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3. O TEMPO DO APURO: POR ONDE VIESTES VÓS HÁ DE VOLTAR

3.2 Aquieta-te

“Duas aves, unidas sempre e conhecidas pelo mesmo nome

agarram-se a mesma árvore. Uma delas come o doce fruto; a outra olha, sem comer.”

- Upanishads.

Lembremo-nos da imagem da torre de Babel como representando a própria manifestação do homem (hoje, talvez, mais do nunca). Nós fomos divididos em tantas direções, em tantos aspectos distintos, cada um com sua própria voz, que nossa atenção encontra-se mobilizada e confundida com toda essa ramificação cacofônica. Esforçamo-nos para equilibrar todas essa vozes, impulsos e direções, a fim de adquirirmos um pouco de paz, mas, tal como um jogo de tabuleiro, quando pensamos que nossas peças adquiriram uma afirmação que garante uma respiração mais ampla, não tarda uma nova situação que nos corta o fôlego.

Deste modo, nossa atenção não tem sossego; está sempre trabalhando para organizar as múltiplas e irrefreáveis manifestações do nosso ser. E está sempre atrasada; nunca consegue chegar antes da manifestação desses impulsos e direções. Isso porque tem estado tão acostumada a se ocupar e implicar com o movimento crescente dessa ramificação, que se olvidou que, se há um momento em que ela nasce e vem à tona, há, portanto, outro em que ela não nasceu, e que seria mais eficaz pastorear a partir desse ponto. Se, no entanto, a ideia for comunicada à essa atenção, provavelmente, ela usará do argumento que não tem tempo para correr na direção contrária do crescimento da rede, e, só de imaginar isso, a ansiedade já lhe surge, visto que todo o trabalho a que tem se dedicado, até onde sua memória alcance, é posto em risco perante essa proposta; e essa atenção conhece, por experiência, os perigos de deixar os impulsos da existência desacompanhados de regulação.

Mas, o que ocorre de fato, é que a atenção está tão confundida com as manifestações das quais cuida, que desgarrá-la deste exercício lhe traz a

92 menção de sua própria morte. É como um olho que, não tendo o que ver, coloca sua própria existência em xeque.

Assim, movemo-nos de modo convulso, afobado e frágil, sempre esperando que, na próxima redistribuição de cartas, nossa situação seja mais satisfatória, enredados que estamos no jogo das manifestações. Sempre correndo atrás do tempo, esse exímio mágico que distraí a todos, enquanto habilmente oculta seu segredo. A cada instante, a capa de arlequim se amplia pelo mundo, por mais coagido que já esteja, sem poder estar nu em sua realidade primeira.

E, por mais esforço que a nossa atenção faça para controlar o manifesto, a insatisfação está sempre à espreita. Isso porque, no fundo, sabemos que não podemos controlar o manifesto com o parâmetro necessário, estando enredados e confundidos nele. Além disso, a estafa resultante de tal tarefa se deve tanto a um avanço significativo muito diminuto, quanto à distância que este trabalho se impõe da natureza primordial de toda manifestação. É na terra dessa distância e esquecimento que toda insatisfação brota. Já dissemos que, quanto mais próximo desse ínfimo núcleo indimensionável que abarca a Presença ubíqua, maior é a concentração de energia. Com a dispersão em eventos separados, advém também um decréscimo no índice de vitalidade a ser experimentada.

Já com relação ao diminuto avanço que tal modo de operar a atenção demonstra na capacidade de se ver livre de dramas e conflitos essenciais que acompanham a natureza humana, como se fossem sua própria vida elementar, relembremos a razão para essa condição. O fato de a atenção estar sempre enredada, confundida, submetida ao avanço da manifestação da mente condicionada pela memória, faz com que essas memórias de remotas origens jamais cessem de se afirmar, criando o que se pode chamar de tendências do pensamento. Esse é o processo do pensamento tomado pela seguinte definição:

O pensamento é, na essência, a reação ativa da memória. Incluímos no pensamento a parte intelectual, emocional, sensorial e as reações musculares e físicas da memória. Esses são todos aspectos de um único processo indissolúvel (Bohm, 2008: p.63).

93 O pensamento e a atenção encontram-se condicionados pela radiação de memórias das mais distintas fases e idades advindas da experiência. A experiência, por sua vez, foi vivida a partir do background de memória até então acumulado. E assim, o círculo vicioso se repete, até que possa se manifestar uma outra dimensão do pensamento, que rompa com esse circuito. A atenção e o ímpeto do pensamento, confundidos e atraídos pelas mais diversas camadas sobrepostas da memória, jamais poderão avançar em relação as suas tendências e conflitos. Para isso, é necessário que a atenção, de súbito e de uma só vez, salte do espaço e exercício aos quais está circunscrita para observar a si própria. Livre de qualquer fundo de memória e tendência que lhe arraste, a atenção revela a si mesma sua natureza incondicionada. E, ao fazer isso, ela está sob o poder de ordenar que todo circuito condicionado do processo de pensamento, seja físico, emocional, sensorial ou intelectual, Aquiete-se de seu movimento mecânico e inconsciente.

É aqui que as posições se invertem: o pensamento, que operava seu movimento, condicionado pela memória – esse monstro que de tudo se apossava –, passa a habitar a condição de desacossado, junto ao Real Ilimitado; é dessas alturas que os novos direcionamentos, percepções e movimentos se manifestarão. O corpo, constituído pela memória e experiência, passa a ser um dentre inúmeros modos de manifestação desta nova natureza conquistada. É desta maneira que uma nova Inteligência, não proveniente da experiência, assume o processo. Este é o tesouro a ser conquistado a fim de alavancarmos nosso essencial avanço no caminho do conhecimento.

Esse Aquieta-te e o trabalho para alcançá-lo com perfeição são como amansar um touro, para que ele receba suas ordens, ou arar a terra, para que fique mais macia e receptiva para germinar uma semente. Ou ainda, fazer cessar os ventos, para que, de agitado, um lago possa se acalmar a tal ponto que reflita o universo cintilante.

Vejamos alguns modos pelos quais essa mansidão ontológica, que prepara e é condição para a instauração desse Novo Pensamento, pode ser conquistada.

94 Falamos de mansidão, mas também poderíamos falar, sem prejuízo de sentido, de honestidade ontológica. Já fazem alguns anos o pensador Pierre Proudhon (2014) golpeou nosso modo ocidental de existência, afirmando que a propriedade privada é um roubo. É claro que Proudhon estava se referindo a terra e meios materiais responsáveis pela manutenção da vida comum. Mas, o mesmo pode ser dito da Vitalidade imaterial que sustenta e anima tudo quanto há; ou seja, pode-se tomar essa frase em um sentido ontológico: a vida interior é um roubo; assim como também a exterior. Mais alinhado com esse sentido, Patanjali, um praticante da psicologia cósmica indiana, defende que “O homem que toma a resolução de não roubar torna-se o mestre de todos os ricos” (Prabhavananda, 1963: 13). Aqui o rico é o despossuído e desapossado, que, por tal postura, efetua em si a livre circulação da abundante Vitalidade Contínua.