• Nenhum resultado encontrado

APROXIMANDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS DAS DEMANDAS SOCIAIS: A

1 A EVOLUÇÃO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

1.2 APROXIMANDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS DAS DEMANDAS SOCIAIS: A

1.2.1 A Democracia Participativa

(...) A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar (...).

Chico Buarque, Roda Viva

É vasto o debate sobre o significado de democracia no campo das Ciências Sociais, e aqui não se adentrará aos meandros teóricos destas divergências. Seu conceito será abordado a partir da previsão constitucional, contida no artigo 1º, que dispõe que o fundamento do Estado Democrático de Direito é o exercício do poder popular.

O parágrafo primeiro deste mesmo artigo prevê a possibilidade de exercício direto ou indireto do poder popular, e aqui caberá aprofundar esta última previsão, o exercício direto do poder, fundado no princípio da soberania popular, tal como previsto no artigo 14 da CF, que trata a iniciativa popular como uma forma de exercício dessa soberania.

A soberania popular, exercida de forma direta ou indireta, constitui o alicerce do Estado Democrático de Direito, o que, nos dizeres de José Afonso da Silva significa:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (artigo 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.39

Este conceito de democracia, que envolve o convívio e o respeito com o diferente, o respeito à diversidade de ideias, culturas e etnias, a liberação de toda forma de opressão, corre livremente ao encontro do conceito do Direito à Cidade, como previsto na Carta Mundial do Direito à Cidade40, e relatado pelo professor Nelson Saule Júnior41:

São considerados como direitos relativos à gestão da cidade, os seguintes: desenvolvimento urbano equitativo e sustentável, participação no orçamento da cidade, transparência na gestão da cidade e direito à informação pública. Pela Carta, para o desenvolvimento urbano equitativo e sustentável as cidades devem comprometer-se a regular e controlar o desenvolvimento urbano, mediante políticas territoriais que priorizem a produção de habitação de interesse social e o cumprimento da função social da propriedade pública e privada, em observância aos interesses sociais, culturais e ambientais coletivos, sobre os individuais. Para tanto, as cidades obrigam-se a adotar medidas de desenvolvimento urbano, em especial a reabilitação das habitações degradadas e marginais, promovendo uma cidade integrada e equitativa.

(...) a defesa do direito à cidade, compreendido como um direito coletivo dos habitantes das cidades e povoados, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, ao usufruto da riqueza e cultura das cidades, sem distinções de gênero, nação, raça, linguagem e crenças. Inclui o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, ao saneamento, à saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer, à informação, a preservação da herança histórica e cultural.

39SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 112.

40CARTA Mundial do Direito à Cidade. Instituto Pólis. Disponível em:

<http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=12>. Acesso em: 24 jun. 2012.

41SAULE JÚNIOR, Nelson. O Direito à cidade como paradigma da governança urbana democrática. Disponível

O direito à cidade democrática, equitativa e justa pressupõe o exercício pleno dos direitos sociais, econômicos, culturais, civis e políticos previstos em Pactos e Convenções internalizados pelo Brasil, que garantam o direito a um adequado padrão de vida; o direito ao trabalho; à saúde; à água; à educação; à participação política; à segurança; à convivência diversa e pacífica; à moradia digna e adequada.

O convívio entre toda esta diversidade nas cidades só poderá ser harmônico se os valores democráticos acima mencionados forem respeitados. São, portanto, confluentes as garantias previstas para constituição do Estado Democrático de Direito e para o Direito à Cidade, ao passo em que ambas prezam pelo respeito e pelo contato com o diferente, pelo fim da opressão, com a divisão equitativa dos benefícios ao povo, sem distinção de raça, gênero e etnia. E é por meio dos mecanismos de gestão democrática que serão construídas cidades plurais, como se verá mais à frente.

Para José Afonso da Silva, como já mencionado, a efetividade da democracia está condicionada ao reconhecimento de direitos individuais, bem como à existência de condições econômicas favoráveis para que o exercício do convívio entre o diferente seja exercido. E neste passo a democrática participativa é elemento central para que estas condições sejam criadas, já que a ampla participação popular visa contemplar diversos olhares e percepções.

E este é um ciclo que se retroalimenta, pois são estas diferenças que fortalecem a própria democracia e enriquecem a construção coletiva, permitindo o aprendizado. Para Marilena Chauí, esta é uma das características da democracia, que ela define como:

Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir- se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição? Ou seja, a oposição significa que o conflito se resolve sem modificação da estrutura da sociedade, mas uma contradição só se resolve com a mudança estrutural da sociedade.42

Pelo pensamento acima, pode-se arriscar dizer que as democracias são tão mais democráticas quanto mais intensa é a participação política e, consequentemente, quanto maior o confronto entre opiniões divergentes. Essa característica merece destaque, pois o dissenso não pode ser tomado como crítica ao processo democrático. Não é o consenso que se busca com o aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão democrática, mas sim trazer à tona as

42CHAUÍ, Marilena. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. In: TEIXEIRA, Ana

diferentes opiniões sobre o tema, como defendeu neste mês no Senado Federal o filósofo Girard.43 Para ele, o silêncio da minoria poderia aparentar falso consenso, quando na verdade

poderia ser uma forma de opressão perante a opinião dominante ou então uma forma da voz dissonante não se envolver no embate. Para ele o consenso, que representaria um dogma, poderia ser uma ameaça à democracia, cuja essência seria o convívio e o respeito ao diferente.

Este embate entre vozes dissonantes traz grandes contribuições à sociedade. A

participação cidadã, que traz custos aos cofres públicos, traz também como retorno uma legitimação das políticas implantadas, que acaba tornando mais eficiente, e, consequentemente, esse custo acaba sendo revertido de forma positiva à Administração:

(...) a participação do cidadão qualifica os processos decisórios, tornando-os mais legítimos e, principalmente, aumenta a eficiência administrativa do próprio Estado. O processo tem como resultado uma transformação do cidadão que participa dos espaços institucionais, que passa a lidar com especificidades da gestão pública que eles até então desconheciam, bem como dos quadros técnicos e administrativos envolvidos, que tem que adaptar suas formas de comunicação para transmitir as informações necessárias aos leigos que participam do processo.44

Tornar legítimos os processos decisórios para aumentar a eficiência administrativa do Estado é um dos interesses do Poder Público. Vale fazer breve comentário ao conceito de legitimidade, aqui explanado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto45:

Sob esse referencial, contrasta-se a ação com a vontade dominante na sociedade e retira-se a conclusão: legítima, se concorda, ou ilegítima, se não é com ela concordante. Essa vontade dominante recebe outras denominações, como vontade da maioria, communis opinio, interesse coletivo, etc., mas embora todas essas expressões espelhem um valor social qualquer, não é o valor, em si, que se quer realizar através do poder, mas um desejo, afinal, que se pretende satisfazer. A base do poder político é a legitimidade tanto das opções quanto de quem as faz.

Para o autor, a legitimidade está na identidade entre a vontade do povo e ação do Poder Público. É nesta confluência de interesses que reside a legitimidade. E para ele o que importa não é o valor em si que se torna legítimo por meio desta sinergia, mas o processo para se chegar à decisão coletiva.

A participação social, portanto, além de ser um dos instrumentos de consolidação da democracia, é também um valor em si mesma, pois é uma importante ação pedagógica capaz de formar agentes críticos:

43Charles Girard é professor da Universidade de Paris-Sorbonne. Jornal do Senado, 25 de junho de 2012. p. 4. 44SILVA, Eduardo Moreira da; CUNHA, Eleonora Schettini Martins. (Orgs.). Experiências internacionais de

participação. São Paulo: Cortez, 2010. p. 17.

45MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política: legislativa, administrativa e

A participação como maneira de fortalecimento da democracia é uma importante base para buscar resolver os conflitos e mesmo preveni-los. Os espaços da participação constituem uma grande rede entre indivíduos, suas organizações, movimentos sociais e o Estado. É por meio dela que, em boa medida, os atores sociais formam opinião, se expressam, fazem sua vontade ganhar poder coletivo e, assim, interferem nos destinos do país.46

Os espaços de participação seriam, assim, também espaços de formação da população, onde o exercício do debate, do contato com opiniões divergentes e a consequente influência nos destinos do governo podem ser realizados. E, mais do que isso, Maria da Glória Gohn pondera que, em que pese a dificuldade de mensurar os efeitos da participação, o efeito inclusivo destes novos atores como gestores da coisa pública é inegável:

Seu impacto na sociedade não será dado por índices estatísticos, mas por uma nova qualidade exercitada na gestão da coisa pública ao tratar o tema da exclusão social não meramente como inclusão em redes compensatórias destinadas a clientes/consumidores de serviços sociais.47

Esta nova qualidade na gestão democrática da coisa pública é um longo processo que exige muita prática para seu aprimoramento. Contudo, não é apenas a sociedade que precisa se preparar para o processo participativo, mas a mesma importância terá a dimensão que será atribuída pelo Poder Público a esta participação e à destinação que ele dará a seus frutos.

A participação da população busca reduzir as distorções de poder e de erro na tomada de decisões, pois aproximam as decisões políticas das necessidades reais da população e de seus interesses, tornando-as mais legítimas; além de fazer com que o cidadão se torne corresponsável pelos seus resultados, implicando em seu amadurecimento político e conferindo-lhe maior autonomia e maior capacidade de se autodeterminar.

46LAMBERTUCCI, Antonio Roberto. A participação social no governo Lula. In: AVRITZER, Leonardo. (Org.).

Experiências nacionais de participação social. São Paulo: Cortez, 2009. p. 82.