões levantadas na obra de Latour e Woolgar que nos interessam para o desenvolvimento deste trabalho. Neste momento, queremos destacar um dos contributos destas análises para a clarificação do papel da comunicação nas relações que se estabelecem em contextos institucionais de produção da ciência e as relações entre esses contextos e a sociedade. Neste sentido, os autores destacam, entre as competências dos cientistas, a “arte da persuasão”, que “serve para que os pesquisadores convençam os outros da importância do que fazem, da verdade do que dizem e do interesse que existe no financiamento dos seus projetos” (Latour & Woolgar, 1997, p. 68).

No entanto, o objetivo do processo de pesquisa, de acordo com Latour e Woolgar, vai para além das estratégias de persuasão e da comunicação ou da divulgação públicas. Este objetivo encontra-se, antes de tudo, na construção dos factos científicos. As inscrições literárias, definidas pelos autores como “traços, tarefas, pontos, histogramas, números de registos, espectros, gráficos, etc.” (Latour & Woolgar, 1997, p. 37), ou seja, as “evidências” utilizadas pelos investigadores para apoiar os seus argumentos desempenham, neste processo, um papel central. Estas inscrições sustentam os diferentes tipos de enunciados, que vão sendo transformados à medida que os resultados de uma pesquisa se vão constituindo em dados científicos. Neste processo – de “solidificação e inversão” (1997, p. 102) - a partir do qual o enunciado se transforma em facto científico, este último parece tornar-se independente da formulação que lhe deu origem, ganhando uma dinâmica própria, despedindo-se da base experimental e dos resultados que, anteriormente, apoiaram a sua construção. Nas palavras de Latour e Woolgar: “Um fato é reconhecido enquanto tal quando perde todos os seus atributos temporais e integra-se em um vasto conjunto de conhecimentos edificados por outros fatos” (1997, pp. 101- 102).

A focalização das abordagens de Latour e Woolgar nos microprocessos de construção do facto científico, a atenção ao carácter particular das atividades científicas e à sua contextualização no tempo e no espaço, sustentam o argumento da imbricação da ciência no social. Esta é uma relação que se aprofunda nestes estudos ao se considerar

que o social na ciência ultrapassa o nível da ideologia e dos conteúdos macroinstitucionais uma vez que, para os autores, o facto científico é o resultado de uma construção “totalmente” social (Latour & Woolgar, 1997, p. 160).

Na mesma linha, Karin Knorr Cetina14 equaciona os principais contributos dos estudos de laboratório para o esclarecimento das relações, consideradas como inextricáveis, entre a ciência e o social. De acordo com a sua perspetiva, os estudos de laboratório:

showed that scientific objects are not only “technically” manufactured in laboratories but are also inextricably symbolically or politically construed, for example for literary techniques of persuasion such one finds embodied in scientific papers, through the political stratagems of scientists in forming alliances and mobilizing resources, or through the selections and decision translations which “build” scientific findings from within.

(Cetina, 1992, p. 115)

Tendo em conta os aspetos acima enunciados, a autora defende que os produtos da ciência devem ser perspetivados, não como decorrentes dos fenómenos naturais, mas antes como objetos culturalmente reconfigurados. Se pode ser assumido que as práticas de laboratório não estão exclusivamente condicionadas pelas orientações metodológicas, sendo antes, e na sua essência, práticas culturais, então é necessário reconhecer, igualmente, a dimensão cultural dos factos por elas produzidos (Cetina, 1992).

Em suma, a relevância da linguagem para a análise sociológica da ciência, as virtualidades metodológicas do nível micro da análise, capaz de dar conta da complexidade e particularidade da ação humana, e o distanciamento em relação às perspetivas teóricas, não ancoradas nos estudos empíricos, são algumas das características comuns dos estudos de laboratório (Cetina & Mulkay, 1983, p. 13). Além disso, os estudos de laboratório sublinham, insistentemente, a idiossincrasia da pesquisa em análise. Quer dizer, mesmo reconhecendo a existência de um conjunto de métodos e procedimentos comuns a vários contextos de pesquisa, cada laboratório é um lugar

14 Ao lado de Latour e Woolgar, Karin Knorr Cetina, autora da obra Manufacture Knowledge (1981), é uma

das teóricas mais influentes na consolidação da perspetiva analítica dos estudos de laboratório. (Pickering, 1992, p. 2)

particular onde cada pesquisa, cada experimentação, cada grupo de investigadores articulam materiais, instrumentos, competências também eles singulares.

No entanto, a ênfase na singularidade da investigação parece deixar por explicitar outras questões consideradas igualmente importantes no decurso das pesquisas, tais como os consensos e a comunicação entre domínios comuns de investigação, ao mesmo tempo que tende a minimizar a influência de outros processos que estão fora do laboratório e fora do alcance dos atores da ciência15. Para além disso, e como refere Bucchi, os estudos de laboratório, quase de um modo paradoxal, acentuam a dimensão social do conhecimento produzido, mas deixam que esta se dilua no espaço do laboratório (2004, p. 66). Na mesma linha, Park Doing (2008) observa ainda a dificuldade revelada pelos estudos de laboratório em explicitar o modo como os diversos aspetos socais identificados no laboratório – designadamente as identidades informais, de género ou nacionais ou identidades informais, as questões da segurança, de risco ou ameaça, as negociações e as relações com o comércio ou a indústria, entre outras – se associam à produção e persistência de um determinado facto científico (2008, p. 290). Não pode, no entanto, deixar de se reconhecer que a discussão dos aspetos acima mencionados, desenvolvida pelos estudos de laboratório, contribuiu para aprofundar a reflexão sobre o papel da ciência nas sociedades, por várias razões, mas sobretudo pelo esforço em revelar a vertente política presente na construção do conhecimento científico e tecnológico.

15 São várias as críticas aos estudos de laboratório, não sendo surpreendente que uma delas se dirija,

concretamente, à ideia de construção do facto científico. Trata-se de uma crítica endereçada, de um modo geral, às perspetivas construtivistas, acusadas de não considerarem devidamente as materialidades e realidades associadas às atividades científicas. Os estudos de laboratório não escaparam a esta crítica.