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Contextos para análise das políticas: a investigação nas universidades

Capítulo 3. – Investigação científica e políticas públicas para a ciência: relações entre a ciência e

3.1. Contextos para análise das políticas: a investigação nas universidades

A universidade, não detendo já a exclusividade enquanto lugar de investigação académica, continua a ser, pelo menos em Portugal, o lugar onde se inicia a formação dos investigadores. Mas há múltiplos lugares de pesquisa. Arriscado Nunes observa que a ciência se produz, hoje, em instituições científicas que estabelecem com os governos nacionais múltiplas relações e que exercem as suas influências nas políticas para a ciência e, em particular, sobre os financiamentos. Não obstante, considera que há cada vez mais empresas e laboratórios privados que estabelecem os seus objetivos de investigação (Nunes, 2002, p.191). De qualquer modo, a ideia de estudar com maior pormenor a investigação associada às universidades decorre da especificidade que Patrícia Ávila dá conta quando afirma que a maioria destas instituições estão associadas às universidades e “possuem uma caraterística comum: os seus gestores são docentes e investigadores” (Ávila, 1998, p.100).

Tal como na ciência, as universidades tiveram de responder aos constrangimentos de financiamento, sofreram pressões para mostrar a relevância do trabalho que produzem e associá-lo às finalidades económicas e às necessidades sociais de um dado país. Por seu lado, a qualidade da investigação universitária tem vindo a ser entendida como um requisito de qualidade de ensino nestas instituições. Mas nem sempre foi assim. Uma breve análise do processo histórico da evolução das universidades é suficiente para mostrar que estas desempenharam diferentes funções e desenvolveram, também, relações diversas com o meio e com as dinâmicas das sociedades.

Enquanto instituições de ensino, as universidades tiveram origem na época medieval. Estas estavam associadas a instituições religiosas e assumiram muitas das práticas da Igreja Católica. Do ponto de vista da formação, a teologia e a escolástica dominavam o conhecimento que era entendido, fundamentalmente, como resultado da transmissão do saber e estava condicionado pelos limites impostos pelas fontes e autoridades religiosas. No entanto, este primeiro modelo vai encontrar dificuldades concretas em responder à diversidade cultural presente na Europa no pós-renascimento. Este fenómeno conduziu a um novo projeto para a universidade que assumiu então a função de dotar as elites burguesas de competências culturais e artísticas. Por essa altura,

a universidade passou a privilegiar o conhecimento humanístico (Filho, 2008, pp. 113- 116).

Na perspetiva de Filho (2008, p.119), foi Kant quem inspirou a primeira grande reforma da universidade moderna, ao defender a libertação do conhecimento dos princípios religiosos e políticos e a procura da verdade enquanto garante da autonomia do saber universitário. Na sequência do relatório dos irmãos Humbolt, emerge assim um modelo de universidade cuja marca identitária está na associação íntima entre investigação e ensino. Não obstante a diversidade de modelos de universidade, a universidade humboltiana, enquanto modelo que acomodava as exigências do modo de produção capitalista, que necessitava do conhecimento e do desenvolvimento tecnológico para se expandir, consolida-se na Europa, na modernidade. Ao assumir a investigação e o ensino como principais funções, o modelo humboltiano constrói igualmente uma imagem simbólica e ideológica particular (Filho, 2008, p. 119). O reconhecimento e o prestígio das universidades tornam-se indissociáveis da investigação científica que se produz nelas e como consequência: “A busca desinteressada da verdade, a escolha autónoma dos métodos e temas de investigação, as paixões pelo avanço da ciência constituem a marca ideológica da universidade moderna. São a justificação última da autonomia e especificidade institucional da universidade” (Santos, 1989, p.24).

As palavras de Boaventura Santos enfatizam as consequências ideológicas e institucionais da integração da pesquisa científica na missão da universidade. Mas existem igualmente consequências epistemológicas que sobressaem. No modelo de Humbolt, o conhecimento que passa a ser valorizado pela universidade é um conhecimento especializado e disciplinar e esta fragmentação disciplinar reflete-se na própria organização da universidade, designadamente, na multiplicação de departamentos separados tanto do ponto de vista disciplinar como administrativo (Filho, 2008, p.169). Já na segunda metade do séc. XX, as perspetivas sobre o conhecimento tendem a alterar- se, começando a ser traçado um novo percurso epistemológico que assinala o valor do conhecimento multidisciplinar, inter ou transdiciplinar (Filho, 2008, p.107).

Após a chamada primeira revolução académica, cujo significado esteve associado ao facto de a universidade assumir a pesquisa enquanto função adicional e complementar

ao ensino, a segunda revolução académica mostra-se consequente da integração do desenvolvimento económico e social na função das universidades. Henry Etzkowitz (1998) dá conta de uma nova configuração das universidades a partir do desenvolvimento daquilo que denomina como processo de “capitalização do conhecimento”. O autor explica que, neste novo contexto, há uma aproximação sistemática dos cientistas às atividades empresariais. Não surpreende, por isso, que se possa vir a observar uma mudança nas representações dos cientistas em relação à ciência, aos papéis que eles desempenham na comunidade científica, em relação à própria comunidade científica e, consequentemente, à própria função e papeis da universidade (Etzkowitz, 1998, p.824). No entanto, a ideia de “capitalização do conhecimento” pode conflituar, segundo este autor, com a função de “extensão do conhecimento” tradicionalmente assumida pelas comunidades académicas. A necessidade de compatibilizar estas duas funções da universidade tem vindo a impulsionar uma mudança normativa, um novo “ethos comercial”. Mas não é só. A transição para a ciência de tipo empresarial (Etzkowitz, 1998) traz consigo novas oportunidades de conhecimento, rearranjos institucionais e novas reconfigurações nas agendas de pesquisa num número cada vez mais significativo de disciplinas e áreas científicas e, para os cientistas, a possibilidade de conciliar a procura da verdade com o lucro (1998, p. 824).

Já Boaventura Santos (1989), referindo-se à universidade nas sociedades ocidentais, explicita as dificuldades enfrentadas por esta em responder às exigências e aos apelos mais recentes das sociedades. Hoje, as universidades enfrentam um duplo desafio: elas debatem-se, por um lado, com a redução de financiamentos do Estado e, por outro, com a necessidade de responder adequadamente às solicitações das sociedades. Por serem, tradicionalmente, instituições marcadas por uma rigidez funcional e institucional, as universidades têm mostrado pouca recetividade e disponibilidade para introduzir mudanças no seu interior (Santos, 1989, p.11).

Se é certo que a pressão para a relevância social do conhecimento produzido pela universidade não pode ser inteiramente considerada como um fenómeno novo, a verdade é que, desde os finais dos anos 80 e inícios de 90, o conhecimento passou a ser perspetivado, sistematicamente, como um produto essencial para o desenvolvimento

económico e financeiro das sociedades29. Isto conduziu a novas pressões sobre a investigação produzida em contexto universitário. A aproximação da universidade aos processos de globalização económica passou a ser uma questão, igualmente, debatida pelos teóricos que se dedicaram à análise dos processos de construção do conhecimento científico, tal como vimos no capítulo anterior. As reflexões associadas às mudanças no processo de investigação, que decorrem desta relação entre a universidade e o mercado, e os novos questionamentos sobre a autonomia e identidade dos investigadores revelam a preocupação dos teóricos em identificar as tensões entre os condicionamentos económicos da produção científica e a missão das universidades.

De certo modo, este debate teórico foi já apresentado no capítulo anterior. Refira- se apenas aqui que, no caso das universidades, o seu papel no desenvolvimento de uma sociedade não parecer ser questionável. No entanto, como argumentam Breznitz e Feldman (2012), é necessário equacionar o contributo das universidades numa perspetiva global. Com efeito, a universidade não é uma empresa. De um modo geral, os seus contributos em termos económicos podem apenas ser identificados a longo prazo. Dizem estes autores que, o ensino, sendo uma das principais funções da universidade, contribui claramente para o aumento do capital humano. Contudo, as transformações em educação exigem tempo. Por seu lado, a transferência de conhecimento, resultante da investigação nas universidades e que se traduzir em licenciamentos, parcerias, consultorias, também não é um processo imediato (Breznitz & Feldman, 2012, p.140). Além disso, importa, igualmente, reconhecer o protagonismo assumido pelas universidades junto das comunidades envolventes. Em muitos casos, as universidades têm funções de aconselhamento, quer em relação às empresas locais, quer na produção de pareceres políticos e/ou estatais. Por sua vez, as comunidades interessam às universidades por serem lugares privilegiados de pesquisa, de experimentação, de validação de novas ideias. São, neste sentido, e usando a expressão tão cara a Latour, laboratórios para investigação na academia (Breznitz & Feldman, 2012,p.141). Tudo isto, como se percebe, ultrapassa em

29 Também não se pode considerar que a aproximação da ciência às atividades empresariais seja um

fenómeno novo. Pelo menos desde o século XVII, sobretudo ao nível da química, diversas atividades de pesquisa conduziram a empreendimentos comerciais e económicos importantes (Etzkowitz, 1998, p. 823).

muito a dimensão económica do papel das universidades.

As questões que estas análises nos levantam, são múltiplas: As expetativas de financiamento interferem nas prioridades de pesquisa das universidades? O pressuposto do trabalho científico lucrativo, a curto prazo, poderá facilmente conciliar-se com as questões de validade científica, quando estas exigem tempo para serem observadas? Caminharemos para um novo sistema de regulação das comunidades científicas que terão agora de integrar nos seus princípios o desenvolvimento de conhecimentos que apresentem vantagens competitivas para as empresas e para o mercado? Será tudo isto possível de deixar intocável, tal como muitos pretendem, a noção de autonomia da ciência e a “liberdade académica”?

3.2. As políticas públicas para a ciência em Portugal: situando historicamente a