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1 A EVOLUÇÃO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

1.5 A TRAJETÓRIA DA REFORMA URBANA

O Estatuto da Cidade

Diferentemente do que se viu no primeiro capítulo, aqui, como continuidade do processo iniciado com a Assembleia Constituinte, se consolida a mudança de paradigma iniciada em meados de 1988. Isto ocorre porque a luta pelo direito à cidade, que visa reconhecer direitos e cidadania aos habitantes de cidades que vivem em territórios considerados ilegais, informais ou irregulares nos bairros periféricos, além de buscar que a legislação passe a ser elaborada a partir da situação fática, tem como pressuposto o estreitamento de laços com a Sociedade Civil, por meio da democracia participativa. Sobre esta mudança de expectativa acerca da legislação, afirma Raquel Rolnik:

Os grupos que empunharam a bandeira da reforma urbana propuseram, no âmbito local, instrumentos que superassem a ideia da legislação como objeto puramente técnico, explorando suas múltiplas alianças com as desigualdades da sociedade e elaborando instrumentos urbanísticos que jogassem o peso do Estado e da regulação a favor ± e não contra, como de costume - da democratização do espaço da cidade. O tema da política fundiária foi particularmente importante nesse debate. A questão do acesso ao solo urbano para as populações de menor renda já vinham sendo formulada desde a emenda popular pela reforma urbana em duas vertentes: a do reconhecimento dos direitos de posse e de integração à cidade daqueles que

79MENCIO, Mariana. Regime jurídico das audiências públicas na gestão democrática das cidades. Belo

constituíram as favelas e ocupações e a do combate à retenção especulativa de terrenos. No nível local, experiências como o Programa de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (PREZEIS) em Recife, o Profavela em Belo Horizonte, as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) em Diadema, todos iniciados na década de 1990, estão entre as primeiras aplicações práticas dessa nova abordagem.80

São dois os momentos que merecem destaque no avanço democrático: o movimento pela Constituinte em 1988 e, posteriormente, a regulamentação GR &DStWXOR ³'D 3ROtWLFD 8UEDQD´da Constituição Federal, com a promulgação do Estatuto da Cidade.

O Projeto de Lei (PL) que daria origem a ele foi apresentado em 1989, pelo Senador Pompeu de Souza, que morreu antes que seu projeto fosse aprovado.81 Este PL transferia poderes aos Municípios, prevendo que os Planos Diretores pudessem determinar áreas de urbanização preferencial, urbanização restrita e regularização fundiária. E o mais importante, consagrava a gestão democrática durante todo o processo, com a participação tripartite entre representação popular, Poder Público e empresariado.82

O projeto de lei tramitou no Congresso Nacional por mais de dez anos e recebeu mais de 100 emendas, grande parte delas eram formas de resistência às inovações trazidas pelo PL. Durante todo este longo processo, o MNRU lutou contra a morosidade de alguns parlamentares contrários aos interesses populares, que não tinham qualquer interesse na aprovação do projeto.

Apesar de muita luta contrária, em 2001, doze anos após sua apresentação, o projeto de lei foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados. Recebeu oito vetos, dois deles em temas deveras importante.

O primeiro foi a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia, que permitia o direito à posse de terreno público, preenchidos os mesmos requisitos da usucapião. O presidente, porém, firmou compromisso de que uma Medida Provisória seria editada com brevidade a fim de suprir esta lacuna. E de fato foi, no mesmo ano aprovou-se a MP 2.220, porém, limitando a prescrição aquisitiva ao ano de 2001.

O outro veto foi à responsabilidade que se atribuiria aos prefeitos que não garantissem a gestão democrática na elaboração dos Planos Diretores, o dispositivo caracterizava como ato

80ROLNIK, Raquel; CYMBALISTA, Renato; NAKANO, Kazuo. Solo urbano e habitação de interesse social: a

questão fundiária na política habitacional e urbana do país. Revista de Direito ± Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal, Porto Alegre, Ano III, n. 13, p. 129-130, nov. 2011.

81BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade ± quem ganhou, quem perdeu? Brasília, 2004. Disponível em:

<http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/comissoes/cdu/artigos.html/estatutobassul.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2012.

de improbidade a ação de impedir a participação de comunidades, movimentos e entidades da Sociedade Civil na aplicação de instrumentos previstos no artigo 4º.

Em que pese muito do projeto original ter sido reformulado, são evidentes as inovações que a lei consagrou. Ao regulamentar os artigos 182 e 183, da Constituição Federal, estabelece como objetivos o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da sociedade, e, entre suas diretrizes, o direito a cidades sustentáveis, a gestão democrática das cidades, a cooperação entre os atores sociais, o planejamento das cidades, bem como a regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda, entre outras.

Três aspectos do Estatuto da Cidade merecem destaque para este estudo: a gestão democrática, a constituição dos Planos Diretores e as ZEIS.

A gestão democrática foi garantida pelo capítulo IV do Estatuto das Cidades, que prevê órgãos colegiados da política urbana e conferências nos três níveis da federação; audiências, consultas e debates públicos, bem como iniciativa popular de projeto de lei.

O Plano Diretor, instrumento do planejamento territorial municipal, que no próximo capítulo será abordado com mais detalhes, passou a ser obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, e responsável pela definição e pelo cumprimento da função social da propriedade.

Por fim, as ZEIS, que foram previstas como um dos instrumentos jurídico/político da política urbana como sendo áreas em que a legislação permite padrões diferenciados de uso e ocupação do solo, facilitando a regularização fundiária à população de baixa renda. Contudo, sua regulamentação só ocorreria no ano de 2009, com a Lei nº 11.977, como será exposto em capítulo específico.

Assim, os diversos segmentos da sociedade que lutam por cidades justas, como movimentos sociais, parlamentares, partidos políticos, correntes religiosas progressistas, bem como setores acadêmicos, puderam ver consagrada no texto legal grande parte de suas reivindicações, seja por meio da Assembleia Nacional Constituinte, seja por meio do Estatuto da Cidade.

2 INSTRUMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE CIDADES DEMOCRÁTICAS E