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2. RECONHECENDO O SONO DO REAL

2.1 O real em pedaços

“Para a alma que vem do céu o nascimento é uma morte.”

- Empédocles

Poderíamos, a título de iniciar o tema em questão, pensar na imagem de uma corrente elétrica e aparelhos que se alimentam dela. Temos a corrente elétrica, de natureza contínua, e os focos onde essa corrente manifesta-se individualmente: lâmpadas, geladeiras, aparelhos de som, ventiladores e por aí vai. O que se vê são tais aparelhos; a corrente está oculta, implícita, porém atuante e essencial à vida de cada um desses focos. Se nos guiarmos somente pelo que está explícito, o que vemos são tais focos, a aplicação individualizada da corrente em cada um deles. Parece não haver relação necessária entre eles, a não ser as relações derivadas de seus efeitos. Porém se tomarmos a corrente elétrica como referência percebemos um horizonte mais vasto: ela atravessa e anima a todos os aparelhos, constituindo-se como sua vida essencial; integra a vida de todos eles em si e ainda experimenta a qualidade própria dela de vida não individualizada.

Podemos tomar tal imagem para pensar a vida de nossa percepção e da experiência do real derivada desta, tanto como indivíduo como para além das fronteiras que compõe o seu mundo. Dizemos aqui que há uma percepção peculiar e própria que surge da perspectiva da vida individualizada que compõe o mundo do indivíduo; e que há também a perspectiva da vida em estado livre, que, atravessando os indivíduos, os abarca, dando a ver a vida que é contínua entre eles, em um horizonte para além dos mesmos.

Essa imagem da corrente elétrica sugere que o indivíduo é uma espécie de efeito que resulta de um nível de realidade bem mais ampla que ele, e que

61 lhe é primordial e elementar. Sugere ainda que é deste outro nível que ele é animado e alimentado. Ao indivíduo que abandonasse o posto de indivíduo na direção da corrente da qual se origina, um outro plano de existência e possibilidades se abriria; uma existência não mais contida e cerceada pelos limites que definem um indivíduo, mas uma existência aberta, ilimitada, pertencente a tudo, tal como a corrente implícita, que faz parte de cada indivíduo que anima e é propriamente a vida de cada um. Teríamos, então, uma vida não mais rebaixada pelo regime que tem no indivíduo sua peça fundamental, mas uma vida que compartilha e distribui sua existência na intimidade de tudo quanto é vivo, na qual eu não sou mais eu do que você, sendo a vida que a ambos anima.

É preciso, porém, antes de tudo, reconhecer o modo pelo qual esse regime da individualidade se forma e se mantém. Somente após termos clareza sobre os mecanismos que sustentam essa experiência de mundo, marcada por toda sorte de limites que separam o tecido da existência em um sem número de ilhas (indivíduos), é que a experiência do que une essas ilhas poderá emergir.

Em algum momento de nosso percurso como seres pensantes operou-se uma cisão fundamental entre a consciência e o mundo exterior, assim como uma cerca divide a terra em dois terrenos; continua sendo a mesma terra, mas nos fixamos de tal modo na disposição separada pela cerca que chegamos ao fato de esquecer e não saber mais acompanhar a terra comum aos dois terrenos. Deste modo, a consciência se encolheu no espaço interior e os acontecimentos recebidos pelos sentidos se recolheram ao espaço do exterior. E isso tudo de uma maneira que nos parece difícil imaginar que a consciência pode habitar um espaço para além do interior. Depois dessa cisão inicial, propomo-nos a dividir cada vez mais e mobiliar ambos os espaços. E, entretidos que ficamos com tais mobílias, tanto no espaço externo quanto no interno, acabamos por perder realmente a lembrança de que todos esses recortes, toda essa separação era uma ficção utilitária e passamos a experimentar e viver o mundo como se de fato

62 fosse formado por entidades que existem separadamente. Sequer sabemos mais o que é a terra e sua vastidão10.

Por isso faz-se necessário uma exploração dos limites em que nos colocamos, a fim de encontrar uma saída para a vida que se estende para além deles.

É possível que essa cisão, que nos retirou do contínuo ilimitado que a tudo une, tenha se dado em imemoriáveis tempos. Também é no imemoriável que essa grande vida se estende, visto que, pela memória, não temos mais do que a confirmação das experiências advindas desta cisão. Mas, deixemos isso para mais adiante.

Voltemos ao momento da cisão cujo desdobramento criou um mundo em pedaços. Até então o ser estava no mundo como água na água, habitante do elemento que comunga e não do que separa. Eis que a necessidade abriu a possibilidade do instrumento:

É na medida em que os instrumentos são elaborados com vistas a seu fim que a consciência os coloca como objetos, como interrupções na continuidade indistinta. O instrumento elaborado é a forma nascente do eu/ não eu. (Bataille, 1993: p.27).

O instrumento introduz a exterioridade em um campo de experiência até o momento contínuo e unificado. Emerge, deste modo, a operação que separa o sujeito/objeto, o dentro/fora, o eu/não eu. A posição do instrumento, clara e distintamente fora de mim, vai definir a existência de um plano, de um mundo formado por objetos. Daí em diante, o que se segue é a fabricação incessante de subdivisões do espaço interno e do externo.

A existência deste plano fundado pela utilidade não é por si só perniciosa. O problema começa quando este modo de operar e experimentar o real se

10 Esta citação do filósofo Adrián Cangi (2018) pode enriquecer nossa imagem. Segue: “Terra é a unidade primitiva que expressa a extensão indivisível, enquanto que território é o objeto múltiplo do logos e do nomos, do discurso e da lei no espaço-tempo político, dividido pelo trabalho humano.”

63 assume como fundamento do real. Passamos a crer nessas divisões que construímos, esquecemo-nos que foi a conveniência e a utilidade suas motivações e passamos a nos ver e nos experimentar como fragmentos isolados entre outros fragmentos. É aí que perdemos a imersão na grande vida e adentramos na estreiteza da vida individual.

No espaço que foi internalizado formamos imagens sobre nós e o mundo, interpretações e explicações sobre as coisas do mundo exterior e interior. Essas imagens circulam e trafegam, criando e demarcando inúmeros territórios sobre os quais o pensamento se assenta. O pensamento, esse solitário ilhado, talvez saudoso de um tempo em que era unido à sua exterioridade, passa a crer que as imagens que cria do mundo exterior corresponde à verdade deste mundo exterior. Ou seja, o que esse solitário sonhador faz é acreditar que suas ideias são a verdade do real. Tendo se esquecido da natureza viva, da presença que perpassa tanto o mundo interior como o exterior, o que lhe resta é experimentar a qualidade das coisas fragmentadas, sustentando-se delas como se fossem os únicos alimentos possíveis. Desta forma, tristemente, seus pensamentos sobre o mundo não cessam de mantê-lo isolado do mundo. E a presença que evoca do mundo, em seu exercício de pensar, não passa de pálida sombra da qualidade viva do mundo.

Esse exercício de pensar onde há um “eu” que pensa sobre o mundo, não poderia ser de outra forma, pois é um exercício decorrente da cisão que destacou o ser do mundo e destacou a experiência do contínuo ilimitado. Sendo assim, tal exercício não cessa de operar, aprofundar e multiplicar essa cisão da qual deriva. Hoje, podemos pensar sobre acontecimentos na escala das moléculas, dos átomos, das partículas subatômicas, igualmente dos astros, constelações ou galáxias, porém fazemo-lo sempre como fatos que são exteriores a nós, como conhecedores que têm uma natureza e posição distinta da coisa conhecida.

Esse modo de operar o real, que resulta deste marco separatório, chega a se auto confirmar e legitimar-se pela teoria atômica, proposta por Demócrito, há mais de 2 mil anos, seguindo a afirmação de que tudo o que existe é composto pela combinação de átomos. A formação de todo o real estaria na composição, na agregação de átomos existentes separadamente, sendo, portanto, a

64 existência separada do átomo a fundamentação última da realidade (Bohm, 2008). Temos aí uma teoria que proclama que o mundo é formado de indivíduos na sua micro escala, os átomos, que, mediante seus arranjos e combinações, fundamentam o mundo na escala tal como o vemos. Esse é um exemplo de como este modo de funcionamento, que tem em sua base a separação, replica a si mesmo e reproduz as condições em que se sustenta; se eu experimento a vida como indivíduo, o que quer que eu toque se transforma em indivíduo.

Deste modo, não importa que imagens o pensamento construa buscando se reconciliar com o espaço exterior, ele segue preservando os limites que o mantém em exílio interior. É interessante notar também que quando o pensamento se volta sobre o espaço interior, algo similar acontece: por onde quer que olhe, só vê indivíduos; percebe que ele próprio, o pensamento, não passa de uma marcha, de um desfile de coisas pensantes que poderíamos chamar de objetos subjetivos. São indivíduos na medida em que são partes, coisas, objetos separados que se organizam e desorganizam em diversas composições.

Assim, a situação em que nos encontramos como indivíduos é deveras preocupante, devido ao funcionamento desse modo que se auto-replica, capturando, sempre que pode, o que há de vida livre.

Não haveria algo na vida do pensamento, que é preciso que examinemos com cuidado, algo como a qualidade de um clima, uma vibração, uma cintilação, uma flutuação, por fim, uma presença que constitui propriamente a vida do pensamento?

Não chegaremos a essa presença se não abandonarmos a posição em que o pensamento opera para explorarmos o que ocorre para além dele, no espaço vazio de pensamentos, no aspecto mudo e vivo do pensamento, na qualidade do silêncio móvel que se precipita em toda direção.

O silêncio cresceu e se tornou intenso, amplo e profundo. O cérebro que escutou o silêncio dos vales, campos e plantações estava ele mesmo agora em silêncio. Ele ficou quieto, naturalmente. Sem qualquer imposição. Estava paralisado, mergulhado em si mesmo; como um pássaro que recolhe suas asas, ele se

65 recolheu sobre si mesmo. Entrou em uma profundidade para além de si mesmo, em uma dimensão que o cérebro não podia capturar ou entender. E não havia um observador testemunhando essa profundidade. Cada parte de todo ser estava em alerta, sensível, mas intensamente imóvel. Essa profundidade se expandia, explodindo, indo embora, desenvolvendo suas próprias explosões, fora do tempo e além do espaço (Krishnamurti, 1976: p.130- 131).

*

Ainda que o pensamento esteja preso em sua operação separatista, ele pode alertar e apontar para a vida que está fora de si, embora, o ser nessa exploração, ultrapassado um certo limite – aquele que o define enquanto indivíduo –, deva seguir desacompanhado de qualquer indício de pensamento.

Uma visão que poderia abrir as portas do pensamento é a da totalidade. Não uma totalidade fechada e acabada, que seria apenas mais um fragmento, mas uma que constitui a percepção de uma realidade indivisível, aberta e indefinível, uma totalidade que absorve todas as possibilidades de vida, na qual todas as partes do universo se fundem e unem-se em um só continuum; a imensidão irrestrita que resta quando a figura do indivíduo se dissolve. É preciso acompanhar o clarão que nos espalha em todas as direções, para que essa totalidade seja vivenciável e não um ideia.

Tomando essa totalidade que a tudo envolve e a tudo pertence, de tudo saboreia e a tudo experimenta, vamos nos aproximando devagar ao ponto onde nós mesmos somos experimentados por essa totalidade, nós mesmo somos saboreados e vivenciados por essa realidade ilimitada, por esse mistério vivo e aberto.

Eis um ponto crucial para essa mudança de paradigma: nós é que somos experimentados e vivenciados por essa grande vida. Todo espaço e vida que entregamos a esse mistério fazemo-lo ao verdadeiro sujeito da experiência. E, na medida em que procedemos essa entrega de tudo que é individual, mais nos tornamos essa própria totalidade. E então experimentaremos como é exercer o indivíduo do ponto de vista do aberto ilimitado.

66 O físico David Bohm nos traz uma visão que intitula de Totalidade Indivisível do Movimento Fluindo (2008), da qual nada se aparta. Nessa visão, Bohm sugere que “o fluxo vem antes das ‘coisas’, que podem ser vistas como se formando ou se dissolvendo nesse fluxo” (2008: p.26). Todos os indivíduos seriam aspectos desse fluxo universal, recortes formados desse movimento único que está em tudo. Ele compara o fluxo de um rio à formação de vórtices para pensar a vida dos entes individuais, tudo que possa ser visto separadamente. O fluxo cria padrões mais ou menos estáveis, os vórtices, mas não há uma divisão clara entre o fluxo e os vórtices, eles estão em continuidade. Os vórtices são os indivíduos que se explicitam no real. O Fluxo Universal, a Ordem Implícita – ela própria a continuidade entre todas as coisas –, sendo a própria vida que os forma e da qual são constituídos, e também a vida a que são entregues depois de destituídos.

O povoamento de indivíduos no espaço exterior tanto quanto no pensamento, enquanto surgido da separação do Contínuo Ilimitado (porém, vimos que tal separação não passa de ilusão, provocada por um efeito de ponto de vista), está situado como forma, como vórtice que comunga das águas do Fluxo Universal11. Logo, vemos que essa proposta refaz a continuidade perdida

entre o universo interior dos indivíduos e o exterior, assentando-se na realidade que pertence a ambos e que é anterior a qualquer demarcação. Que não nos percamos em palavras ao tratar dessa realidade, visto seu caráter indefinível.

Talvez não seja demais dizer que, no indivíduo em que se abriu a experiência dessa terra sem limites, não se dá o apagamento dos registros e definições individuais. O que ocorre é que, quem irá vivenciar esse indivíduo, é o ilimitado; com sua vastidão única, será o sujeito da experiência. Portanto, todos os modos fragmentários surgidos da necessidade, utilidade e conveniência poderão ser perfeitamente usados. Agora, aprimorando-se, pois que estão respaldados pela Vida que é comum a todos.

11 Estou usando para referenciar a mesma presença termos como Fluxo Universal, Contínuo Ilimitado, Aberto, Grande Vida, Vitalidade Contínua, e outros que poderão surgir. As letras maiúsculas utilizadas visam alinhá-los em ressonância. Tal variação de termos vem no intuito de nos aproximar da vida deste saber através de distintos aspectos que o compõe ou ângulos em que se pode abordá-lo. Cada um pode servir como facilitador para melhor adentrar em sua vida.

67 Tal visão pode nos oferecer um caminho, uma direção por onde sejamos capazes de explorar a realidade dessa continuidade a que temos nos referido. Porém, será necessário, ao chegarmos aonde essa visão nos aponta, livrarmo- nos dessa ideia, a fim de que a realidade a que se refere possa ser vivenciada e não representada. Cabe ao ser que seguiu a direção de tais ideias livrar-se prontamente delas, para examinar diretamente, sem a mediação do pensamento.

Caso o pensamento que é porta voz da vida individual seja silenciado, o tremor dessa terra aberta se fará ouvir; caso contrário, tal experiência será adiada até que a percepção do que movimenta o pensamento individual seja reexaminada.

Para o ser que, mediante exploração, descobriu o Contínuo Ilimitado, desembaraçando-se da experiência fragmentada do si, o que se mostra necessário, é que, se por descuido, ele retornar a habitar dentro de algum fragmento que criou para si, reconheça isso o quanto antes, a fim de retomar sua escalada rumo ao Aberto. Até que a atenção consiga se manter firme no Aberto, as forças do hábito estarão à espreita para atrair a consciência ao nível do indivíduo e suas decorrentes limitações. Toda sorte de enganos irão competir para distrair a atenção do ser, tragando-o novamente para as vicissitudes da forma. É, no entanto, nessa peleja e, conforme ele se determina aplicando tudo de si, que poderá fortalecer seu discernimento e firmar-se no nível do Ilimitado, tornando-se um com o plano que a tudo anima.