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2. RECONHECENDO O SONO DO REAL

2.4 O Sovina

O Sovina é o Princípio do Universo descontínuo. Nesse sentido, é ele o criador de tudo que vemos, desde estrelas, planetas, galáxias, meteoros, montanhas, animais, rios, pessoas a moléculas, átomos, elétrons etc. É o princípio de aglutinação responsável por promover dimensão e forma ao universo. Quando o Sovina estava imanifesto, o mundo era não dimensional. Havia apenas uma consciência que navegava dentro de si, fora do tempo e espaço. Com o surgimento do Sovina, o ovo cósmico se rompe e ocorre a babélica exteriorização dimensional da vida. A vida, tornada extensa, espalhou- se e se diversificou por todo lado. Alguns cosmólogos chamaram esse evento de Big Bang.

O povo Desana explorou esse universo não dimensional que antecede e sustenta a sedimentação e manutenção do cosmos. Em seu livro, “Antes o mundo não existia”, o pintor Desana Luís Lana nos diz que, antes não só do nascimento do cosmo, mas do nascimento de cada indivíduo, “todas as coisas são invisíveis, e não se pode ver nem tocar”, é uma vida “relacionada ao sobrenatural” (Menendez, 2009: p.22).

Observemos que o que está sendo dito aqui refere-se tanto ao universo externo, objetivo, quanto à vida do pensamento enquanto arregimentada pelo

78 vórtice individual e pensamento-partícula. Do contrário, de que outro modo poderia o pensamento Desana acessar essa vida não dimensionada e não extensiva? Não teria sido por uma tomada de direção inversa à exteriorização e objetivação do pensamento, até atingir o espaço onde o pensamento (e o mundo) ainda não nasceu? Nossa aposta vai nesse sentido. Neste caso, a manifestação da mente individual se dá do modo como ocorre com a matéria; após a gênese explosiva, a mente também se dispersou e diversificou de maneira babélica, ou seja, descontinuou-se. Para chegar a sua Presença anterior à gênese, deve retrair-se até o momento em que tudo estava intensamente concentrado em um ínfimo ponto não dimensional. Então, o Big Bang não estaria apenas num passado remoto, mas no limiar do aqui, operando a passagem do não dimensional para o dimensional.

Alguém poderá inquirir a respeito desse movimento de conter, retrair, introverter a fragmentada manifestação da mente em um único ponto, através do qual, como em um portal, adentra-se na vida não dimensionável. O questionador lançará suas dúvidas, “- Mas o que está sendo feito não é um processo de acumulação, concentração de todas as partes dispersas do pensamento? Não é, portanto, o Sovina que aí opera?”. Ocorre que esta acumulação é de natureza distinta da que o Sovina manifesta. Lembremo-nos da história de Osíris, tomando-o como a Vida Contínua não dimensionada. Sait corta e espalha seus pedaços pelas quatro direções. Eis que surge Ísis, reunindo e concentrando todos os pedaços de modo a torná-lo Um novamente, reestabelecendo suas condições iniciais. A concentração de Ísis vai gerando a reunião de Osíris, na direção inversa do movimento do Sovina, que, no caso, é Sait. Sua direção e trabalho correm do dimensional ao não dimensional, desfazendo os nomes e formas ao invés de os gerar.

Essa história lembra-me de uma outra ainda, indiana. Vamama, um ser divino, disfarçou-se de humano e foi ao encontro de um poderoso rei chamado Bali Maharaja. Chegando lá, mendigou a ele, “- Só peço três passos de terra”. O rei querendo mostrar-se generoso, e vendo que três passos de terra em nada o tornaria menos rico, consentiu. Para sua surpresa, tendo Vamama se liberado da forma assumida, um passo cobriu a terra e o outro abarcou o céu. Nada restava para Bali Maharaja dar, exceto a si mesmo. Assim, reconhecendo o

79 Senhor de tudo, prostrou-se diante dele. Tal história também pode ser lida em semelhante chave com algumas diferenças. Aqui, é a própria Presença pré- cosmológica que se insere no cosmo e vem recolher seu pedaços. No entanto, para isso, foi necessário o consentimento e a entrega daquele que pode ser tomado como expressão do Sovina. Assim é que esta entrega, que é a destituição de todas as suas posses, inclusive a de si mesmo, concebe-se na mesma direção da história anterior, a fim de restituir o antes do mundo.

É por isso que esse saber é o único que traz a real e total satisfação, harmonia e completude, pois dele, nada é excluído; todo aspecto das existência é chamado e atraído nessa compreensão. A infindável abundância do real está presente e nenhuma necessidade ou carência da forma se mantém.

O Sovina, por sua vez, junta para separar, para descontinuar, afirmando as existências privadas e suas propriedades particulares. É um vetor de acumulação do capital ontológico, tanto no mundo da mente como da matéria, essas duas pontas do mundo criado por ele.

Há, entre os povos Yaminawa, a figura do sovina como um grave insulto. O dever de dar é rigoroso entre eles. Uma vez que um objeto é posto em cena (comida, roupa, tabaco) e um pedido é feito, a dádiva se impõe. Sobre as coisas não se deve ter direitos de posse. Por outro lado, o chefe, muitas vezes designado quase à sua revelia, é a contra-figura do sovina. É quem tem “condições e, portanto, obrigação de dar no mais alto grau”. Essas seriam as figuras que, por assim dizer, catalisam e direcionam o movimento dos Yaminawa; o chefe absorvendo e atraindo e o sovina repelindo (Calavia Saez, 2003: p.12).

Esse movimento na sociabilidade Yaminawa indica, por sua vez, uma economia que se opera no campo ontológico bem distinta da que nós, ocidentalizados, tendemos a operar. Em nós, a posse (de terras, animais, pessoas, objetos, pensamentos etc.) é uma relação naturalizada. Poderíamos até mesmo nos definir como o conjunto de posses (materiais e imateriais) que temos. O movimento efetuado pelos Yaminawa sugere que eles privilegiam o vetor que corre do dimensional ao não dimensional, do descontínuo ao contínuo. Recordemo-nos do rei Bali Maharaja, pois pela doação e entrega de si e suas posses, ele promoveu sua imersão.

80 O sovina é também o responsável pela dispersão e diversificação das espécies vivas. Há um mito que relata que Yuwasidawa tinha em seu roçado todas as plantas, mas que nada dividia. Guardava suas roças com serpentes e outros animais peçonhentos. Se alguém lhe pedia alguma semente, dava sementes sapecadas que não germinavam, para que ninguém pudesse cultivar. Então, os parentes se juntaram para matá-lo. Depois do assassinato, pintaram seus rostos com o sangue dele e o ato fez com que cada um viesse a transformar um animal diferente. Quem por sua vez vai reunir e concentrar essas espécies, adentrando nesse tempo mítico e pré-babélico, é o pajé, cujo saber é capaz de erguer a continuidade perdida entre as espécies (Calavia Saez, 2003).

Observemos que esses dois papéis (o chefe e o pajé), ao redor dos quais a vida social gira, atraem e com-vertem o movimento Yaminawa no sentido do pré-cosmológico, não permitindo que a vida se desgarre de sua natureza primeira, mas antes, zelando e se precavendo contra a semente sapecada do Sovina. Precedentemente, regam e se arvoram na semente que cresce em direção à Bem Aventurança (outro nome para a Presença anterior ao Cosmo).

É preciso que se elucide que as manifestações do Sovina não são ruins por si sós. Mas, quando perdem relação com a esfera de onde são emanados e mediante a qual são sustentados, a vida começa a se direcionar rumo ao intolerável. Isso porque a Presença Anterior contém as manifestações do Sovina, mas os eventos não contendo e avivando o registro dessa Presença, produzem prejuízo e definhamento ontológico. Curiosamente, aquele que quis acumular acaba por empobrecer seu circuito de vitalidade ontológica (sua posse é sua perda). Porém, quando suas manifestações estão alinhadas e obedecendo ao Fluxo que as mantêm, não há do que reclamar. Aliás, não há quem reclamar, já que quem experimenta as criações é a Realidade Única. Chamávamos Sovina quando as criações se arvoravam da posse de suas vidas, impedindo a visão da Vida Contínua. Porém, elas estando entregues em doação de si, o que se tem é um Sovina como Bali Maharaji, ou seja, dissolvido.

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