• Nenhum resultado encontrado

2. RECONHECENDO O SONO DO REAL

2.3. No princípio era o Fluxo Contínuo

73 Nos primeiros meses em que comecei a experenciar a abertura que Ayahuasca propicia na consciência escrevi um poema como que buscando colocar em palavras algo que estava vivenciando. Trago ele aqui, encabeçando este tópico, por achar que a idéia nele contida remete e reporta ao mesmo aspecto do real que aqui buscamos invocar, de modo que possam ambos- o texto e o poema- ressoar um no outro, dando a perceber uma cintilação que pertence a ambos.

No princípio era o nós.

Um nós irreconhecível, pois que não havia ninguém para reconhecer. Era apenas um nós, estendido e solto no aberto.

O próprio aberto era o nós,

Um nós que se dissolvia em sua criação, E perdido e sem tempo, sem âncora nem rosto Não cessava de começar.

No princípio só haviam princípios. Continuação de princípios sem fim.

Tudo inaugurava a si mesmo sem menção de causas ou coisas. A serpente universal tremia, vibrava,

trocava de pele e dançava

sem que qualquer encantador houvesse sido inventado. Tudo era só.

Exuberantemente só.

O maestro e a orquestra não existiam ainda, somente a música. E a música era tudo.

No princípio era a criação, e somente a criação. E tudo era somente criação.

Vontade criadora.

74 Tampouco eu, tampouco tu, tampouco eles.

Somente vontade criadora.

Somente o ato da criação em transbordamento perpétuo de si. Não havia pai, não havia filho.

Porque não haviam pontos.

Somente a irrefreável velocidade no limite de si A ilimitada onda oceânica passando por cima de si. Não haviam tempos, pois não havia tempo para isso.

Um nascimento enganchado a um outro... não dá tempo para o primeiro nascer

Por isso nem um dos dois nasciam. No princípio não havia um princípio,

mas a continuação daquele que nunca principiou.

Daquele que, à beira de nascer, sempre doou sua vida a um outro, de modo que, nunca verdadeiramente nasceu.

E nunca deixou de existir.

No princípio não haviam nascimentos, pois eram todos entregues a um próximo nascimento.

No princípio só haviam nascimentos. Nascimentos sem nascidos.

Nada chegava a nascer. Pois que, se nascesse, De tudo se afastava. Mas eis que um dia...

No meio desse riso sem princípio ou fim, Algo vacilou.

E essa vacilação virou alguém.

75 se enamorou por

ninguém...

Tomemos novamente a imagem de um rio fluindo. Em seu correr, ele gera uma série de episódios como vórtices, ondulações, respingos etc., que não são, evidentemente, destacados da sua vida e do seu fluxo. Anteriormente, mencionamos os vórtices para pensarmos na relação das existências individuais como insurgências que se manifestam no Fluxo Universal e que, no entanto, não se pode definir onde acaba um e começa o outro; ambos pertencem a um só evento ininterrupto, a vida do rio. Contudo, antes do vórtice e depois dele era o fluxo, e mesmo durante a vida do vórtice, ainda era a vida do fluxo.

Essa imagem serve para pensarmos a própria concepção de real (e o modo de existência imbricado) que temos enquanto real extensivo, realidade constituída por objetos, eventos, estruturas, formas, entidades definíveis e destacáveis. O que a imagem nos sugere é que todos esses eventos e coisas destacáveis, que supostamente possuem existência própria, inclusive nós e nosso pensamento, são como inflexões do Fluxo, dobras e marcas mnemônicas deste Contínuo. Somos como o pensamento do Fluxo.

No caso do rio, a física moderna defende que o fluxo de água é composto de átomos, que por sua vez são compostos de nêutrons, prótons e elétrons. Tais seriam as substâncias finais, as partículas elementares e definitivas que formariam, inclusive, o fluxo e todos os eventos e seres existentes. No entanto,

Foi descoberto que mesmo as ‘partículas elementares’ podem ser criadas, aniquiladas e transformadas, e isso indica que nem mesmo elas podem ser as substâncias finais; ao contrário, elas também são formas relativamente constantes, abstraídas de algum nível mais profundo de movimento (Bohm, 2008: p.62).

Outra manifestação que confirma essa relatividade da forma no nível subatômico é a possibilidade de um elétron se comportar ora como partícula, ora como onda, de maneira indeterminada. Esse mesmo elétron pode, por exemplo,

76 enquanto partícula, desaparecer de um ponto e aparecer em outro sem que se saiba por qual espaço ele atravessou para chegar no destino: o chamado salto quântico (Goswami, 2007).

Esses são somente alguns dos tópicos que fazem tremer e vacilar, mesmo dentro de uma ciência dura como a física, a natureza do real enquanto constituída de partículas sólidas, definíveis e conhecíveis. Essas descobertas servem também como uma espécie de sinalização para que exploremos o real para além do próprio pensamento. Poderíamos ultrapassar o familiarizado pensamento-partícula, que se efetua pela linguagem do fragmento, e buscar a manifestação do pensamento-onda ou do pensamento oceânico, atmosférico (No Princípio, era o não verbal...). De todo modo, trata-se de recuperar o Substrato Vivo e atuante na vida dos exilados atuantes, passando a experimentar a nós e ao mundo como uma mesma e contínua onda, com suas manifestações diferenciais, porém, pertencentes, dependentes e animados pela vida do plano em que estão inseridos.

Curioso que o pensamento e a matéria, ambos como seres atuantes do regime descontínuo, têm em sua origem, como substrato primário, a mesma dimensão contínua da existência. Podendo o pensamento escapar de si, como quem se sacode de um sonho, chegar ao espaço primordial – tanto da matéria quanto do próprio pensamento.

Se, por um lado, nós, ocidentalizados, buscamos a essência do real por meio de experiências em laboratórios, aceleradores de partículas e toda gama de recursos tecnológicos e cognitivos postos a serviço de uma medição que possa ser objetivada, por outro, há linhas de saberes que realizam não o processo de extroversão do pensamento pelo plano da descontinuidade, mas tomam a direção introvertida do pensar a fim de explorar a mesma questão.14

Um dos pensadores indianos do século passado que conseguiu, pela auto experimentação, romper com o pensamento- partícula e se unir à Presença do Contínuo Ilimitado foi Ramana Maharshi. Acerca do que estamos tratando,

14 Lembro-me de uma frase dita pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “O acelerador de partículas do índio é o maracá”, visto que, é através dos cantos, dentre outros procedimentos, que o pajé se coloca a explorar as regiões cósmicas que colocam em xeque o universo sólido como a natureza fundamental do real. Acrescentemos, no mesmo sentido, a Ayahuasca, que, para diversos povos, cumpre esse papel.

77 Maharshi argumenta (repare que, o que ele chama de consciência não se refere à consciência individual, mas ao que temos chamado de Contínuo Ilimitado):

A existência ou consciência é a única realidade. A consciência é a tela sobre a qual todas as cenas veem e vão. A tela é o real, as imagens ou figuras, são meras sombras nela projetadas(...) Há uma tela. Nela aparece de início a figura de um rei. Ele senta-se no trono. Então diante dele e na mesma tela uma cena se desenrola com vários personagens e objetos. E o rei observa tudo na própria tela. Aquele que vê e os seres e objetos vistos são meras sombras na tela a qual, sendo a única realidade, serve de sustentáculo a todas as cenas (Maharshi, 2012: p.47)