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3. O TEMPO DO APURO: POR ONDE VIESTES VÓS HÁ DE VOLTAR

3.1 O balanço

os outros tópicos são inscritos. O 3.2 Aquieta-te já desponta como a condição, a disposição de si, a dinâmica pela qual o aprendiz deve ir operando sua percepção para efetivar em si o conhecimento. Já o 3.3. Restringir o restritivo trata de como tais condições e disposições podem ser efetivadas com o auxílio de três ritos por nós praticados: o feitio, a dieta e o bailado. Fechamos pois o capítulo com 3.4 A voz do deserto onde buscamos passar a vista, depois de caminhado até ali, para nos apercebermos que havíamos chegado ao início do caminho, ao início do saber Contínuo, à porta deste saber a que vinhamos sendo conduzidos; e que tudo ainda estava por ser experimentado.

3.1 O balanço17

“O prego que se sobressai leva martelada.” Provérbio chinês.

17 Sobre o balanço: palavra frequente entre os daimistas que, ora remete ao efeito desestabilizador da força do chá, ora a alguma situação também desestabilizadora na vida de qualquer um. Cabe também aqui, o sentido de ponderar, colocar na balança, momento propício para compreender o que pesa ou vale mais.

87 Aqui ocorre algo às avessas do que se dá com o balanço de ninar. O balanço em questão vem para despertar, é uma ciranda do alerta.18 Pode-se

tomar a seguinte imagem: estamos todos em uma embarcação em alto mar. Com a tempestade, as ondas crescem e a força do balanço desaloja todos de seu estado costumeiro.

Dentro dessa realidade, tudo tem que balançar, tem que estremecer a fim de se acordar para o Plano a que os ensinos conduzem. Todo aperto nos chama para se firmar no elemento primordial, reconhecer o sufoco de determinada condição, balizar uma respiração mais ampla. É o tempo do apuro, da dificuldade, mas também o de extrair dessa condição uma nova vitalidade, de descobrir e se firmar em um plano de sustentação a que só o balanço poderia nos conduzir.

O balanço faz com que procuremos em lugares inauditos o elemento que preenche a necessidade trazida por ele. Procura que nos desaloja, nos retira de onde estávamos assentados por comodidade ou conveniência. Parece nos dizer: - Te firma onde não há lugar, reconhece onde tu não está, agrega isso em ti.

É como se o tempo de nossas acomodações estivesse expirando e estivéssemos sendo chamados a um novo tempo, num momento limite em que um segundo nascer já se coloca com urgência. Já não podemos dormitar no útero. Essa opção não é mais nem confortável nem mais possível, pois o útero busca nos expulsar mediante contrações cada vez mais fortes. A cada cochilada que tentamos dar, por força do costume, somos despertados com mais aperto e dor. Chega o momento de ajudarmos em nosso próprio nascimento e abandonar a relutância, co-operar nesse processo em que estamos envolvidos.

O balanço nos ajuda a reconhecer tudo que está sujeito ao tempo e espaço sedimentado, furtando-nos cada vez mais de vivermos apoiados em tais plataformas. O alerta é para que o aspecto não dimensional do pensamento e do real seja reconhecido e que os caminhos existenciais, que extrapolam nossas medidas de tempo e espaço, sejam aprofundados.

88 Ocorre que esse caminho, esse processo não é tão simples. Muitas são as etapas e dificuldades. Se uma vida humana demora em média nove meses para nascer, no caso do pensamento não dimensional, não se pode prever ao certo o tempo de nascimento; diferente da situação intrauterina, parece que o indivíduo localizado e temporalizado pode adiar indefinidamente seu nascimento no firmamento não dimensional. Evidentemente, à custa de muito balanço. Até que um dia, sem mais nem menos, o balanço mostra seus efeitos.

Antes de vivermos essa experiência dimensionável – um “antes” que está neste momento vivo, em uma sintonia esquecida de nosso ser, aguardando para que possa ser percebido e integrado à experiência consciente do ente –, vivíamos em completa União não dimensionável. Com a dispersão babélica dessa União, o ser passou a tomar-se por destacado, assumindo o modo de percepção particular. O que urge aqui é despertarmos em nós essa anterioridade não dimensionável, para percebermos como em sonho temos vivido.

A mestria presente na Ayahuasca tem para oferecer a todos o manto dessa União. O Balanço é o meio para que o estudante possa distinguir, decidir e direcionar seu ser. É preciso estudá-lo, para dele tirar suas lições. O balanço é o efeito da incompatibilidade ainda existente entre a percepção particular e a União; é a sinalização de que é preciso se direcionar com mais afinco no sentido desta. Mas, além de sinalização, é também um processo, por vezes penoso, pelo qual o ser tem que passar para se desgarrar das tendências que o levam a se ver e agir como se estivesse destacado.

Falamos anteriormente que a percepção particular é o efeito da Grande Vida coada pelo filtro da memória (do esforço de a interiorizar); daí se projeta o que vivenciamos como percepção da realidade individual. O trabalho que é conclamado a ser feito aqui é o de desgarrar o ser dessa memória – todo material movido pelo impulso de acumulação –, passando de volta pelo coador no sentido inverso para chegar a Grande Vida novamente, à União. A memória individual não é perdida no processo; passa a estar submetida à consciência da Grande Vida. Quanto mais o ser vai avançando neste caminho, mais força vai conquistando, pois que abre espaço em si para a concentrada força da União. E quanto mais integrado está nesta força, menor é o balanço, em razão do balanço resultar da dispersão desta força. Quando o ser estiver totalmente firmado na

89 consciência da força, verá que os balanços da forma não mais o atinge, e mesmo no mundo da forma, a harmonia será manifesta, pois é operada pela Inteligência da força. Até lá, muito trabalho deve ser realizado a fim de apurar nossa percepção.

Vou trazer aqui a história de Jonas. No momento, tomem Deus como essa potência não dimensionável que concentra tudo em si de modo indivisível, ou Inteligência tal como vimos.

A história começa com um chamado de Deus a Jonas: “- Dispõe-te Jonas...”. É a primeira condição que Deus coloca para que Jonas receba sua missão. Para que se engaje na perspectiva de Deus, é necessário que Jonas saia e deixe vaga a posição que o caracteriza enquanto Jonas. Jonas, porém, aferrado a concepções particulares que iriam contra a missão que Deus lhe enviou, acaba por fugir em um navio para Társis. No entanto, a ira de Deus se abate contra o navio. Descoberto como a causa da tempestade, eis que é atirado pelos marinheiros em alto mar, o que abranda as águas e salva os marujos. Jonas, entretanto, ainda soberbo de si, atrai novamente a desgraça. Desta vez é engolido por uma baleia e permanece por três dias e três noites dentro dela. Somente diante de tal situação é que se torna capaz de render suas concepções aos caminhos que Deus lhe impulsionava. Somente aí é capaz de seguir sem defesas e se dis-pôr, tomando a voz de Deus como seu caminho; é a partir daí que o conhecimento de Deus vai sendo mostrado a ele.

Os marinheiros foram mais rápidos que Jonas. Quando descobriram entre eles o motivo de incompatibilidade com uma boa navegação, entregaram a causa à mesma força que os assolava, cobrando tal entrega. Esta entrega promoveu uma maior integração deles com a força, o que, por sua vez, abrandou o mar. No entanto, Jonas não estava tão disposto a fazer a entrega. Seu impulso particular o manteve sob apertos cada vez mais intensos. Somente quando faz essa entrega é que é cuspido para fora da baleia e se coloca no caminho da União.

Veja como é necessária a entrega, a doação de si. É na medida em que cresce a consciência desta necessidade, que o ser, sob a tutela da memória – que retém sua percepção em seus limites –, fortalece sua direção neste sentido,

90 desgarrando-se, pouco a pouco, da malha que ele achava ser ele próprio. Com o tempo, começa a ver que tudo que tem entregue agia como uma camisa de força para sua real natureza, e, uma vez que procede com a entrega, aproxima- se mais de sua verdadeira Presença.

O que o balanço faz é oferecer a oportunidade para se efetuar a entrega. Quanto menor a entrega, maior o balanço. E quanto maior a entrega, mais a consciência escapa de seu registro limitado, afirmando-se como Campo da Ilimitada Inteligência, como Consciência aberta e livre da forma.

Deve-se, pois, mediante o balanço, deixar-se recolher na natureza íntima, na seiva do mesmo, que é a União, ofertando o que nos dói e incomoda. O efeito do balanço, em nós, tomamos como posses, conteúdos que nos preenchem. Porém, se entregamos esses aspectos que o balanço ressaltou, tal como os marinheiros entregaram Jonas, estaremos entregando-os ao verdadeiro dono, que é a Grande Vida. Procedendo assim, livraremo-nos da concepção de que sou eu que faço, sou eu que penso, sou eu que sofro, e que a posição de experimentador é minha. Deste modo, entregamo-nos ao verdadeiro sujeito da experiência, e vamos despertando em nós sua existência.

A real entrega é sempre respondida com uma sensação de alívio; isto porque, de fato, foi entregue ao Ilimitado o determinado aspecto da vida do ser. Com o caminhar, essa capacidade de entrega aumenta, até que, de conteúdos interiores, o ser coloque a si e aos seus na mesa de doações. Quando se chega a esse ponto, a mente é atraída para o modo não dimensional como a agulha é atraída pelo imã. Novamente, isso tudo ocorre na medida em que surge a compreensão da necessidade de tal direcionamento. Não devemos imaginar que esse vital direcionamento não se origine de uma íntima compreensão que torne evidente e presente os ares e a natureza desta direção a que se decidiu seguir. Por isso, a importância do balanço, pois é dele que se chega ao discernimento de qual direção torna o balanço mais agudo, e, por outro lado, qual o torna mais brando, até estabilizá-lo. Deste modo, ele proporciona a tomada de consciência da própria linha viva, que, assumida em uma direção, dimensiona, dispersa e destaca o ser e, na outra, concentra, reúne e desperta o modo não dimensional do ser. Tu te tornas a direção de tua decisão e de teu caminhar por esta linha.

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