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2. RECONHECENDO O SONO DO REAL

2.5 Do pensamento e da inteligência

“A imensidão ganha consciência no homem.” - Baudelaire.

O pensamento é surgido no vórtice do Sovina, mediante seu impulso de acumulação. É também conhecido como o Grande Marcador, sendo seu corpo feito das referências que cria para reter, absorver e mapear a Indivisa Vida. Seu corpo é a marcação e a realidade que ela é capaz de encarnar. É resultado do esforço de interiorização da Grande Vida, que se move em velocidade absoluta, e é conclamada a desacelerar e se dispersar, de modo a manifestar um ente que pensa e uma realidade a ser pensada. Como um cachorro que corre atrás do próprio rabo, ou semelhante ao interminável trabalho de Sísifo,15 o ente que

pensa precisa agora estar a todo momento produzindo as atualizações de seu pensamento, pois que, pela própria natureza de seu exercício, está sempre defasado. O pensamento – como o ente que pensa e a realidade pensada- – constitui o próprio exercício de defasagem do Real.

O pensamento, em sua defasagem e descontinuidade, em permanente afirmação da estrutura pensador-pensamento-pensado, não tem como acessar o horizonte liso e ilimitado do Contínuo. É como a história da rã que estava em um poço e quando um amigo lhe informou sobre a existência do Oceano Atlântico, perguntou:

- Oh, como é esse Oceano Atlântico?

- É um enorme corpo de água - respondeu o amigo. - Quão grande? É o dobro do tamanho desse poço? - Oh não! Muito, muito maior - respondeu o amigo.

15 A Sísifo, na mitologia grega, havia sido dado o dever de subir uma montanha rolando uma grande pedra redonda. Ocorre que, chegando ao topo, quando ele soltava a pedra, a fim de entregar sua tarefa, ela descia montanha abaixo, tendo ele que recomeçar seu trabalho.

82 - Quantas vezes maior? Dez vezes maior? - E assim a rã começou a calcular. Mas qual seria a possibilidade dela compreender a verdadeira vastidão e profundidade desse oceano a partir das medidas originadas de sua experiência?

E, no caso do pensamento, o que é a experiência, senão a memória que ele acumulou advinda de seu processo de inflexão, retenção e interiorização, que, por sua vez, restringiu e particularizou a experiência do Real. Por outro lado, por que será que, em determinados momentos em que o pensamento, por algum motivo, silencia, sentimos uma insuspeita sensação de liberdade e uma misteriosa satisfação sem causa aparente? O que nos ocorre nestes diáfanos instantes?

A própria matéria indica que não perdeu sua relação de continuidade com todas as coisas, apesar de nossos sentidos exteriores não captarem o meio pelo qual tal continuidade se efetua. Segundo a hipótese de Gaia, formulada pelo químico atmosférico James Lovelock, há uma inteligência consciente que realiza a ação coordenada do planeta, regulando seu metabolismo, assim como nos organismos vivos, descritos pela biologia, os órgãos e outros fatores da vida orgânica são regulados dentro da compreensão total do organismo. Essa inteligência de Gaia seria responsável pela regulação de sua temperatura, pela composição química atmosférica, pela salinização dos oceanos, dentre outras condições necessárias à vida (Capra, 1996).

Quanto a essa Inteligência, Fritjof Capra diz que não é um processo verbal, mas um conhecimento ativo, direto e não mediado pelo pensamento.

A mente universal está presente na natureza. Portanto, a natureza é inteligente. Porém, a inteligência não é necessariamente um processo verbal. A compreensão que fica presa às palavras é superficial. O conhecimento pode ocorrer de modo direto, independente do acúmulo de informações (Capra, 1996: p.77). (Grifo meu)

83 Talvez devamos novamente nos inspirar nessas descobertas e hipóteses oriundas da ciência, para alavancar nosso pensamento a um novo modo de atuação. Mas, continuemos a explorar o exercício do pensamento.

Três fantasmáticas imagens trançadas rodam no vórtice do Sovina: pensador-pensamento-coisa pensada. Houvesse somente o pensamento, fluindo sem ponto de partida ou chegada, sem pensador ou coisa pensada, estaríamos no Aberto, em plena navegação. O eu que pensa é situado e ancorado pelas suas posses, pelos territórios que demarca. Mas ele mesmo é um efeito da percepção de suas marcações, um efeito da memória. A ampla e ilimitada Percepção, passando pela peneira do Sovina, manifesta-se como a percepção de um eu frente a uma infinidade de outros eus, os quais não abarca. Dito de outro modo, a luz da qual é projetada a percepção do eu provém da Vitalidade Contínua, que foi filtrada pelo acúmulo de memórias (interiorizações), projetando, ressoando, enfim, a fantasmática imagem do eu e sua correspondente estrutura. Depois do primeiro re- ressoar, surgido do impulso de interiorizar, a coisa toda se retro- alimenta sozinha, novamente como a intrigante imagem de um cachorro atrás do próprio rabo.

Instaurada essa estrutura de percepção, o pensador (que é o efeito de suas memórias) segue com seu acúmulo de memórias, surgidas da experiência com o exterior, um campo de memórias em acúmulo. Tudo aqui é memória. Como se pode desejar perceber o real vivo através de um instrumental deste? Mesmo que esteja se manifestando como a mais evidente obviedade, mediante tal processo de pensamento, nada poderia ser visto. A vida passaria pelas costas do pensador, do pensamento e da coisa pensada.

Estando o pensamento condicionado pelo acúmulo de memórias, como poderia ele produzir as ações adequadas e necessárias nas diversas situações se tateia o mundo às cegas, por intermédio do filtro de uma realidade passada? Disso decorrem ações que estão em nítido desacordo com a manutenção harmônica e coordenada da vida.

Mesmo com o acúmulo de milhares de anos, o homem continua a lidar com problemas que já poderia ter aprendido a solucionar, caso esse processo de acúmulo de conhecimento o conduzisse de fato a se posicionar

84 adequadamente (refiro-me a conflitos como as guerras, as aberrantes desigualdades sociais, a ampla presença do medo e da violência, a crescente desvalorização da vida, os ódios de classe, gênero, étnicos, religiosos, políticos, a devastação ecológica, etc.). O que sugerimos aqui, muito pelo contrário, é que justamente esse modo de pensamento, por ter se afastado da Grande Vida, é um dos grandes responsáveis pela perpetuação de toda gama de conflitos, produzindo as condições para toda espécie de insatisfação.

Desse modo, é preciso promover uma transformação no pensamento, despertar para uma outra dimensão do exercício pensante. Tudo aquilo que for acúmulo de memória, não deve ser mais condicionante no pensamento, mas o despertar de uma Inteligência incondicionada como o novo vetor de motivação e direcionamento do pensamento. É dar ao pensamento um novo rei, por assim dizer. Retirar do trono o rei Sovina e entregá-lo ao rei do Ilimitado. Para isso, é necessário perceber as atuações do Sovina e ver que sua semente não nasce para o reino da Vida. Em clara evidência, perceber a desilusão, os deploráveis resultados de sua manifestação, a fim de se desencantar do feitiço e compreender a Presença da Inteligência, a Voz do Silêncio, sem nenhum fundo de memória a te dizer. Tua guia será o Aberto, quando aprender a ouvi-lo. Até lá, cabe-te entregar e trabalhar para com ele unir-se. Na medida em que tu diminuis, ele cresce. O pensamento entregue aos direcionamentos dessa Inteligência – e é dela que deve partir o comando, o princípio de teu pensamento – é renovado e o ser ampliado e estendido no ilimitado corpo da Inteligência. Tal como um instrumento musical, o que se passa é que o ser, tendo se direcionado neste sentido, passa a ser afinado, para, posteriormente, poder ser tocado pela Inteligência. Daí, o processo não é distinto do que relatou Lovelock sobre a Inteligência que regula os diversos aspectos para a manutenção harmônica do planeta.

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